Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 20
XIX — Goodbye, goodbye, goodbye




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“Adeus, adeus, adeus

Você era maior que todo o céu

Você era mais do que um curto período de tempo

E eu tenho muito o que lamentar

Tenho muito o que viver sem

Eu nunca vou saber

O que poderia ter sido, o que deveria ter sido você”

(Bigger Than the Whole Sky — Taylor Swift)

 ★

Valerie costumava amar ambientes silenciosos. A praia, as montanhas. O escritório. O quarto de hotel. Até mesmo a própria vizinhança de Little River em comparação à Little Havana. Quando mudou-se para lá com Frank, as primeiras semanas eram insuportáveis. Para Valerie desvencilhar-se da crença de que barulhos eram obrigatoriamente ruins, demorou um tempo considerável. Sempre que visitava a mãe, percebia que falava gritando. E, quando voltava para casa, Frank dizia que ela estava falando muito baixo.

Agora o silêncio era a mão na escuridão, que a convidava a aconchegar-se. Valerie estenderia a mão de volta, se tivesse forças. Mas tudo doía. Talvez outra hora.

— Senhora Ortiz, precisamos cuidar de você — a voz distante da enfermeira chamou sua atenção. Valerie virou os olhos o suficiente para alcançá-la pela visão periférica. — Seus parentes estão perguntando quem é que você gostaria que a acompanhasse aqui, no leito. Você consegue me dizer?

Ela fechou os olhos. Se ela se esforçasse um pouco, conseguiria escutar o soro pingando. Conversas ao longe, como cochichos. Os bebês chorando na ala da maternidade. Menos a sua Clara. 

Aquela mesma enfermeira havia permitido que Valerie visse a filha antes de levá-la para longe. Ela era linda. Seu instinto não falhou. Clara era loira como o pai. Era tão parecida com o pai que era até injusto para com Valerie, que a havia carregado por tantos meses. Linda, porém a pele em tom arroxeado roubava-lhe a magia que deveria estar envolvida com o momento em que as duas iriam se conhecer pessoalmente. Valerie a segurou nos braços, incapaz de conter o sorriso. Pelo menos, ela se lembrava de ter sorrido. Eram tantos medicamentos, tantas pessoas ao redor, tanta luz… 

— Senhora Ortiz? 

— Hum?

— Um acompanhante — ela repetiu, usando seu melhor tom gentil. — Seu marido está aqui, sua irmã e sua mãe também. Infelizmente, sua irmã é menor de idade, portanto não podemos permitir que ela fique aqui. Só no horário de visitas. Que tal acenar com a cabeça?

Valerie grunhiu afirmativamente. Ah, Ronnie… Ela tinha aula no dia seguinte. Valerie teria de lembrar de dizer à mamãe para que desse um dia de folga para ela. Era o último ano de escola da irmã, e logo teria mais do que se preocupar além de notas. Sim, Veronica merecia uma pausa.

— Gostaria que eu chamasse seu esposo? 

Valerie negou com a cabeça. O cabelo estava tão suado que nem mesmo o movimento foi suficiente para desgrudá-lo de seu pescoço. 

Não, era hora de pensar. Frank. Frank.

Por que não Frank? Ele era seu marido. Ele era o pai. 

Não, isso seria desonesto. Valerie não conseguiria olhar para ele depois de tudo. Porque, ao ver os cabelos loiros de Clara, não seria possível continuar mentindo sobre a paternidade dela. Talvez ele até já soubesse. Talvez já estivesse enojado. Os médicos costumavam mostrar os filhos aos pais se eles não estivessem na sala de cirurgia? 

Valerie iria ressentir-se de Frank se ele não estivesse presente em seu parto se as coisas não tivessem acontecido como aconteceram. Entretanto, seu dom não era mudar o passado. Parando para pensar, era um alívio que Frank não estivesse ali. Ele era um bom homem. Não merecia ser traído daquela forma.

Talvez fosse por isso que a vida não lhe permitiu ficar com Clara. É claro que sim. Ela era uma mentirosa. Veronica tinha razão. Ter manipulado Frank a levou até ali. Valerie deveria ter tido aquela filha sozinha. Tudo o que acontecia era culpa sua. Clara e John.

Era tudo sua culpa. Não havia outra explicação. Ela merecia tudo aquilo.

— Tudo bem, senhora. Vou chamar sua mãe para vir ficar com você. Na volta, vamos retirar o seu leite e dar um banho no leito. 

Valerie abriu os olhos, mas eles ainda estavam fora de foco. Para onde deveria olhar? Para baixo, para si? Ou para a enfermeira? Ou para o soro? Seu cérebro parecia ser feito de gelo. Mais cedo ou mais tarde aquilo teria de derreter. E o que lhe restaria, então?

Leite? Leite para quem? Ainda poderia ser útil para alguém?

Ela escutou os passos da enfermeira afastando-se. Valerie baixou os olhos para a própria barriga assim que a enfermeira saiu de vista. Se sua filha não estava mais ali, por que ela ainda enxergava o relevo? Fazendo um esforço, Valerie arrastou a mão até o ventre. 

Sem mais chutes. Sem mais soluços. Apenas o silêncio.

E se ela estivesse imaginando tudo aquilo? Teria de ser um sonho ruim. Sim, era isso. Quando acordasse, Alex estaria ali. De alguma forma, ele teria descoberto sobre a gravidez. Teria voltado por ela. Teria dito que a amava. E John voltaria para casa, porque ele havia feito uma promessa. Ninguém que é bom faz promessas que não pode cumprir. Era o que sua mãe dizia, quando ela ainda era bem pequena. Cuidado com as promessas, Valerie. Elas podem ser prisões. 

— Amor? — mamãe chamou-a, da beirada da cama. Há quanto tempo ela estava ali? — Se importa se eu me sentar aqui? 

Valerie negou com a cabeça. Mamãe era um lar seguro, isso era bom. Ah, sim. Era por isso que não queria que Frank ficasse ali com ela. Frank era muito volátil. Mamãe era sinônimo de certezas. 

— Meu amor… Minha menina… — Victoria sequer sabia o que dizer. Mas ela sempre sabia o que fazer para melhorar as coisas, porque avançou a mão diretamente nos fios de cabelo bagunçados da filha. Tirá-los do pescoço foi um respiro. — Eu sinto tanto… 

Valerie estendeu uma mão para ela – a mão do braço que não recebia o soro. Victoria segurou-a tão delicadamente que ela mal a sentiu. As palavras estavam engasgadas na garganta. Com a mãe ao lado, ela finalmente conseguiu chorar. Quando a primeira lágrima caiu, Valerie teve ciência de que aquela seria a última vez que iria chorar.

Foi como ondas quebrantando na praia ou como a chuva de verão que haviam castigado as janelas do hotel no ano anterior. Valerie sentia o próprio corpo sacudindo-se todo, na tentativa de expulsar o que tinha sobrado de Clara em seu corpo. Ela não queria chorar, não se isso significasse se despedir de sua filha. Não era justo que Clara tivesse que pagar por seus erros.

Valerie seria capaz de implorar que a vida escolhesse ela no lugar de Clara. Não era justo que Clara não pudesse sentir o quanto era amada. 

— Mãe… 

Foi tudo que ela conseguiu dizer, e ainda assim o protesto veio num ganido. Que transformou-se num uivo de dor, prolongado. Victoria continuou sustentando-a nos braços, com as rochas que recebem o impacto das ondas. 

— Eu sei, meu amor — Victoria sussurrou, com a voz tão embargada quanto a dela. — Vamos passar por isso juntas… Você não está sozinha… 

— E-eu fiz tudo errado, não fiz? T-tudo errado e isso m-matou a Clary… 

Victoria negou com a cabeça, acariciando os cachos dela com ternura. Valerie ressentiu-se do gesto e o carinho da mãe fez com que sentisse enjoos. Era ela quem deveria acariciar a filha naquele momento.

— Você não fez nada de errado, meu bem… É só que… Às vezes, essas coisas acontecem… 

— Por que? — Valerie rugiu. — Por que comigo? Foi porque eu disse que o amava? Porque ele não merecia meu amor? Clara iria amá-lo tanto, iria… Dizer pra ele todo dia que o amava… Ele nunca mais iria ter dúvidas, porque ia ter eu e ela… 

— Querida, do que é que você está falando…?

Valerie percebeu o seu erro só quando a mãe a respondeu. Ainda assim, os olhos dela eram tão doces e convidativos. E o coração dela doía tanto… Se chorar fosse expulsar Clara dali, por que ela não poderia tentar o mesmo com Alex? Ele já tinha morado em seu coração por tempo suficiente. Era hora de dizer adeus. Talvez… Talvez fosse por isso que a vida havia lhe tirado Clara. Para finalmente podá-lo. Estações mudam por um motivo…

Quanto tempo teria que dizer a si mesma que aquilo não era para ser? Quanto tempo até se convencer de palavras que não acreditava?

— Eu o amei tanto — Valerie sussurrou, abaixando o olhar para as mãos da mãe. Como a dela, o dedo dela era adornado com uma aliança. Que curioso como dois objetos iguais podem carregar significados tão diferentes. — Não é justo que o amor machuque tanto… Tudo que eu amo vai embora… Por que é que ele teve que ir embora, mamãe?

— Está falando do seu pai, meu amor?

Valerie olhou bem para a mãe. Victoria estava tão exausta quanto ela. Dizer aquilo em voz alta traria tudo que ela precisava, mas simultaneamente… Algo a impedia de esquecê-lo por completo. Sua promessa. 

Sim, o “eu vou amá-lo até que o céu pare a chuva, e até que as estrelas caiam do céu” de Alexander era um parente muito distante do “prometo ser fiel, amar-te e respeitar-te” de Frank. Enquanto que a primeira promessa veio de seu âmago, ditas de peito escancarado e vulnerável, a segunda foi mecânica. Palavras que eram ditas geração após geração por respeito à tradição. O que podia cumprir por Frank era a fidelidade e o respeito, agora o amor… 

Qualquer promessa que viria depois que dissesse respeito a amor seria ofuscada por aquela primeira. 

Jamais escutaria aquela música novamente.

Valerie não precisava esquecê-lo, só… Esquecer o porquê de precisar esquecê-lo. Podia guardá-lo no fundo da gaveta de coração. Pegaria algum pó, mas… Continuaria lá. Como aquela peça de roupa que costumava ser sua favorita e agora já não serve mais, porém você não é capaz de jogar fora pelo valor afetivo.

Se ela fosse capaz de fazer aquilo com Alex, também poderia aplicar-se a John Bowman.

— Sim, mamãe — Valerie não desviou o olhar, mas a mãe sim. Como deveria ser difícil cuidar de uma filha passível de loucura. Para consolidar sua própria farsa, ela repetiu num balbucio: — Sim.

— Eu entendo que o amor pode ser difícil, Valerie… Mas você não pode se fechar para ele só porque coisas ruins aconteceram. Não é assim que o amor funciona. 

Valerie abriu um sorriso triste, olhando por cima do ombro da mãe. A enfermeira entrava pela porta, trazendo uma bandeja repleta de instrumentos médicos que em nada ajudavam para que Valerie se sentisse melhor consigo mesma. Que grande heroína, ela era. Não conseguiu sequer gerar um filho – o que todos gostavam de dizer que era a única tarefa de uma mulher após o matrimônio –, não conseguiu mentir para o próprio coração e nem se impedir de sentir a autopiedade. Era quase risível. 

— Espere só para ver, mamãe. Você… Sabe o que dizem, não? — Valerie riu fraco. — “Coração de mãe sempre cabe mais um”. Mas eu não sou mais uma mãe, sou?

— Você sempre será uma mãe, Valerie — mamãe sorriu, mas Valerie conseguiu ler a melancolia no canto de seus lábios. — Esse sentimento não morre. Eu sei que dói e que essa dor parece que não vai passar nunca, mas… Daqui a alguns anos, vai doer menos. E, quando menos esperar, a vida vai voltar a ser suportável. Viva apenas o dia de hoje, e o amanhã se encarregará do amanhã. 

Dando-se por vencida, Valerie permitiu que a enfermeira se aproximasse com seus aparatos. A raiva dela, que antes ribombava no coração, agora parecia ter se escondido junto ao amor e à dor. A maré recuava.

Se olhasse bem no fundo, encontraria um fundo falso ou uma parede? Qualquer que fosse a resposta, seu coração fora dilacerado. Se procurasse por ele, ficava a dúvida: encontraria carniça ou ele teria a decência de desintegrar-se de vez? 

•·················•·················•

Valerie nunca tinha visto sua casa tão arrumada antes. Ela amava ter os próprios pertences organizados e limpos, porém aquilo tinha cara de um trabalho em equipe e remunerado.

Sentia-se uma estranha em sua própria casa. Talvez porque aquela fosse a casa de Frank, onde ela apenas tinha a permissão formal de permanecer mediante condições específicas. Se fosse sua, com decorações que Valerie tivesse escolhido a dedo – como era sua metade do quarto em Little River, por exemplo –, ela poderia abrir o coração para a sensação de ser bem-vinda num lugar. Contudo… 

Entrar em sua casa de braços vazios, sendo acompanhada por Frank, foi o primeiro degrau que Valerie galgou em sua escada mental. O grande problema era a escada estar de ponta-cabeça. Tudo o que ela conhecia e tudo em que acreditava tinha sido colocado em questionamento, e a gravidade cumpria o trabalho de deixar tudo espalhado ao chão. Casa limpa, mente em caos.

— Lar, doce lar — Frank sussurrou. Mais um para seu jogo dos sete erros: Frank sussurrando. Em Little Havana. — Veronica andou bem ocupada limpando tudo por aqui. 

— Lar… — Valerie repetiu, sem qualquer traço de emoção na voz. — Doce lar. 

— É. Está com fome? Eu comprei um monte de frutas… Sua mãe disse que era bom, pra… 

Frank mordeu o lábio, contendo-se. Bom para a recuperação pós-parto, provavelmente. 

Valerie sentia-se uma impostora. Seu corpo ainda estava em combustão, a dor a consumindo em todos os pontos onde pudesse se sustentar. Ainda assim, a dor não havia trazido vida. Mais uma prova de que merecia uma devida punição. Se toda dor traz aprendizado, o que é que Clara teria a lhe ensinar? Valerie tatearia o escuro, procurando pela queda.

— Enfim… — Frank sorriu de lado, sustentando o peso dela nos braços. Ela seria capaz de chorar pela prestatividade que ele estava demonstrando. — Fome? 

— Sem fome… 

— E um banho? Não estou te chamando de fedorenta, mas acho que no hospital não te deram um decente. Banho no leito é só para lavar o básico. Imagino que queira relaxar. 

Valerie ponderou a questão. Como é que Frank ainda tinha coragem de tocá-la? Seu corpo todo estava pegajoso, suado. Morto

Ele ainda fedia a bebida. Seu estado de ressaca era carinhoso, então?

— É, um banho seria bom — ele conduziu-a pelo corredor até o banheiro, que também era a lavanderia. Valerie costumava colocar a roupa limpa na banheira antes de estendê-las no varal. E Frank a censurava, mas sempre ria no final quando pegava-a em flagrante. Como ela gostaria de rir naquele momento… — Como nós fazemos para lavar o seu cabelo, Valley? Parece muito complicado. Eu não consigo acompanhar.

— O que? 

Frank franziu a testa, confuso com a intervenção brusca da esposa. 

— O que… O que

— Do que você me chamou? 

— Valley. Não gostou? 

Um bolo formou-se em sua garganta. Não queria ser grosseira, mas se escutasse aquilo com frequência, as chances de cometer um erro gigantesco e falar sobre ele estavam além de seu controle. Por sorte, Frank logo se retratou:

— Imagino que não é nada legal ser chamada de vale. Desculpe. 

— Tudo bem — a voz dela saiu rouca, estranha aos próprios ouvidos. Se houvesse algum botão que desligasse todos os sons, Valerie já teria o afundado. — Acho que… Só estou cansada. 

— E eu não tiro o seu direito. Você passou por muita coisa durante esses dias.

E ainda assim, é pouco. Qual será a próxima? 

— Obrigada — Valerie murmurou, sentindo a boca ressequida. — Não… Não se preocupe. 

— Tudo bem. Então… Você prefere ficar a sós?

Ela anuiu com a cabeça, sentando-se na banheira. Frank girou as torneiras, adequando a água para não morna. Valerie recordou-se da mãe fazendo o mesmo não tanto tempo antes, quando ela descobriu que estava esperando Clara. Incapaz de fechar os olhos com as lembranças, Valerie suspirou. Frank interpretou aquilo como um bom sinal. 

— É, eu sabia que o banho era a resposta — o tom de voz dele era animado. Ele só estava tentando fazer com que ela respondesse. Ainda assim, toda aquela gentileza fazia com que Valerie quisesse sair correndo. — Se você… Hum… Precisar de qualquer coisa, é só me chamar. Eu venho num minuto. 

Também num minuto, Frank deixou-a sozinha. Ele parecia ansioso por sair dali. Valerie não o culpava. Deveria deprimi-lo ficar ao lado dela. Frank exalava vida. Ela pegou-se pensando como ele estaria agora se não tivesse a pedido em casamento por pena. 

Não, ele não a amava. Podia ter se apaixonado por quem era antes de tudo aquilo acontecer, porém Valerie havia perdido-se no meio do caminho. Frank jamais tinha dito a ela que a amava — com exceção nos votos de casamento. Será que Frank teria permanecido solteiro, se não tivesse se casado com ela? Ao mesmo tempo em que ele era desinibido, com relação às mulheres Frank tendia a levá-las pouco a sério. Será que era assim que ele a enxergava, também?

Como se os ossos tivessem virado água, Valerie passou o vestido pela cabeça e deixou-o de lado no chão. Uma poça d’água formou-se ao redor dele, relembrando-a que era hora de fechar as torneiras. Aquele gesto foi custoso, como todos os outros que eram essenciais. Foi então que ela notou o próprio corpo. E mais uma vez as lágrimas lhe fizeram companhia. 

A cicatriz da cirurgia ainda não era tímida como a de seu joelho, da vez em que ela tinha caído da bicicleta. Em seu ventre, o corte parecia ainda estar aberto pela coloração vermelho sangue, mas Valerie enxergava os pontos permeando as bordas. Sua barriga ainda estava muito inchada, porém as estrias começavam a se desenhar em sua pele. E a pele, roxa, como se tivesse apanhado. Como se os chutes de Clara agora fossem externos. 

Nas duas noites anteriores, Valerie ainda acreditava que estava grávida. Acordava no meio da noite com uma vontade incontrolável de urinar, sentia cólicas, ainda produzia leite. O próprio corpo estava em negação. Quando a enfermeira repetia, pacientemente, que sua filha não resistira, Valerie limitava-se a assentir com a cabeça. Sua resposta mais frequente era um ah quase inaudível.

Valerie não se culpava por esquecer que Clara não estava mais ali. O fantasma de seus sonhos, na verdade, tinha nome e sobrenome: John Bowman. Ela estava tão focada em si mesma que se esquecera de que a mãe também estava sofrendo. Por um motivo justo. Clara nunca tinha sido sua para perdê-la, mas John… 

John tinha sido seu pai. Ele viveu ao lado dela por anos. Como ela poderia esquecer-se dele? 

Valerie não conseguiu limpar o próprio corpo e livrar-se do suor de todos aqueles dias no hospital. Ela continuou imóvel, até a pele enrugar e a água ficar gelada. Frank voltou para verificá-la depois, suspirando em frustração ao ver o estado deplorável em que a esposa se encontrava. 

— Valerie… Mi amor, você precisa tentar — a boca dele curvou-se para baixo. Decepção, era o que ela lia em seus olhos abrasivos. — Nós todos estamos tentando… 

Ela engoliu em seco, ajeitando-se na banheira. Não deveria comprimir a barriga daquele jeito, porém seu instinto primário foi o de se esconder do olhar dele. Não fez muita diferença. Frank olhava através dela. Como um problema que era obrigado a lidar que apareceu de uma hora para a outra. 

— Eu sei… — Valerie murmurou. — Me desculpe… 

— Tudo bem. Nós… Olhe, isso vai passar. Não era para ser. Se fosse para a Clara nascer e sofrer, pense comigo, isso seria bem pior… Às vezes, foi até bom ela não ter sofrido…

Valerie fixou o olhar em seu rosto. Frank ainda era o mesmo. Não via nele traço algum de mudança, enquanto aquela semana passou como um furacão para as garotas Bowman. Qual seria o segredo para ele manter-se tão calmo? Por que ele dizia as palavras com tanta convicção? 

— Podemos ter outro filho, depois — ele acariciou o rosto dela com o polegar. — Se isso te fizer feliz… Mas a Clara não vai voltar. Uma hora… Você precisa deixá-la ir, Valerie… 

Valerie desviou o olhar para o corredor. A mala para a maternidade encontrava-se do lado do berço, montado por ela sem qualquer tipo de ajuda. Foi a primeira vitória da gravidez dela, o sinal definitivo de que ela poderia continuar sendo independente depois daquilo. Só era necessário mais um pouco de persistência e tudo ficaria bem. Porque, no momento em que Clary estivesse dormindo naquele berço e todas as noites de choro finalmente trouxessem resultado, valeria a pena. Mesmo o choro traria sorrisos consigo. Mesmo os gritos trariam gargalhadas.

E agora que ela havia ido embora, o que mais valia a pena? Em que é que Valerie sonharia?

— Pense nisso, tudo bem? — foi a concessão final de Frank, junto a um beijo em sua testa. — Você tem tempo suficiente, mas… Não se torture tanto. É muito difícil vê-la se afundando assim… 

Com muita delicadeza, Frank enxugou as lágrimas dela da beirada de seus olhos. Valerie encostou a bochecha em sua mão, temendo despencar com o pescoço se não o fizesse. E se ela ficasse para sempre ali? Quanto tempo levaria até que fosse acometida por uma hipotermia?

— A água já está gelada… Acho melhor você lavar o seu cabelo outra hora. Não quero que fique resfriada — Frank franziu os lábios, checando a temperatura dela. Como da primeira vez. Valerie sentiu a saudade de quem costumava ser doer no peito. — Você quer que eu ligue para a sua mãe? Precisa de alguma coisa? Tenho certeza de que ela não vai se importar em vir… 

Ela fez que não, revivendo o bastante para arrumar a postura na banheira. Aquela água sem sabão deveria ser suficiente. Precisava que Frank parasse de olhá-la com pena. Adoraria que ele falasse com rispidez. Quem sabe assim provocasse alguma reação nela. Valerie preferia sentir raiva de si do que pena. 

— Tudo bem — ele sorriu, levantando-se. Parando ao batente da porta, acrescentou: — Vou deixar você se enxugar e volto daqui cinco minutos para te buscar. Não consigo carregá-la no colo, o que é uma pena. Seria uma bela cena de filme. Dizem que tem algo a ver com expulsar a má sorte, carregar a esposa pela porta da casa.

Com a falta de resposta dela, Frank apenas limpou a garganta e gaguejou qualquer coisa para preencher o silêncio de Valerie. Ela gostaria tanto de corresponder às tentativas dele. Frank estava dando seu melhor.

Seus fantasmas nunca a alcançariam. Não se ela também se tornasse um. 

— Eu prometo — ela sussurrou num fiapo de voz, para ninguém em especial. Para Clara, talvez. Seria o começo de sua despedida. — Prometo que não vou engravidar de novo. Nunca mais.

Encostando a cabeça na banheira, Valerie encarou o teto. As aspirinas, enfim, começaram a lhe dar sono. Bom, o sono era bom. Quantas ela precisaria ingerir até tudo tornar-se mais uma lembrança? Quantas até ela finalmente tornar-se a dona de casa ideal e sempre com um sorriso no rosto? Tornar-se quem Frank acreditava que ela era? Quem costumava ser?

Cinco minutos. 

Engolindo o choro, Valerie alcançou a toalha.

Tinha mentido para ele por meses. O que era mentir para si mesma por mais um pouco de tempo? 


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Notas finais do capítulo

é... e com esse capítulo, finalizamos o primeiro arco da história...
cura, Senhor, onde dói ;-;



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