O Colecionador De Penas escrita por Yukii


Capítulo 1
Prólogo - Judicium Dei


Notas iniciais do capítulo

Coisas importantes que você deve saber (mais ou menos) para ler esse capítulo e entendê-lo:
A ordália é uma prática judiciária antiga, típica da Idade Média. Basicamente, consistia em submeter o acusado a uma provação dolorosa, e, se ele passasse por essa provação sem sequelas graves, era considerado inocente, pois considerava-se que ele havia recebido 'ajuda divina'. Se fosse ferido, porém, era considerado culpado. Se quiserem saber mais, procurem no google, wikipédia ou qualquer lugar desses. q



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Ainda não havia chegado a minha vez. Ainda. Meus dedos brincavam com a porta de madeira fechada por fora, e prendi a respiração, num esforço inconsciente para reprimir minha angústia.

Em algum lugar do outro lado daquela porta, um pote de água fervente me esperava.

Eu desenhava círculos invisíveis na madeira com meu indicador suado. Em muitos casos, água fervente pode ser inofensiva e útil. Mas não em uma ordália.

Algumas cadeiras eram incessantemente arrastadas do outro lado, e uma parte de mim se agitou. Não me envergonho de admitir, eu sentia medo. Muito medo. Minha única possível chance de salvação podia estar sentada em uma daquelas cadeiras, ou poderia não estar - tudo dependia da minha sorte.

Uma mão gelada se fechou em torno do meu braço esquerdo com certa força. Não me sobressaltei, reconhecendo o toque, e virando-me para encarar Anya, cujos nós dos dedos começavam a branquear com a pressão que ela fazia sobre minha pele.

Ela abriu e fechou a boca repetidas vezes, incapaz de articular uma palavra. Alguns fiapos de cabelo lhe caíam pelo rosto, adicionando traços castanhos à sua pele pálida, que começava a ficar rosada pelo nervosismo. Desenlacei seus dedos do meu braço e pousei as mãos nos ombros assustados dela.

– Você está mais nervosa que eu, Anne.

Ela fez um sinal forte de não com a cabeça, e puxou algo das vestes. Quarenta segundos depois, recebi de suas mãos um papel pequeno com a seguinte inscrição:

Vai ficar tudo bem. Eu tenho certeza. Ele vai lhe ajudar.

Eu não tinha tanta certeza, mas sorri para ela.

– Oh, tinha me esquecido que você já passou por algo semelhante. Bem, eu devia estar contente. Pelo menos vou ter alguma ajuda, acho. Ninguém lhe ajudou na sua ordália, e olhe só para você, viva e altiva bem na minha frente.

Anya me olhou com orbes preocupados. Minha explosão súbita de autoconfiança parecia não tê-la enganado. Novamente, ela pegou outro pedaço de papel, rabiscou-o por alguns segundos e me entregou:

Não se esconda de mim. Eu sei como é. Sei como é angustiante. Sei que está com medo. Mas precisamos confiar nele.

Engoli em seco. Algo pesado foi arrastado do outro lado da porta.

– Eu confiaria a minha vida a ele. Cem vezes.  -  Sussurrei. Não havia outra razão para que eu já não estivesse fora de mim, expondo meu enorme lado medroso e covarde que se manifestava nas mais inusitadas situações.

Anya deu um sorriso diminuto, e vi seus lábios mudos formarem os dizeres "Eu também", sem nenhum som sair de sua boca. Dei um sorriso tremido. Um som forte de martelada veio da sala além da porta.

– Kristof, Charles.

A menção do meu nome na voz estranhamente grossa e abafada pela madeira me fez cerrar os punhos e dar as costas para Anya. Um tropel de passos se aproximou, e um homem baixo e magrelo abriu a porta para mim.

Entrei lentamente na sala, com Anya se esgueirando pelas minhas costas e indo ocupar seu devido lugar nas cadeiras de madeira. Não tornei a olhá-la. Ajoelhei-me em uma pequena elevação de madeira escura diante da mesa que me separava do juiz e do aplicador da ordália.

– Você tem plena consciência das razões que o trazem aqui, Sr. Kristof?

O pronome de tratamento vinculado me fez sentir trinta anos mais velho. Eu mal chegara aos dezesseis.

– Sim, senhor.

– E quais seriam?

– Devo submeter a veracidade dos meus dizeres ao julgamento divino, senhor.

Um vigário tossiu em algum lugar da platéia improvisada. Eu estava totalmente de costas para todos, menos para o juiz e o aplicador. Imaginei Anya balançando os pés enquanto tentava se acalmar, e quase pude sentir seu olhar em minha nuca. Quis me virar e checar se quem eu esperava já havia chegado, mas sabia que não podia fazer isso. Não ainda.

– Levante-se, Charles Kristof.

Obedeci a ordem do aplicador da ordália, olhando-o nos olhos. Era um homem de meia-idade, robusto e cansado, com bolsas murchas embaixo dos olhos e uma auréola de cabelos grisalhos no topo da cabeça.

Ele apontou para uma segunda mesa, à minha esquerda, que meus olhos haviam propositalmente evitado quando entrei na sala. Ali, um bico de gás fornecia calor a uma panela borbulhante e funda.

– Neste recipiente, Sr. Kristof - começou o homem -, há uma pedra lisa e redonda. O senhor precisa pegá-la, usando sua mão direita. Pelas diretrizes impostas pela ordália, sendo o senhor inocente perante as acusações que sofre, esta água fervente será incapaz de lhe causar danos, ou causará danos minoritários, sob classificação de um membro do clero experiente. Se houver verdade nas acusações que lhe são impostas, porém, sofrerá altos danos, pois Deus jamais interfere com milagres a favor dos culpados.

O vigário tossiu novamente, e imaginei seu claro descontentamento com aquilo tudo. Muitos membros do clero não gostavam da ordália, mas não havia muito que pudessem fazer além de tossir para demonstrar sua repúdia.

– Você pode começar agora, Sr. Kristof.

Era agora.

Antes de caminhar até a mesa, dei uma rápida olhadela para os espectadores. Pude reconhecer o olhar nervoso de Anya sob seus cabelos castanhos desalinhados, e dirigi o olhar para o assento ao lado dela. Estava vazio.

Ele não estava ali.

Meu coração pareceu desgrudar do restante das minhas entranhas, pulsando com dificuldade. Subitamente, minha mão direita tremeu. O aplicador da ordália me olhava com irritação.

– Algum problema, Sr. Kristof? perguntou o juiz em tom seco.

Demorei alguns segundos para responder.

– Nenhum, senhor. Nenhum.

Adiantei meus passos, prostrando-me diante da mesa especial com o bico de gás e a panela cheia de água fervente. O vapor se desprendia numa massa branca e condensada, impedindo-me de ver o interior da panela. A simples proximidade já me fazia sentir calor, indicando a alta temperatura do líquido.

– Apanhe a pedra, por favor, Sr. Kristof. ordenou o aplicador, sem muita paciência.

– Sim, senhor.  - Sussurrei. Aquele era o meu fim. Um soluço ecoou pela sala. Anya estava chorando. Ninguém lhe deu atenção.

Estendi minha mão sobre o recipiente, amaldiçoando minha existência.

Pela primeira vez desde muito tempo, me senti sozinho.

Não reprimi meus gritos de dor ao sentir minha mão direita virar carne viva em meio ao vapor quente.

O Juízo Divino estava me condenando.




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Notas finais do capítulo

Bom, esse foi só o prólogo. Eu sei que vocês devem ter entendido pouca coisa e me achado meio inconsistente em algumas partes, mas essa foi a intenção - deixar pontas soltas (não, a intenção não foi ser inconsistente). Esse prólogo, apesar de ser nomeado como tal, não acontece antes do primeiro capítulo. O próximo capítulo irá para o VERDADEIRO início da história, e o prólogo será retomado alguns capítulos mais tarde. Por favor, deixem reviews dizendo o que acharam, não quero abandonar essa história por falta de leitores. :c