Pianista Diferente escrita por Metal_Will


Capítulo 5
Arrogância e Luar




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Finalmente chegou o dia da segunda etapa do concurso. Eu estava desclassificado, mas como Viridian insistiu em participar para me ajudar com o prêmio, eu fui lá prestigiá-la e torcer para que ela conseguisse. Sim, eu vi que ela tocava absurdamente bem e reconheci as habilidades dela, mas nada disso significava que seria uma disputa fácil. Os competidores restantes também eram muito bons.

Lá estava eu. Enquanto todos já tomavam seus lugares, eu estava esperando a Viridian aparecer no local combinado. Já quase na hora do concurso começar, encarei o relógio me perguntando onde ela estaria. Bem, Viridian divulgou para a imprensa que estava participando e isso rendeu muita fofoca na Internet. Ela teve que dar algumas entrevistas e a quantidade de fãs dela só aumentava. Ainda assim, ela insistia que participaria da competição. Mas onde a garota estava?

—Ei, Ricardo - ouvi uma voz baixa. Olhei para o lado e vi apenas uma pessoa vestida com roupas casuais, boné e óculos escuros.

—Falando comigo? - perguntei.

—Sou eu, tonto - ela mostrou os olhos pelos óculos - Vim disfarçada para não me encherem a paciência.

—Viridian - falei, aliviado - Ainda bem. Achei que você não chegaria nunca!

—Claro que eu viria. Não vou te deixar na mão - ela respondeu. O boné escondia os longos cabelos, então ela estava bem disfarçada.

—O concurso já vai começar. O que você preparou? - perguntei.

—Ah, quem dera ter tido tempo de praticar - falou ela, depois de rir - Vou ter que ir com o que eu lembro mesmo.

Tá, agora comecei a ficar preocupado. Como eu disse, o fato dela ter revelado que era uma pianista para a imprensa a deixou muito ocupada a semana toda. Acabou que ela não teve tempo de preparar nada especial para o concurso.

—Tem certeza que está tudo bem? Olha, se quiser deixar pra lá, eu entendo e…

—Não, não. Relaxa - disse ela - Posso dar conta desse concurso, sim. Se eu me concentrar, tenho quase certeza que consigo me classificar.

—Quase?

—É, certeza, certeza não tem como dar - explicou ela - Afinal, tudo pode acontecer, né? Mas relaxa. Eu também fui no improviso na primeira etapa.

—Só que agora é mais difícil. Os competidores são muito bons.

—Confia, Ricardo - disse ela, voltando a colocar os óculos - Vai dar tudo certo.

—Como eu queria ter essa confiança… - balbuciei.

Eu fui para a plateia aguardar o início da competição, mas entre aquele momento e o início do concurso aconteceram algumas coisas nos bastidores que fiquei sabendo depois e acho que são importantes para a história. Vamos ver o que aconteceu com Viridian assim que ela foi para o camarim e se trocou para o mesmo vestido da outra vez.

—Você é…a garota que tocou por último da outra vez, não é? - perguntou Pandora, uma das melhores participantes da primeira etapa em um deslumbrante vestido azul.

—Ah, oi - respondeu Viridian, sorrindo - É, sou eu mesma.

—Eu sei quem você é. Acho que todo mundo sabe - disse Pandora - É muito deboche mesmo!

—Desculpa, não entendi - falou Viridian, mudando de um sorriso para uma expressão séria.

Pandora virou os olhos depois de um riso sarcástico.

—Sério mesmo? Você não tem respeito nenhum por música, né?

—Do que você tá falando? - perguntou Viridian, já começando a ficar irritada.

—Você é a MC Viridian, uma funkeira. O que uma funkeira está fazendo em um concurso de alto nível como esse?

—Tocando piano - disse Viridian, com um sorriso de deboche - Como você.

—Não me coloca no mesmo nível que você, garota! - disse Pandora, em tom sério - Eu toco piano desde os seis anos, eu respiro música clássica. O pouco que ouvi da música que você apresenta por aí, se é que dá pra chamar aquilo de música, é uma afronta aos meus ouvidos. Você é uma afronta a todo mundo aqui!

Os outros estavam apenas sem-graça demais para falar qualquer coisa, mas parece que muitos deles compartilhavam do pensamento de Pandora. Viridian mordeu os lábios de raiva e tentou responder à altura.

—Se eu sou tão ruim assim, então por que fui classificada? Aliás, se me lembro bem, minhas notas foram maiores que as suas - disse Viridian, em tom altamente sarcástico. Agora Pandora foi quem ficou com raiva.

—Qualquer um pode ser bom em uma música só - disse ela - Além disso, você foi a última. Os jurados já deviam estar cansados e ficaram espantados com uma apresentação bem ensaiada. Só isso.

—Ah, só isso - repetiu Viridian - Então, vamos ver se foi só isso mesmo. Só espera.

—Fique sabendo que não toquei minha especialidade da última vez - disse ela - Mas hoje tocarei Beethoven e esse sim é meu forte. Não tem como eu perder para uma funkeirinha que se rebaixa mostrando o corpo que nem você.

—Tá com inveja do meu corpo, é? Faz uma academia nas horas vagas do piano que melhora.

—Eu corro todos os dias, querida. É o suficiente para manter a saúde. Não vivo de mostrar a bunda que nem você.

—Mostro mesmo e não tô nem aí. Se não gostou, não olha. Invejosa.

As duas já estavam trocando faíscas mais intensas e o clima só não ficou mais tenso porque um membro do staff veio avisar que as audições estavam prestes a começar. Viridian e Pandora não falaram mais nada depois disso, até o momento em que Pandora finalmente entraria no palco.

—Agora você vai ver como se toca piano de verdade - disse ela para Viridian. A funkeira apenas olhou seriamente com desprezo e Pandora seguiu para sua apresentação. Ela realmente estava confiante.

A moça adentrou no palco com aplausos. Ela cumprimentou os jurados, mas eles não estavam mais interessados em ir direto ao ponto.

—Muito bem, Pandora, não é? - perguntou Marlene - E então? O que temos para hoje?

—Beethoven - ela respondeu, com um sorriso confiante - Tocarei o primeiro movimento da Sonata ao Luar.

—É uma música lenta e suave - disse José, outro dos jurados, colocando as mãos atrás da cabeça e indicando que não estava esperando muito - Não é muito desafiador, é?

Pandora não respondeu, embora certamente a expressão dela não fosse de muita apreciação desse último comentário.

—Só tem um jeito de saber - falou Rudolph, o outro jurado - Tocando. Pode começar.

Pandora se dirigiu ao piano e iniciou sua apresentação. A Sonata ao Luar de Beethoven é uma música fantástica e seu primeiro movimento é simplesmente maravilhoso, mas a interpretação de Pandora foi mais do que fascinante. Ela deslizava pelas teclas com uma graça e elegância fora de série. Ouvi a apresentação dela na apresentação anterior e foi fantástica, mas essa foi mais extremamente maravilhosa. Pude ouvir algumas pessoas da plateia em lágrimas. Não tinha como negar a excelência com que ela tocava aquela música. Certamente, seria um páreo duro para Viridian. Quando ela terminou de tocar as últimas notas e o público terminou de aplaudir, finalmente os jurados falaram.

—Sem palavras - disse Marlene - Nunca vi uma interpretação desse movimento da Sonata ao Luar tão maravilhosa. É dez, sem sombra de dúvida.

—Dez, é? - falou José, coçando a cabeça - Foi uma ótima interpretação, realmente, mas teve uma quebra no ritmo que eu não deixei escapar. Dou 9.
—Nove? - reclamou Marlene - Isso é chatice demais até para você.

—Desculpe, mas o diabo está nos detalhes - insistiu José - Não posso dar uma nota perfeita se não foi perfeito.

—Eu dou 10 - falou Rudolph - Também percebi aquela mudança no ritmo, mas não acho que afetou o todo tanto assim.

—O ouvido de vocês não é muito exigente - comentou José - 9 é uma ótima nota, de qualquer jeito.

Pandora apenas agradeceu e saiu de cena. Viridian estava assistindo tudo dos bastidores e, claro, ela não conseguiu escapar de ser provocada pela rival.

—Quero muito ver você fazer melhor - disse Pandora, no ouvido dela - Você não é a talentosa?

Viridian apenas fechou os olhos e não respondeu. Depois de mais duas apresentações, finalmente chegou a vez dela. A funkeira entrou no palco e recebeu diversos aplausos (e até algumas provocações). Os jurados, dessa vez, não resistiram em comentar.

—Vejam só, se não é a nossa artista? - disse Marlene - Não imaginava que você fosse tão famosa.

—Isso importa tanto assim? - perguntou Viridian.

—Nem um pouco - disse José - Desde que você toque bem aqui, não estamos nem aí com o que você faz na sua vida lá fora. Aliás, sua roupa não melhorou nem um pouco desde a última vez, não é?

Viridian detestou o comentário, mas não falou nada.

—Mas é impressionante - falou Rudolph - Sua profissão não combina em nada com música clássica.

—É, eu sei - disse ela - Mas, como vocês disseram, uma é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

—Certíssima - falou Marlene, colocando sua caneta na mesa e cruzando as mãos - E então? O que você tem para nos mostrar hoje?

—Beethoven - disse ela - Tocarei a Sonata ao Luar.

Os jurados arregalaram os olhos.

—Bem - disse José - Não tem nenhuma regra que te impeça de tocar a mesma música de outro participantes, mas comparações são inevitáveis. Vai perder pontos por falta de originalidade. Vir para cá com um repertório só é loucura.

—Ah, não. Vocês não entenderam - falou Viridian - Não vou tocar a mesma música. A “outra participante” tocou o primeiro movimento…

—Não diga que - Marlene estava abrindo um sorriso.

—Eu vou tocar o terceiro movimento da Sonata ao Luar! - disse Viridian, com um sorriso confiante. Pandora ouviu isso dos bastidores e arregalou os olhos.

Todos ficaram admirados. Vou explicar a razão. Enquanto o primeiro movimento da Sonata ao Luar de Beethoven que Pandora tocou é uma música lenta e suave, o terceiro movimento é muito mais rápido e complexo. Executar uma peça dessas não é algo que qualquer um pode fazer. Aquilo me fez ajeitar a postura na poltrona e ficar mais atento. Viridian poderia tocar uma música dessas? Sim, eu sei que poderia, mas…ela não ensaiou nada. Parece que ela decidiu tocar aquilo na hora. Estava começando a ficar preocupado.

—É bem ousada - disse Rudolph - Um terceiro movimento da Sonata ao Luar bem executado não é para amadores.

—Tem certeza que quer tocar isso? - perguntou José.

—Total - disse Viridian.

—Bem, a escolha é sua - disse Marlene - O piano é todo seu. Por favor.

Viridian fez uma reverência aos jurados e se dirigiu ao piano. Ela respirou fundo, olhou por alguns segundos para o instrumento e, enfim, começou a tocar.

O que posso dizer daquela experiência? Foi uma viagem musical impactante. Os sons das teclas atingiam o público como tiros de metralhadora ininterruptos em alta velocidade. Era uma música rápida, mas ela não perdia o ritmo em nenhum momento. As mãos de Viridian deslizavam pelo piano como se ela já tivesse nascido sabendo tocar. Era impressionante, impressionante demais para ser colocado em palavras. Ouvidos pouco treinados podiam não perceber os detalhes, mas alguém acostumado com música percebia que ela não se perdia em nenhum momento. Ou pelo menos era o que eu achava. Em uma fração de segundo, uma pequena fração de segundo, Viridian foi tentada a olhar para o lado, mais precisamente na direção de Pandora, a pessoa que acompanhava tudo com uma expressão nada satisfeita. Viridian sorriu confiante ao se deleitar com a expressão irritada da rival.

Porém, esse olhar, esse rápido olhar para o lado, foi o bastante para ela se distrair e escorregar em uma parte da música. Foi um erro, um erro que poderia até passar despercebido dos ouvidos menos ensaiados, mas estávamos falando de jurados impiedosos. Viridian percebeu isso na hora, mas continuou tocando. Ela terminou a música e recebeu diversos aplausos. Só que não tantos dos jurados.


    -Bem - começou Marlene - Sonata ao Luar, terceiro movimento. Uma peça maravilhosa. Pena que você deu uma escorregada quase no final, né?

Viridian apenas fechou os olhos e concordou.

—Você tocou o resto da música maravilhosamente bem - disse Marlene - Mas com aquele erro não dá para ser nota máxima, sinto muito. Vou te dar um 9.

—Muito boazinha - falou José, com a mão no queixo - Um erro em uma pequena parte é o bastante para estragar uma obra inteira. Se o resto da música não fosse tão bem executado, sendo sincero, isso te custaria a classificação. Dou um 7.

Rudolph, o alemão, fez uma pausa um pouco longa, mas enfim falou.

—Beethoven é magnífico - disse ele - E sua execução foi realmente bem feita, tirando aquela parte que os colegas já falaram. Olha, não posso dar 10, mas não vou chegar a dar um 7. Acho que um 8 está de bom tamanho.

E foi isso. Viridian fez uma reverência e saiu de cena. Ela foi pior do que esperava, mas a pior parte ainda não havia chegado. Não. O pior seria o que ela enfrentaria logo depois que saísse do palco.

—Pelo visto, a última vez foi só sorte mesmo - provocou Pandora, sorrindo sarcasticamente - Que ridículo. E ainda escolheu um movimento da mesma música que eu toquei só para se mostrar. Como você é baixo nível. Realmente.

—É. É isso mesmo. Queria te dar uma lição, mas eu me distraí. Tá. Admito. Mas foi só uma distração - retrucou Viridian - E minhas notas foram muito boas se olhar para a média dos outros.

—É, eu sei, você vai para a final da semana que vem, isso é certeza - reconheceu Pandora - Mas eu também vou e o resultado de hoje é a prova que você não é páreo para mim.

Viridian não falou nada, apenas fechou a cara e tentou sair. Pandora riu mais uma vez, olhou bem no rosto dela e, assumindo radicalmente uma expressão séria, disse:

—No fundo, você sabe que esse mundo não é para você. Isso aqui não é para quem leva música na brincadeira! Se eu fosse você, desistia logo desse concurso e voltava a rebolar a bunda por aí. Isso é o melhor que você faz.

Viridian engoliu a raiva e saiu de cena. Depois da apresentação dela, os jurados fizeram um intervalo (dessa vez, ela não foi a última). Aproveitei e corri até os bastidores para cumprimentá-la, mas não sei se cheguei em uma boa hora. Viridian já estava se arrumando para sair.

—Ei, você já tá saindo? - perguntei.

—Sim - respondeu ela - Não tenho mais o que fazer aqui.

Pelo tom, dava para perceber que ela estava com muita raiva.

—Você não vai nem esperar os resultados?

—Não precisa - disse ela - Só tem mais dois candidatos e minha média foi a segunda melhor. Vão cinco para a final, então já estou garantida. Relaxa.

—Aconteceu alguma coisa? Você não parece muito feliz…

Viridian suspirou e desabafou.

—Tá. Tá legal. Aconteceu - disse ela - Tô com raiva. Muita raiva. De mim mesma!

—Por quê? Eu vi que você errou, mas sua nota foi muito boa e…

—Não, a questão não é essa - falou Viridian - Eu..eu fui uma arrogante. Não toquei essa música porque era boa nela. Toquei só pra…pra jogar na cara daquelazinha…

—De quem você tá falando?

—Quem mais tocou Beethoven no piano hoje? - perguntou Viridian.

—A outra candidata pianista? O que tem ela?

—É uma vaca marrenta que se acha! Mulherzinha metida do cacete! Não durava cinco minutos numa briga da quebrada!

—Ai, já vi que ela te irritou, né?

Viridian contou o que aconteceu. Eu não tinha muita ideia do que falar.

—Não cai da pilha desse povo - foi o que disse - Se tem um lugar com gente arrogante é esse meio da música clássica. Só faz o seu e nem liga.

—Eu sei! Mas…comigo é diferente. Ela me acha inferior pelo outro trabalho que eu faço. Quem ela pensa que é? Ela não sabe nada de quem eu sou!

—Sei o que você sentiu - falei - Bom, eu sou gay, né? Todo mundo se acha superior a mim o tempo todo.

—Por quê? Por que tem que ter gente assim? - reclamou ela, não conseguindo segurar uma lágrima.

—Faz que nem eu. Só ignora. Você sabe do seu valor. Isso é tudo que importa - disse.

Viridian me abraçou, engolindo o choro que estava quase saindo.

—Tem razão. Vou superar isso - ela falou, segurando nas minhas mãos - Eu prometo que vou ensaiar muito para a semana que vem e pegar o prêmio para você. Minha próxima apresentação vai ser perfeita!

—Só de você tentar já fico feliz - retruquei.

Ela me deu mais um abraço rápido e, assim que nos viramos para ir embora, Viridian ouviu a voz de uma mulher.

—Veridiana! - exclamou uma mulher com um vestido elegante e bem parecida com Viridian. Seria a…

—Mãe?! - disse ela, espantada.

Sim, era. A mãe de Viridian.


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