Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 21
XX — It was the end of a decade, but the start of an age


Notas iniciais do capítulo

tivemos um avanço de dez anos no futuro ♥ o cenário é o mesmo, mas trocamos de década!



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“Você manteve sua cabeça erguida como um herói

Em uma página de um livro de história

Era o fim de uma década

Mas o começo de uma era”

(Long Live — Taylor Swift)

 ★

Miami, Flórida — maio de 1979

Valerie tamborilava os dedos nas pernas. Ela era a primeira pessoa a chegar. A sala estava deserta. Sua única companhia era o relógio, fixado bem acima de sua cabeça. Tic, tac, tic, tac, tic, tac. As unhas dela corriam bem mais do que os ponteiros. E os saltos dos sapatos. To-toc. To-toc. To-toc

Santo Deus, ela era mesmo insuportável. Que grande choque.

De uns tempos para cá, Valerie tinha adquirido o péssimo hábito de não lidar bem com horários. Ou estava atrasada demais, ou adiantada demais. Naquele dia, Valerie abraçava a segunda variação. A pontualidade costumava ser um dos seus pontos mais fortes, porém tantas oscilações de humor da última década tinham transformado sua vida numa tempestade eterna. Por sorte, ela sempre levava um guarda-chuva na bolsa.

Tanto confinamento como dona de casa  levaram-na até ali. Dez anos atrás, Valerie não ficaria tão nervosa para uma entrevista de emprego. Porque a área em que estava investindo era a que dominava. Ela tinha estudado muito para datilografar com perfeição. Se alguém lhe desse uma máquina de escrever, Valerie se sentiria em casa. Contudo…

Por que não conseguia se livrar da sensação de estar enferrujada? De estar velha demais para aquilo? Que Frank ficaria furioso quando soubesse que ela estava tentando encontrar um emprego?

Pelo amor de Deus, Valerie não era velha. Tinha só 34 anos. Não ousava chamar a própria mãe de velha, mesmo tendo quase vinte anos a mais do que ela. Por que aqueles pensamentos não poderiam ser aplicados à Valerie, também?

Ah, é. Aquela autossabotagem. Já era sua melhor amiga de longa data. Ela e Veronica competiam por um lugar de destaque em seu coração.

Mais uma vez, Valerie mirou o relógio. Será que, se fosse ao banheiro, aquilo seria interpretado como nervosismo e ela perderia sua credibilidade na entrevista? Ora essa, mas ela já não estava se tremendo feito um cachorro raivoso? O que era uma breve ida ao banheiro? 

— Valerie Ortiz? — uma voz do além a tirou do torpor. Não, do além não. Apenas no final do corredor. Ela sorriu e assentiu, engolindo em seco. — Pode me acompanhar, por favor?

Valerie levantou-se, num ensaio do que deveria ser sua expressão mais confiante. Todo o tempo que havia passado separando a roupa, escolhendo-a meticulosamente, teria de valer a pena. Ela tinha depilado as pernas, pelo amor de Deus. Não fazia isso com tanta frequência quanto gostaria, devia admitir. Frank com certeza iria notar uma coisa daquelas.

A quem queria enganar? Frank nunca notava que ela estava ali. Podia andar desfilando nua pela casa que era bem capaz de ele apenas perguntar se Valerie estava com calor. Se gostaria que ele ligasse o ventilador. Ou se ela estava se sentindo bem. Era humilhante.

Nada desde aquele dia tinha sido o mesmo entre os dois. Valerie estava farta do olhar complacente do esposo. Durante o primeiro ano, eles até tinham sido bem-vindos. A solicitude dele, as boas ações, a espontaneidade. As tentativas de animá-la, o carinho. Porém, conforme Valerie melhorava, Frank parecia vê-la como uma fonte fácil para satisfação sexual. E apenas quando ele queria. Quando era conveniente para com os seus horários e compromissos. Quando era Valerie que o procurava, sempre havia uma desculpa. 

Veronica dizia que era a crise da meia idade. Mas Valerie achava aquilo de uma bobagem sem tamanho. Ela era só cinco anos mais nova do que Frank, e sentia que a vida ainda era uma longa estrada a percorrer. Com exceção para seu quadril e para sua gordura localizada na barriga, Valerie não tinha sentido mudança alguma em seu corpo durante aqueles dez anos.

Dez longos anos…

Bem, ela tinha de admitir que também o repelia, um pouco. Por mais que o conselho de sua mãe tivesse sido o de não se fechar para o amor, Valerie não fez muita questão de segui-lo a ferro e fogo.

Lembrando-se de manter-se confiante, Valerie colocou seus sapatos de salto para andar. Ao atravessar o corredor, ela pôde finalmente identificar a voz do além como sendo uma mulher. Graças a Deus. Detestaria fazer uma entrevista com um homem. Era seu retorno triunfal para o mercado de trabalho – ela aceitaria não ser aprovada por uma mulher, agora ser desdenhada por um homem terminaria de rechaçar sua autoestima.

— Sinta-se à vontade, por favor — ela indicou a poltrona em frente à escrivaninha. Um conforto, Valerie deveria admitir. Se tivesse uma sala como aquela, Valerie não se importaria em ficar sentada o dia inteiro. — Eu devo perguntar… A senhora tem alguma relação para com o advogado, o doutor Frank Ortiz? 

— Ah, na verdade sim. Ele é meu esposo. 

— Entendo. 

Entendo? Aquilo era bom ou ruim? Valerie remexeu-se na poltrona, sentindo o suor aglomerar-se em suas coxas. Maravilha. Agora elas iriam ficar assadas

— Ele é um profissional bastante… Competente — ela pareceu escolher as palavras com cuidado. Valerie franziu os lábios por isso, porém manteve a compostura. — Porém, não estamos aqui para falar sobre ele, e sim sobre você. A propósito, sou Ivy Coleman, diretora de administração. Se for aprovada, trabalhará comigo no gabinete.

Valerie assentiu com a cabeça, abrindo um sorriso polido.

— É um prazer conhecê-la, senhora. 

— Sim… É, sim — Ivy olhou-a de cima a baixo. — Já trabalhou como secretária, Valerie? 

— Não, senhora — e então, Valerie deu início ao discurso que tinha ensaiado em frente ao espelho naquela manhã. — Eu fui estenotipista por quatro anos em nossa Corte municipal. Todo o serviço, entretanto, era semelhante às atribuições de uma secretária. Na falta de uma, as estenotipistas, além de redigir os inquéritos e depoimentos, também eram encarregadas de documentos e atas oficiais.

— Você gostava do seu trabalho?

Valerie foi pega de surpresa pela pergunta. As revistas de Veronica não a haviam preparado para aquele momento – e olhe que, com o tanto de revistas que elas liam, era de se esperar maestria em todos os assuntos cogitáveis.

— Eu gostava, sim — Valerie reprimiu um suspiro. — Era uma responsabilidade enorme, e exigia muita concentração e memória, porém na ponta do lápis eu via mais benefícios do que queixas. 

— Por que você deixou o seu emprego, senhora Ortiz? Já que se afeiçoava ao cargo, o natural era buscar uma promoção, talvez.

Valerie mordeu o lábio. Refletindo tarde demais que aquele não era um gesto adequado ou recomendado, ela baixou o tom da voz:

— Deixei o emprego porque engravidei.

— Ah, você tem filhos? — Ivy franziu a testa e passou a olhar a papelada que trazia na escrivaninha. De relance, Valerie notou que eram uma pilha de currículos. Aquilo lhe embrulhou o estômago. — Acho que você esqueceu de mencionar isso no seu currículo.

— Não, não tenho. 

Elas ergueram a cabeça simultaneamente. Valerie sustentou o olhar dela por alguns segundos, sendo obrigada a desviá-lo logo depois. Ivy devolveu os papéis para o seu lugar, cada movimento calculado para não quebrar aquele silêncio. Compreensão

— Entendo — ela retrucou, por fim. Ivy Coleman compreendia tudo. Valerie tinha a ligeira impressão de que entendo se tornaria o vício de linguagem que menos gostava. — E lamento. E por que é que você escolheu nosso escritório para trabalhar?

Aquilo, sim. Para aquilo ela tinha uma boa resposta na ponta da língua. Detalhista do jeito que era, Valerie tinha feito uma pesquisa sobre as diretrizes do escritório. Jamais aceitaria trabalhar num lugar que defendesse grandes corporações que poluíam cada vez mais o meio ambiente ou defendesse coisas absurdas. Assassinos em série, pessoas maltratando animais, preconceituosos.

— Os casos que vocês aceitam estão de acordo com meus princípios — Valerie recostou-se na poltrona. — Após tanto tempo trabalhando na Corte, vi centenas de histórias, centenas de estratégias de advocacia que livraram ou reduziram a pena de pessoas que eram claramente culpadas, bem como outros forjaram provas que incriminam pessoas que, ao menos em meu ponto de vista, poderiam sair como inocentes de histórias. Era um dos maiores problemas de trabalhar na Corte: assistir a tantos altos e baixos. Era um tanto difícil me manter neutra. Mas, trabalhando na secretaria de um estabelecimento… De uma companhia… Em que eu sei que as chances de estresse são poucas, não apenas me ajuda a executar melhor minhas tarefas, mas também garante a vocês que terão um trabalho de alta performance. Você sabe o que dizem dos funcionários felizes. 

Ivy emitiu um “uhum”, anotando algo no currículo dela. Será que a honestidade sobre seu emprego seria um ponto positivo ou negativo? Será que estaria avaliando a ousadia de sua sugestão, de que funcionários felizes eram a chave para o bom funcionamento de qualquer empresa? Ou ela teria escolhido as palavras erradas? Se dizia companhia, mesmo? Time? Era bem provável que Ivy Coleman estivesse anotando “uma grandíssima pretensiosa” em seu currículo. O pensamento quase a fez sorrir, se a entrevistadora não tivesse cruzado as pernas em frente de si e repousado seu currículo sobre a mesa, com a tranquilidade de quem já não precisa passar por aquele tipo de situação há anos.

— Bem… Temos a última das perguntas padronizadas. Se tivesse que me dizer sua maior qualidade e seu maior defeito, qual escolheria?

Valerie ponderou a questão. Uma grande questão para quem costumava se despreciar mais do que o limite de piadas saudáveis. Ela tinha alguma qualidade, afinal de contas? 

— Tenho um talento especial em enxergar o lado bom de tudo — Valerie sorriu de lado. — Ainda assim, minha maior dificuldade é confiar nas pessoas. Tenho uma tendência irritante de passar todos por uma quarentena mental intensa. Passada a quarentena, se aprovado, você provavelmente conheceria uma Valerie piadista e que fala pelos cotovelos.

E então, Ivy Coleman riu. Ela riu. Bem, ao menos Valerie teve a oportunidade de comprovar suas palavras na prática. Valerie aguardou até que ela se recompusesse, e a sentença final veio após alguns instantes: 

— Agora, um acréscimo pessoal. O quanto você está disposta a aturar homens fazendo piadas sobre sua competência, senhora Ortiz? 

— E eles sabem agir de outra forma? 

Ivy pareceu satisfeita com a resposta. Colocando-se em pé, Ivy estendeu a mão para Valerie. Como se fosse algo programado, Valerie acompanhou os movimentos dela, sentindo a firmeza daquele aperto de mão. Era bom parar de tremer feito um cachorro, para variar. 

Algo dizia que aquela década seria bem melhor do que a anterior. Valerie podia sentir a energia pairando no ar, como a luz no final do túnel. Era a primeira vez em muito tempo que ela sentia-se confiante novamente, como se estivesse prestes a fechar um contato de negócios com uma empresa multimilionária. Ainda que fosse apenas um escritório de advocacia. E ela ainda tinha a possibilidade de não ser contratada. Tentar era o que era bom, não era? Era o que sua mãe dizia. 

— Entraremos em contato, senhora Ortiz. Espero que possamos nos rever em breve. 

Valerie girou nos calcanhares, sentindo seu antigo sorriso despontar nas beiradas do rosto. Mal esperava para contar aquilo à irmã. Ela ficaria alucinada com o quanto Valerie tinha sido ousada. 


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