O Colecionador De Penas escrita por Yukii


Capítulo 4
In Hoc Signo Vinces


Notas iniciais do capítulo

Como previsto, não pude escrever sexta e sábado, e tirei o domingo para descansar. @_@ Anyway, acho que ninguém se incomodou com isso.
De qualquer modo, o título do cap. é uma frase que virou o "lema" de Constantino I, primeiro Imperador a professar o Cristianismo. Há algumas vertentes sobre essa lenda: em uma delas, conta-se que, antes da Batalha da Ponte Mílvio, ele olhou para o sol e viu uma cruz acima dele, juntamente às duas primeiras letras do nome de Cristo, indicando que ele venceria ("In hoc Signo Vinces" - com este sinal/símbolo vencerá). Em outra versão, Constantino sonhou com uma cruz que carregava esses dizeres. Em todo caso, isso não é nada que se precise saber para entender este capítulo, está incluso apenas num sentido metafórico. Boa leitura, e espero que gostem. C:



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Era a segunda ou terceira vez que Charles encontrava-se numa situação perigosa sem poder se mexer ou fazer algo naquele dia. Seus olhos assustados seguiram o anjo, que se arrastava em direção ao escuro - em direção ao que quer que estivesse ali. Ele ergueu as mãos ossudas, e o garoto percebeu, assustado, o quão grande eram suas unhas.

Um barulho esganiçado veio do canto do quarto quandoo anjo se atirou para frente, agarrando algo e derrubando algumas latas de ervilha com suas asas. Charles cobriu os olhos com o lençol, assustado com a possibilidade de se deparar com algo que se parecesse o demônio em pessoa, ou pior - se houvesse pior. O atrito do lençol fez seus tornozelos arderem, ficando expostos e descobertos.

- Está tudo bem - avisou o anjo calmamente. - Eu o peguei.

Vencido por uma frívola curiosidade que não combinava com sua personalidade tímida, Charles empurrou o cobertor para longe. Ele reprimiu um suspiro de alívio ao ver o que o anjo segurava - um rato grande de pelo escuro, debatendo-se e arranhando as mãos de seu captor.

- É só um rato.

O anjo franziu a testa.

- Não. É um caído.

Charles quis rir, mas não confiava o suficiente na criatura loura que se erguia à sua frente, para tanto; ele poderia se sentir ofendido.

- É um rato. Temos vários desses espalhados por aí. Mamãe costumava espantá-los com uma vassoura. Não fazem mal algum, exceto sujar tudo. Alguns curandeiros dizem que eles podem nos deixar doentes¹, mas papai não acredita nisso.

Orbes azuis o encararam indiferentes por alguns segundos. Em seguida, o anjo cravou as unhas no pelo escuro do roedor, fazendo-o soltar um guincho sufocado. Horrorizado, Charles viu a criatura queimar e virar cinzas nas mãos do anjo.

- É um caído. Eles são capazes de adotar formas de alguns seres vivos. - ele soprou as cinzas das mãos. - Não aceite o mergulho confortável da ignorância, Charles Kristof. A verdade pode ser incômoda, mas você pode usá-la a seu favor.

As palavras soaram confusas para o garoto. Ele olhou para o montinho de cinzas no chão, e mordeu o lábio.

- Mas por que esse rato... esse caído... - ele fez uma careta com o som estranho da palavra - estaria aqui?

O anjo encolheu os ombros, escondendo as asas atrás das omoplatas.

- Eles podem ir aonde quiser, com um corpo físico. Como eu.

Charles arregalou os olhos.

- Você é um caído?

O anjo hesitou, desenhando círculos nas mãos espalmadas. Um par de olhos doloridos mirou a figura diminuta do menino enterrado entre os lençóis da cama.

- Devo ser.

A resposta incerta fez Charles lembrar que o anjo não sabia quase nada sobre si mesmo - seu nome, de onde viera, como caíra ali. Apenas sabia de suas origens celestiais.

- Posso lhe dar um nome? - sugeriu o garoto subitamente, quebrando o silêncio frio que se condensara entre ambos.

O outro arregalou os olhos, traduzindo um misto de surpresa e incredulidade nos orbes cerúleos.

- Por que faria isso?

- Você não tem um. Ou não se lembra do seu, pelo menos. - O garoto encolheu os ombros. - Eu tinha dito que queria lhe ajudar, certo?

- Por que faria isso? - o anjo repetiu no mesmo tom.

Charles franziu a testa.

- Não sei. Deve ser chato não ter um nome. Chato e difícil. Talvez, de onde você veio, ninguém precisasse de nome. Mas, aqui, você precisa.

O anjo o fitou em silêncio. Ele não pareceu negar nada do que o garoto havia dito, então Charles decidiu encarar o silêncio como uma permissão silenciosa.

Após alguns minutos de silêncio gastos com o singelo ato de pensar enquanto encara o teto, Charles se manifestou, num murmúrio:

- Caius.

O anjo piscou.

- Seu nome - disse Charles com firmeza. - Caius.

Algo na face do anjo pareceu se iluminar. Suas feições ganharam uma luminosidade dourada suave, e ele olhou fascinado para o menino, como se fosse a primeira vez que o visse.

- Meu nome? - ele indagou. - Como você o escolheu para mim?

- Bem... - o garoto sorriu. - Era o nome do meu irmão.

O rosto do outro endureceu.

- Então não é meu nome.

- Claro que é!

- Não. Você mesmo disse. É do seu irmão.

Charles girou os olhos.

- Não importa, é seu também...

- Não. O nome é uma coisa importante, não se pode-

- Caius - disse Charles, experimentando como o nome soava em sua forma de vocativo -, meu irmão está morto.

O anjo pareceu levemente mortificado, mas continuava relutante.

- Ainda assim, é o nome dele...

- Céus. Não é só dele. Existem milhões de Caius pelo mundo, assim como milhões de Charles.

Um par de orbes azuis o encarou com desconfiança.

- Como isso é possível? Como podem lhe reconhecer tendo tantos com nomes iguais ao seu?

- Bem, sobrenomes existem para isso. E as pessoas são muito diferentes entre si, não é tão fácil assim confundi-las. Você pode usar meu sobrenome também, se quiser.

- Aí meu nome ficará igual ao do seu irmão, Charles Kristof.

- Eu lhe falei, ele está morto. - O menino pareceu desconfortável. - E não precisa me chamar pelo nome inteiro. Soa estranho, muito estranho.

O anjo não respondeu, deixando as asas esconderem-lhe parcialmente o corpo. Alguns minutos mais tarde, ele murmurou:

- Obrigado.

Charles revirou-se na cama para olhá-lo, reprimindo um gemido de dor quando as queimaduras roçaram no tecido áspero que envolvia o colchão.

- Não foi nada.

- Claro que foi. In hoc signo vinces.

- Eu não entendo latim - resmungou o menino, sentindo uma pontada de vergonha - meninos mais ricos de sua idade já sabiam uma porção de línguas.

- "Com este símbolo, vencerás" - traduziu o anjo em tom inexpressivo. - Você me deu um nome. Um símbolo. É algo abençoado.

- Se você diz. - Charles deixou escapar um ruído de dor ao tentar mover a perna esquerda, o que não passou despercebido ao outro.

- O que há de errado com sua perna?

- Hã? N-nada.

Ignorando os protestos do mais novo, o anjo deu a volta na cama e examinou os tornozelos amarrados por volumosas ataduras. Seus dedos compridos tocaram a superfície do curativo, e, para espanto de Charles, suas unhas estavam maiores ainda do que há poucos minutos, quando ele carbonizara o rato.

- Suas unhas cresceram.

- Desde que eu caí, elas crescem sem parar. - resmungou o anjo. - Quem fez isso com você?

Charles não sabia o que dizer. Lembrava-se claramente dos pés em chamas do anjo queimando-lhe as canelas, mas não ousaria emitir uma palavra sobre isso - as reações de Caius ainda eram um mistério para ele.

- Não é nada, só...

- Fui eu - disse o anjo em tom calmo. - Consigo me lembrar disso.

O menino encolheu-se debaixo do lençol.

- Eu não me importo, não está doendo tanto assim.

O anjo adotou um tom de voz mais sério.

- Charles Kristof - ele disse -, você não deve mentir. Não para mim, ou para ninguém mais que você estime. Entendeu?

- Entendi - disse o menino, sentindo-se inseguro. Aquilo fazia-o lembrar da mãe.

- Agora - o anjo estendeu as mãos com cuidado -, deixe-me tomar conta disso.

- Não precisa. Vai sarar.

- Você me deu um nome, Charles Kristof. Eu lhe devo parte de minha honra.

Caius puxou uma das ataduras sem nenhum cuidado, arrancando um berro de dor do garoto. A dor bloqueou sua visão com lágrimas, e ele tentou pedir que o anjo parasse, mas antes que pudesse articular uma palavra, o anjo arrancou a segunda atadura - uma nova onda de dor que lhe fez prender a respiração por alguns segundos.

Sem prestar atenção aos gemidos de dor e ao sangue que encharcava a colcha da cama, o anjo pousou cada mão em um tornozelo, tentando deixar as unhas longas e afiadas fora do processo. Seus dedos massagearam levemente os tornozelos em carne viva, e ele entoou uma oração baixa e arrastada, o som de sua voz calma e gentil mesclando-se ao choro de dor do garoto.

Poucos minutos depois, Charles conseguia respirar normalmente, e a dor parecia algo distante no tempo. Ele sentiu seus tornozelos formigarem e esfriarem, e acompanhou os movimentos do anjo até o momento quando este se afastou.

As feridas ensanguentadas provocadas pela queimadura haviam sumido, dando lugar à duas cicatrizes escuras e indolores, envolvendo seus tornozelos e canelas como grilhões invisíveis. O retorno da mobilidade das pernas fez o menino ficar radiante.

- Você as curou! - ele exclamou, surpreso. - Como fez isso?

O anjo não respondeu, desenhando uma cruz invisível em cada tornozelo e murmurando "in hoc signo vinces".

- Pronto. Agora, essas marcas lhe protegerão, Charles Kristof.

- Você pode fazer algo assim? - ele parecia maravilhado.

- Sim.

Charles estava pronto para usufruir de seus tornozelos e canelas recém-consertados, quando o som de batidas fortes na porta o fez saltar na cama. Caius voou para a escuridão da abóbada da torre, desaparecendo entre traves de madeira.

- Kristof! Está tudo bem? - Charles reconheceu a voz de um dos acólitos que cuidara dele mais cedo. - Ouvimos gritos. Você está bem?

Antes que o garoto pudesse responder, o som de cliques abafados e de uma chave rodando introduziu a entrada do acólito com uma vela semi-derretida na mão, olhando-o com preocupação.

Charles pulou da cama.

- Estou ótimo. Veja. - ele sorria.

O homem empalideceu, seus olhos dançando entre os tornozelos saudáveis do garoto para as tiras de curativo ensanguentadas jogadas no chão.

- Santo Deus. O que aconteceu? Suas queimaduras...

- Estão saradas.

Poucos minutos de transmissão de informações via oral foram suficientes para trazer cinco padres e mais dois acólitos ao quarto do garoto, todos admirados com a milagrosa recuperação do menino. Uma discussão feroz sobre milagres de cura e o episódio de horas mais cedo iniciou-se fervorosa ali mesmo, e só teve um fim quando Charles manifestou seu desejo de dormir, após várias olhadelas disfarçadas para as traves do teto longínquo enquanto seus tornozelos eram analisados de cima a baixo.

Quando Charles foi finalmente devolvido à sua suposta solidão, a primeira coisa que fez foi pular na cama e chamar seu novo amigo:

- Caius! - ele esperou alguns segundos. Nada. - Caius! Pode descer! Eles já foram embora!

O silêncio profundo que se estendeu o decepcionou. Ele espiou as traves com atenção. Não havia ninguém ali.

Charles enrolou-se nas cobertas, abraçando os joelhos e sentindo-se estranhamente solitário. Quase sentiu falta da dor aguda nos tornozelos.

E ele não fazia ideia do quanto Caius Kristof se tornaria rotineiro em sua vida.


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Notas finais do capítulo

¹Não havia nenhuma noção adequada de higiene nessa época. Era comum ter-se ratos por toda a cidade, o que facilitava a eclosão de pestes e doenças diversas.
Um cap. pequeno porque não estou boa para escrever hoje (nem um pouco boa, diga-se de passagem). Não gostei nem um pouco do jeito que o escrevi, mas foi o que pude fazer. Se um dia eu cismar, eu reescrevo.
Espero que tenham gostado e me perdoem pela minha falta de habilidade de manejar as palavras em certos momentos. Bem, acho que todos nós temos dias ruins. XD
As coisas começarão a ficar mais interessantes a partir do próximo cap., onde teremos mais um "break" temporal logo de cara. Esses primeiros caps. estão funcionando muito mais como uma introdução do que realmente é a história, que começará a ganhar mais ramos no próximo capítulo. Não posso garantir que manterei meu entusiasmo inicial de escrever um capítulo por dia, mas não abandonarei essa história. Espero que me acompanhem até o fim e não cansem da minha narrativa monótona. E, mais uma vez, obrigada por todo o incentivo. ♥



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