O Colecionador De Penas escrita por Yukii


Capítulo 2
Mulieres in ecclesiis taceant


Notas iniciais do capítulo

- Não, o título não está em tiopês. Q Na verdade, é uma inscrição em latim comum nas igrejas europeias durante o século XV/XVI, que está nos Coríntios e foi articulada por São Paulo, e quer dizer mais ou menos que as mulheres não tinham direitos de ocupar cargos na Igreja. Foi uma ideia que vigorou durante alguns anos do séc. XVI, relacionada com a Reforma Protestante e a caça às bruxas (yay o/).
- É importante ressaltar que existem algumas pequenas "distorções temporais" que tive que fazer para colocar tudo o que eu queria na história. O período é mais ou menos o fim da idade média, com o advento da Reforma Protestante e todas as suas implicações sociais e religiosas. Ainda assim, eu conservei a atmosfera medieval por opção, já que a transição de uma era para a outra não queira dizer que as coisas mudem subitamente. Não sei se devo classificar como "Universo Alternativo" por causa disso, mas acho que não há nada de mais, as coisas continuavam medievalescas (lol) mesmo com o fim do período denominado Idade Média.
- Lembrando que voltamos no tempo uns bons anos desde o Prólogo, para o começo da história. Ah, dá pra entender isso mesmo que eu não avisasse. q



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O som de rodas de carruagem era esparso e raro na pequena estrada enlameada interiorana. Toda vez que o ouvia, Charles levantava a cabeça, tentando vislumbrar quem ocupava o veículo, ou captar os diferentes tons de cor do pelo dos cavalos. O pai segurava firme sua mão na dele, e ambos deixavam uma trilha de pegadas tortas na margem que separava a trilha de terra molhada das árvores e arbustos silenciosos.

Charles não sabia muito bem o que estavam indo fazer, mas sabia que era importante, e sabia que, de alguma forma, mudaria sua vida. Se não mudasse, sua mãe não teria lhe forçado a levar tantas das suas roupas e seus poucos pertences pessoais.

Ele fixou o olhar em suas botas enlameadas. Mal haviam se despedido, e já sentia saudades da mãe.

- Por que mamãe e Kate não puderam vir? - Charles questionou, em tom angustiado. O pai lhe deu uma rápida olhadela.

- Sua mãe e sua irmã estão ocupadas. As feiras estão chegando, temos que preparar o melhor que temos para vender. E você já é um homenzinho, está grande o suficiente para cumprir seus deveres por si próprio.

Charles fungou.

- Não entendo. Em fevereiro, eu tinha sete anos e era proibido de sair de casa sem você ou mamãe. Agora, continuo com sete anos e vocês querem me largar em algum lugar estranho.

O pai estancou, girando o corpo e segurando o filho pelos ombros pequenos.

- Escute, Charles. Não quero que se refira assim ao seu novo lar. Sabe o quão duro está sendo para mim e sua mãe fazer isso? Estamos dando o melhor de nós porque você tem uma chance de ter uma vida melhor. Você não será como eu, sua mãe ou sua irmã, ou como os meninos que vê nas feiras. Você será especial. Morará na Casa de Deus.

- Eu não quero! Quero ser igual a vocês, igual a Kate! Somos uma família!

As narinas do homem se dilataram e seu rosto avermelhou, o que era um mau sinal para Charles - seu pai estava irritado. Esperou sentir o contato brusco de um tapa ou algo semelhante, mas o pai simplesmente retomou a caminhada, puxando-o pela mão sem olhá-lo.

- Você vai para a Igreja. Vai ser um homem honrado. Ainda terá a nós, mas terá que aprender a viver sem nós.

Charles não respondeu. Queria chorar, mas tinha medo que o pai se irritasse novamente. Engoliu em seco e tentou contar as pegadas deixadas pelas botinas de couro do pai para se distrair, mas andavam em um ritmo acelerado demais para isso.

O menino levantou a cabeça ao perceber um burburinho de vozes baixas, e pai e filho pararam de andar. Encontravam-se parados diante de uma pequena igreja feudal, de torres tortas e paredes escuras. Charles lembrava-se de frequentar aquele local muitas vezes, especialmente aos domingos. Alguns meses atrás, sua mãe havia parado de ir. Depois, por razões que eram igualmente desconhecidas para o garoto, sua irmã Katherine também não lhe acompanhava mais nas missas.

- Ah, Richard! - um homem gordo e pequeno, de feições aveludadas e brancas, aproximou-se de seu pai, que fez uma mesura respeitosa. O padre sorriu. - Vamos, meu bom homem. Vejo que trouxe o pequeno.

O olhar avaliador e gentil do homem recaiu sobre Charles, e ele prestou atenção nos olhos apertados e velhos, e na batina branca que parecia quase imaculada em meio a paisagem cinzenta.

- Qual é o seu nome, meu jovem?

- Charles. Charles Kristof.

- Bom dia, Charles Kristof. Sou o padre Cornelius. Espero que goste daqui.

Seu tom era simpático, mas a imagem esbranquiçada do padre emitia uma frialdade estranha. Charles se retraiu, e Cornelius passou-lhe a mão pelo ombro, empurrando-o em direção aos degraus de pedra.

- Acerte o preço com Giuseppe, ele deve chegar a qualquer momento - disse Cornelius em tom baixo para o pai do garoto. Depois, virou-se para Charles e abriu um sorriso estrangulado. - Entre, meu pequeno. Não temos tempo a perder. A Casa de Deus necessita urgentemente de novos servos.

Tropeçando na barra das calças, Charles foi impelido para a nave¹ da Igreja, os familiares bancos de madeira parecendo estranhos sem a luz dos archotes comumente acesos nas missas. O menino tentou se virar e olhar uma última vez para o pai, mas a imagem corpulenta do padre bloqueou sua visão. Ele sorriu novamente para o garoto, que se sentiu desconfortável.

- Você já conhece nosso coral, Charles? São muito talentosos, e a maioria tem a sua idade. Se você tiver o dom do canto, poderá até mesmo ser selecionado para a capital.

O olhar do menino seguiu o dedo gordo em riste do padre, que apontava para uma fileira de garotos enfiados em batinas longas e douradas, acompanhados por um outro padre na parte traseira do altar. A maioria dos meninos o olhava com curiosidade e cochichava.

- Terei que cantar? - perguntou Charles, incerto.

- Seu pai é um homem abençoado, Charles. Deus o presenteou com uma criança pura como você. - Cornelius sorria. - As vozes do canto celestial precisam ser puras, como a sua. Você será como um pequeno anjo do Senhor.

- Ganharei asas? - indagou o menino, sentindo-se interessado.

O rosto de Cornelius pareceu endurecer. Depois, o padre riu.

- Ah, não, meu menino. Deus precisa que você fiquei aqui. Se algum dia Ele precisar que você voe, pode ter certeza, você terá suas asas. Mas não é o caso.

- Não posso ser um anjo se não tiver asas.

- Bem, existem vários tipos de anjos. Agora, você me mostrará que é um filho de Deus comportado, e vamos encerrar essa discussão e focar no que é importante. Há algo que você precisa fazer antes de alinhar-se no Coral.

O padre guiou-o até uma pequena escada tortuosa em um dos cantos do altar, que subia em espiral. Antes que as paredes abafassem o som por completo, Charles pôde ouvir a voz melodiosa dos garotos do Coral emitirem notas trêmulas.

Cornelius empurrou uma porta de madeira pesada, e seguiram por mais um corredor. Charles não imaginava que tantos corredores pudessem caber numa Igreja tão pequena.

O padre e o menino estancaram em frente a uma porta de carvalho. Duas batidas fracas de Cornelius, e uma sinalização positiva do outro lado da porta:

- Entre.

O homem segurou a mão do menino, e entraram na pequena sala. Charles engoliu em seco; era a sala mais estranha que já vira. As paredes eram de um branco ofuscante, que não combinava com o ar encardido do restante da construção. Uma cama de estrutura metálica repousava no meio da sala, aparentemente não muito confortável. Não havia travesseiros, e estava coberta por um lençol sujo. Uma mesinha de metal estava atulhada de objetos compridos e pontudos que ele nunca vira na vida, e algo que pareciam grandes tesouras de prata. Do lado da mesa, quatro homens conversavam, e voltaram subitamente a atenção para os recém-chegados. Dois eram padres, um era acólito, e o outro usava longas vestes pretas e um pequeno óculos de aro de tartaruga, e ocupava suas mãos com uma tesoura minúscula.

- É esse? O filho dos Kristof? - perguntou o padre mais velho, sem olhar para o garoto.

- Sou eu - assentiu Charles.

O padre lançou-lhe um olhar frio.

- Aprenda a falar quando for requisitado, garoto. Respeite os princípios deste lugar como os de sua casa.

Cornelius sorriu nervosamente, empurrando Charles para dentro da sala. De perto, as paredes pareciam cavernosas.

- Ele acabou de chegar. Estávamos prestes a começar o ensaio dos mezzo-sopranos e dos castrati.

Os outros padres o avaliaram com um olhar frio. Timidamente, o acólito pegou algo que repousava sobre a cama, e estendeu-o na frente do garoto, que reconheceu a letra de um canto religioso.

- Cante para nós, por favor.

Charles sentiu as pernas tremerem.

- Eu não sei cantar. Nunca tive aulas de canto.

- Está tudo bem. - garantiu o acólito, tentando sorrir. - Apenas precisamos ouvir o timbre natural da sua voz.

Após alguns segundos de hesitação, o menino cumpriu o que lhe fora designado. Algumas vezes, um dos padres interferia e lhe pedia para fazer um som mais agudo, ou mais grave. Sua garganta parecia seca quando ele terminou o último verso.

- Aceitável - disse um dos padres em tom indiferente.

- Seria uma pena perder mais uma voz infantil em poucos anos - lamentou o outro, os olhos fustigando. - E depois da proibição de mulheres no coral, não temos muita opção. Precisamos de mais tenores e castrati, afinal.

Charles não entendia muito bem o sentido de tudo aquilo. A mão de Cornelius apertou seu ombro.

- Um castrati, então?

- Sim. Se conseguíssemos castrati suficiente para a capital...

O garoto quis perguntar o que estava acontecendo, mas a reprimenda do padre ainda ecoava em sua mente. Permaneceu quieto, fixando os olhos no brilho metálico da mesa.

- Podemos começar agora, acredito, Foster...? - a voz de Cornelius veio de seu lado direito, fazendo Charles prestar atenção na conversa.

O homem de preto, que devia ser Foster, pigarreou.

- O menino vai precisar de algumas horas na água gelada. E vou precisar de ataduras.

O sangue de Charles esfriou. Ele não conseguiu se conter.

- Ataduras? Quem está machucado?

- Ninguém está machucado. - interviu o padre Cornelius rapidamente, abrindo um sorriso tremido. - Precisamos apenas da sua colaboração, Charles. Confie em mim.

- Confiar? O que vão fazer comigo?

Os homens lhe ignoraram, conversando entre si.

- Roseworm, traga o tanque. Tente esfriar a água o mais rápido possível.

- Sim, senhor.

Algo dentro de Charles começou a entrar em pânico. Ataduras. Água. Tanque. Iria ser afogado? O que tinha feito de errado? Ele desvencilhou-se do toque suave de Cornelius em seu ombro, e tentou alcançar a porta. O homem de preto, Foster, empurrou-o de volta.

- Procure ficar quieto. - resmungou. - Só vai doer mais se você der trabalho.

- Doer? - as mãos de Charles tremiam. - O que vão fazer comigo? Vocês não podem me machucar! Onde está meu pai?

Um dos padres girou os olhos. As mãos de Cornelius pousaram nos ombros do menino novamente.

- Charles...

- Se afaste de mim! - ele empurrou as mãos velhas do homem para longe, e se atirou contra a porta. O acólito o segurou por um dos braços, e Foster segurou-lhe pelo outro. Ambos lhe arrastaram até a cama enquanto Charles gritava e esperneava.

- Odeio quando eles ficam assim - resmungou um dos padres.

Charles foi empurrado contra o colchão murcho, o cheiro metálico da cama dando-lhe náuseas. Em seus esforços desesperados, tentou morder as mãos do acólito, que empurrou sua cabeça, tampando-lhe os olhos. Charles ainda berrava, e sentiu algo gelado se fechar por cima de seus punhos e tornozelos. Estava preso à cama.

- Me soltem! - ele gritou em tom esganiçado. - Me soltem! Agora!

Lágrimas irregulares corriam de seus olhos, e ele debatia-se na cama. Cornelius mordeu os lábios murchos nervosamente.

- Por favor, meu garoto. Se acalme. Não faremos nenhum mal a você. É algo necessário. Todo castrato passa por isso. Você está trilhando um caminho santo de...

- Eu não quero! - berrou Charles, mal reconhecendo sua própria voz rouca pelo desespero. - Me soltem! Agora!

Um barulho forte ecoou pelo aposento. Era um som semelhante a um grande punho de borracha acertando o chão. Charles teve tempo de ver Cornelius arregalar os olhos para o teto, antes que um clarão branco invadisse o quarto e algo se chocasse com violência contra o menino.

Charles tossiu, sentindo-se sem ar. Alguma coisa - algum bicho - agarrava-se a ele. Alguma coisa enorme, que agarrava suas pernas até sua cabeça, comprimindo o corpo contra o seu. Pelos muito longos - ou seriam cabelos? - depositavam-se em seu rosto, tampando-lhe a visão. Ele ouviu um dos padres dar uma exclamação em latim, acompanhado por alguns gritos de surpresa, e uma agitação de crucifixos e preces se desenrolou ao seu redor.

- O que... - ele murmurou.

Seu pescoço era apertado com força, mas não era um aperto agressivo. Charles sentia-se como se um grande panda chinês de cabelos louros tivesse resolvido lhe abraçar. Ele tossiu, sem ar, e o aperto diminuiu; os fios louros saíram de seu rosto, e, em cima dele, erguia-se a criatura mais magnífica que ele jamais vira.

A primeira coisa que ele reparou foram as asas. Eram estruturas grandes e colossais, cobertas por penas brancas recurvas, curvando-se elegantemente e envolvendo os ombros pálidos de algo que parecia humanoide, e, ao mesmo tempo, surreal. Braços longos e delicados terminavam em ombros ossudos, banhados por fios louros que chegavam até o queixo de um rosto belo, que culminava a perfeição. Um par de olhos plantava-se perfeitamente alinhado com o nariz, como o mais perfeito dos humanos poderia sonhar em ter, e os orbes mudavam lentamente de cor, mas sempre variando entre o dourado e o azul. O tórax liso indicava que era uma criatura masculina jovem, mas Charles achou-o tão impecável que parecia errado defini-lo por termos humanos. Era mais sacro e resplandecente que qualquer pintura angélica, irradiando perfeição em cada um de seus traços.

Por um momento, ele esqueceu de seus pulsos algemados. "Eu quero ser assim quando crescer", pensou, abobado.

O anjo continuava olhando-o com olhos neutros e sérios. Eles abandonaram o tom dourado e ficaram mais azuis. Charles permitiu-se olhar ao redor, esticando o pescoço, e surpreendeu-se ao achar todos os padres, o acólito e Foster de cabeça abaixada, segurando terços nas mãos e cobrindo os olhos. Por que cobrir os olhos? Ele não estava pelado, oras. Talvez fosse o brilho ofuscante da criatura.

Charles quis dizer alguma coisa, mas sua boca parecia seca. Ele olhou curioso para o halo dourado que circundava a cabeça da criatura, sentindo os olhos doerem. Aquilo não parecia fazer parte do plano inicial dos padres.

O anjo desviou o olhar dele, e um simples toque de suas mãos douradas fez os aneis de ferro que prendiam os pulsos e tornozelos de Charles estalarem e abrirem. A cabeça loura virou-se para os membros ajoelhados do clero, e, para a surpresa de Charles, o anjo falou. Ele falava rápido e agressivamente, um dialeto que Charles não conhecia, mas que lhe lembrava o latim. Em um momento especial, ele pareceu se irritar, os olhos lampejando dourados, a voz gritando com mais ímpeto. Quando ele saiu de cima de Charles e pousou no chão, o menino reparou numa ardência nas suas canelas. Fogo. Estavam queimando.

O garoto gritou, agitando as pernas, mas o anjo não lhe deu atenção. Os pés de Charles, agora livres, debatiam-se de dor, e ele acabou chutando o vaso de água gelada que o acólito trouxera poucos segundos antes do clarão, convenientemente derrubando-o sobre as canelas e apagando o fogo com um chiado. A carne doía e ele conseguia ver algumas bolhas e sangue resultantes da queimadura, mas a água gelada amenizara a dor. Aliviado, Charles voltou a prestar atenção no anjo, que caminhava entre os padres, e entendeu de onde vieram suas queimaduras; os pés da criatura estavam em chamas. Deviam ter queimado suas canelas quando ele se atirou por cima de Charles.

Charles quis gritar e avisá-lo do fato, mas o anjo não parecia se incomodar. Suas pegadas deixavam marcas enegrecidas de queimado no piso. Ele aproximou-se de um dos padres, levantando-lhe o rosto com uma das mãos esculturais e atirando-o no chão. Charles prendeu a respiração. O quarto permanecia em silêncio, e o anjo caminhou raivosamente para outro padre.

- Pare! - gritou Charles, sem saber o que fazer.

Os pés flamejantes estancaram, e um par de olhos azuis assustados mirou o garoto por debaixo da cabeleira loura. O anjo encolheu-se, e suas asas lhe envolveram como um casulo, antes que ele abrisse-as bruscamente e irrompesse pelo teto, explodindo o telhado.

O garoto cobriu a cabeça, esperando alguns pedregulhos lhe acertarem. Suas canelas ardiam e doíam - a água gelada estava perdendo seu efeito anestesiante.

Os homens continuavam ajoelhados, e o padre continuava com o rosto enterrado no chão. Atônito, Charles teve medo de que eles estivessem mortos. O acólito levantou o rosto timidamente, coçando os olhos e tremendo. Suas mãos soltaram o terço e ele começou a beijar o chão, rezando baixinho.

Os padres pareciam trôpegos, murmurando incoerências em latim e olhando com admiração o nariz sangrento do padre que fora atirado contra o chão. Foster parecia em estado de choque; ele levantou-se rapidamente, apanhando sua bolsa de cirurgião do outro lado da sala e enfiando os equipamentos metálicos dentro, e saiu da sala quase em ritmo de fuga, batendo a porta atrás de si.

- O que foi aquilo? - perguntou Charles, confuso com o leque de reações enlouquecidas à sua volta. - Quem era aquele?

Por alguns minutos, ninguém lhe deu atenção. Então Cornelius aproximou-se, trôpego, puxando o menino pelos ombros e o abraçando, quase arrancando-lhe da cama:

- Glória a Deus. - ele murmurou. - Glória a Deus.

O padre repetiu isso tantas vezes que a cabeça de Charles pareceu inchar. Ele gemeu de dor quando o padre tentou tirá-lo da cama; suas canelas queimadas doíam horrivelmente.

- O que aconteceu? - repetiu o menino. - Aquilo fazia parte? Já posso ir para o Coral?

- Você não será do Coral, minha criança - murmurou Cornélio, com dedos trêmulos. - Divina seja a vontade de Deus. Puniria a todos nós se o transformássemos num castrati! - ele exclamou algo em latim, que fugiu à compreensão do garoto.

Tentando espiar suas canelas queimadas enquanto os padres estavam em polvorosa, Charles encontrou algumas penas em seu colchão. Eram macias e enormes, e deviam provir das asas magníficas daquela criatura.

- O que era aquilo? Uma ave? Deus?

Os outros padres beijavam as queimaduras no chão. Cornelius olhou para as canelas em carne viva do menino como se estas fossem relíquias sagradas.

- Aquilo, meu filho - ele sussurrou -, era um servo do Senhor. Um anjo.


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Notas finais do capítulo

¹Nave: ala central da Igreja, onde ficam os bancos para as missas.
Well, não era para esse cap. ser TÃO grande o_o, acho que me empolguei nos detalhes. Algumas coisas ainda estão bem confusas, eu sei, mas esse é apenas o começo. Para quem ficou confuso na parte do Charles ter sido preso na cama: os castrati eram meninos que sofriam uma "pequena" cirurgia para manter a voz fina para o resto da vida, sem ser afetada pela puberdade. Basicamente, a cirurgia removia os testículos dos garotos. Essa era uma prática comum da Igreja nos tempos das "caças às bruxas", pois as mulheres haviam sido proibidas de participar dos corais e das atividades eclesiásticas em geral, além de serem mal-vistas pelo clero (o que explica também o fato da mãe e da irmã do Charles pararem de frequentar a Igreja). Os castrati supriam a falta das vozes femininas, pois eles conseguiam reproduzir as notas agudas ideais. Muitas famílias davam seus filhos para a Igreja transformá-los em castrati; eu não posso afirmar com certeza se as crianças eram vendidas, mas lembro de já ter lido algo a respeito, e quis incluir esse aspecto na família do Charles, já que é uma família relativamente pobre. A água gelada mencionada servia como um facilitador da cirurgia. Sobre os "pés de fogo" do anjo, este era o modo como eles foram primariamente retratados artisticamente, antes do Renascimento, mas aqui o fogo vai ter uma importância um pouco diferenciada. Tenho um pequeno fascínio por angelologia, por isso me desculpem se me empolguei demais na parte do anjo 8D Optei por usar uma descrição tradicional de anjos (pele clara, cabelos relativamente longos e louros, olhos azuis, asas brancas), acrescentando apenas o detalhe dos olhos que mudam de cor. Não é a minha forma preferida de descrever anjos, e tenho uma visão um pouco diferente deles, mas acho que a visão tradicional se encaixa melhor na história. Enfim, eu já escrevi demais, meus pulsos doem, e quero fazer o possível para manter o ritmo e postar um novo capítulo amanhã. Não sei se conseguirei postar sexta e sábado, mas farei o possível D: E obrigada por aguentarem essa chateação até aqui! ♥ q



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