O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 48
∾ Você pode até tentar esconder, mas em silêncio, todos sabem.


Notas iniciais do capítulo

Oi oi, tudo bom? Como vocês estão?

Ansiosos para ver o parquinho pegar fogo, a carreta furacão descer ladeira abaixo, o calo apertar no sapato, a cobra fumar, a vaca tossir, o porco voar, a jiripoca piar? Pois bem, eu estou!



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Seus pés já estavam doloridos quando Elio a puxou para dançar pela última vez. A música era antiga, da época em que ambos tinham seus quinze ou dezesseis anos. E Juno não foi capaz de recusar. Descalçou os sapatos apertados, sem se importar com o chão sujo do bar, e avançou para a pista de dança, segurando a mão dele, rodopiando a longa saia colorida e agitando seus belos cabelos castanhos. 

A multidão os envolveu mais uma vez. Ali, os dois eram apenas mais um casal embolado no meio de vários outros, de quando em quando se acotovelando e se desculpando com sorrisos embriagados. O bar estava cheio de pessoas que procuravam uma última noite de diversão, antes de o baque do cotidiano os acertarem novamente. E, assim como essas pessoas, eles estavam perdidos nesse fluxo, sem se preocupar com mais nada, senão pisar nos pés um do outro enquanto dançavam. 

Cobertos por luzes piscantes, entregues ao ritmo acelerado e nostálgico da música, Elio conduziu Juno pela pista. Segurando sua cintura com a mão esquerda, ele a guiava com a mão direita segurando em seus dedos. Ela correspondia, mexendo as esguias pernas e remexendo os quadris ao ir e vir de encontro ao corpo dele. E era toda graciosa, dando gargalhadas sempre que ele a girava e a puxava para perto. A saia colorida entrelaçava seus tornozelos, desenhando os movimentos de suas pernas longas e esguias, e seus cabelos sambavam ao redor de seu rosto corado, deslizando por suas bochechas avermelhadas e caindo até seus ombros desnudos pelas as alças finas da blusa afrouxadas. Era uma visão arrebatadora e, sem perceber, Juno irradiava como um sol o salão em seu entorno. Aos poucos, as pessoas davam mais espaço para a dupla que dançava, quase entregando a pista somente aos dois. 

E assim, a noite escorreu entre os dedos entrelaçados de ambos, que quase não notaram as horas voando. O que deveria ser a última dança, estendeu-se por várias outras. Juno soltou da mão de Elio para dançar com outro rapaz de cabelos encaracolados e coloridos, para depois dançar junto de outra moça com belos olhos verdes e longos cabelos loiros. Enquanto isso, a madrugada espreitava para anunciar o fim do longo feriado, além de tudo, avisando com curtos relâmpagos no horizonte, que uma garoa se aproximava. 

Quando a noite, enfim, chegou ao fim, Juno deu por si mais alterada do que imaginava. Sua visão estava levemente turva, os pensamentos altos e seus passos tão instáveis quanto o sorriso frouxo nos lábios. Ao ver Elio da mesma forma, não resistiu e gargalhou, correndo até ele para amparar seu equilíbrio afetado pelo álcool. 

Do lado de fora, o vento frio da madrugada soprou nos cabelos de Juno, bagunçando-os ainda mais. De braços dados a Elio, eles caminharam pela calçada juntos. Apesar da hora avançada, as ruas ainda estavam bem movimentadas, era possível escutar a cacofonia das músicas que tocavam nos bares e casas noturnas, bem como sentir o cheiro de bebida alcóolica pairando no ar. Desse jeito, Florencia quase se parecia com uma cidade grande. 

— Ah, meio que não queria que essa noite terminasse! — ela disse, segurando as sandálias entre os dedos. — Mas meus pés dizem o contrário. 

— Deveríamos fazer isso mais vezes. — ele respondeu, ajeitando os próprios cabelos suados. Em suas roupas, a camisa social e a calça jeans, o amarrotado e desalinho entregava a noite agitada. 

Juno resfolegou, caminhando ao seu lado de pés descalços contra o pavimento. 

— Até parece que nosso salário permite a gente fazer isso mais vezes... 

— Mal foi contratada e já está reclamando do salário? — ele gargalhou vendo sua careta. — Não digo que está errada! 

— Oh, eu sempre tenho razão! 

De repente, um carro buzinou ao lado deles, chamando a atenção com certa agressividade. Com um arquejo, Elio soltou de seu braço. 

— Ah, meu táxi chegou. — observou, acenando para o veículo colorido do outro lado. Depois, voltou-se para Juno. — Você quer carona? Não me importo de pagar um pouco mais. 

Juno sorriu, porém, acabou recusando. 

— Não, não precisa. Minha casa é perto. — só precisava atravessar o centro, o que não era tão longe, de fato, mas nem tão perto também. 

— Tem certeza? 

— Não se preocupe! 

Com um sorriso de garoto, ele se desajeitou ao abraçá-la. Juno o apertou entre os braços e desconfiou de tê-lo machucado com suas sandálias, porém, ele nada comentou. 

— Bem, então é para lá que eu vou. — disse, apontando debilmente para o carro atrás dele. 

— E eu vou por aqui. — respondeu, apontando para o lado oposto. 

— Vejo você no trabalho? 

Ela fez uma careta divertida. 

— Como se você tivesse escolha. 

— É verdade. — ele sorriu. — Bem, boa noite. E juízo! 

— E quando eu não tenho? 

Juno observou se afastar com um sorriso satisfeito nos lábios. Porém, quando estava no meio da rua, ela resolveu gritá-lo novamente: 

— Elio?! — quando ele parou, virando sobre os próprios calcanhares para atendê-la, Juno acenou em sua direção. — Obrigada pela noite! 

Então, ele acenou de volta e entrou no carro. 

Com um suspiro, Juno olhou ao redor, observando toda a cidade ao seu alcance. Em cada lado das calçadas, uma porta estava aberta, revelando luzes coloridas, músicas agitadas e movimentos envolventes. Quase podia fazer uma brincadeira de menina e decidir onde deveria entrar contando apenas com a sorte. Estava inteira e completamente sozinha e, pela primeira vez, isso não parecia tão ruim assim. 

E, no entanto, desejou alguém mais. Não qualquer alguém, que poderia ser encontrado em toda esquina. Alguém em especial, só pelo resto da noite, para que pudesse ver o dia amanhecer enquanto seus pés doloridos descansavam, apoiados em uma superfície qualquer, como um banco, uma plataforma abandonada de trem ou até sobre as pernas dele. Com um sorriso bobo, deparou com sua infantilidade. Era difícil ignorar tais sentimentos quando se estava consideravelmente bêbada, porém, olhar ao redor, procurando com seus olhos viciados e desejando que os céus mandassem Nirav a ela era, no mínimo, tão bobo quanto errado. 

Limpando a garganta e balançando a cabeça, ela encostou no primeiro poste que encontrou. Precisava calçar as sandálias, já estava ficando com agonia de sentir o pavimento contra sua pele. Porém, não foi nada fácil. A bebida fazia um contra peso difícil de suportar e ela precisava quase abraçar o poste para se equilibrar. Quando o celular preso na cintura, dentro da presilha da saia, vibrou, ela quase foi de encontro ao chão, dando um gritinho assustado. 

Com os pés calçados nas sandálias desconfortáveis, Juno tomou o celular em mãos, permanecendo encostada no poste para se manter em segurança. Era uma mensagem de Elio. “Mande mensagem quando chegar em casa”. Ela sorriu, reparando na quantidade de erros de digitação. Até começou a digitar uma resposta qualquer, até que... 

— Você vem sempre aqui? 

Ela saltou de susto, exclamando exasperada. O celular quase escapuliu de seus dedos para uma queda fatal. Estava pronta para discutir com o sujeito que a abordou, mas quando virou o corpo, pensou que talvez os céus tivessem mesmo atendido o seu pedido. 

Descabelado, com os olhos caídos e o rosto corado, provavelmente tão embriagado quanto ela, estava Nirav à sua frente, sorrindo um sorriso desajeitado. Usava uma roupa tão casual que parecia ter saído de casa naquele instante, usando uma calça de moletom e uma blusa com estampa de banda antiga, já desbotada com o uso e o tempo.

Sua pose defensiva logo desmanchou. Talvez pela bebida, pela felicidade, ou apenas por vê-lo ali, saltou em direção aos seus braços. Não se conteve, abraçou-o com seus braços em volta de seu pescoço, escutando-o se divertindo com seu ataque de carência. 

— O que está fazendo perdida por aqui? — ele perguntou, ainda com o corpo próximo do seu. — Nunca te contaram a história de chapéuzinho vermelho, que se perdeu no meio do caminho e veio um lobo e... — provocou, correndo os dedos por seu braço para lhe fazer cócegas. 

— Ah, e você é o lobo, eu suponho. — revirou os olhos, acertando um tapa de brincadeira em seus dedos. — Quem disse a você que estou perdida? Estava comemorando com Elio. Consegui a contratação. 

Ele arqueou as sobrancelhas, observando-a com admiração. 

— Está falando sério? 

Quando ela confirmou com a cabeça, foi a vez dele de tomá-la nos braços. Agarrou-a pela cintura a ponto de erguê-la do chão e a apertou contra si ao girar com ela em seus braços. Juno riu, agarrada aos ombros dele, sentindo-se ainda mais bêbada pela brincadeira. 

— Quer dizer que vai morar aqui agora? — percebeu a expectativa na voz dele, o que a deixou de estômago embrulhado. 

— Vai ter que me aturar. 

— Fala como se fosse difícil. 

Revirando os olhos, ela deu a volta no poste e, assim que percebeu, já estavam caminhando juntos, lado a lado. 

— E você, o que está fazendo aqui? Será que é você quem está perdido? 

— É provável. — ele deu de ombros, fungando o nariz. — Estava bebendo as mágoas com o Theo, mas agora ele é um homem quase casado. Precisa voltar para casa cedo. E eu, bem... Não tinha motivo para comemorar. Até agora. 

— O que quer dizer? — Juno franziu o cenho, olhando-o confusa. 

— Bem, acho que sua contratação merece uma comemoração. — indicou. Juno suspirou, passando o olhar dele para o chão da calçada. Então, ele se corrigiu. — Se você quiser, é claro. 

— Eu adoraria. — ela disse, observando o sorriso crescer nos lábios dele. — Desde que isso envolva estar sentada. Meus pés estão me matando! 

— O que acha de comer alguma coisa? — sugeriu, pousando a mão sobre a própria barriga. — Eu estou faminto e acho que nós dois já bebemos o suficiente por hoje! 

Juno suspirou de satisfação. 

— Oh, eu amo o homem sensato que você é! — brincou, se divertindo com a expressão desajeitada dele. — Estava pensando em comer uma pizza, daquelas bem recheadas e gordurosas... Ah, sinto que poderia comer uma inteira sozinha! O que você acha? 

— Desde quando aprendeu a ler meus pensamentos, mocinha? 

Com um riso alto, Juno se pendurou no braço de Nirav, caminhando junto dele ao longo da calçada, cruzando por diversas outras pessoas, tão bêbadas ou famintas quanto eles.

Apesar do pequeno silêncio que surgiu entre ambos, Juno ainda tinha o sorriso bobo pendendo de seus lábios. Não era o fim de noite que estava esperando, embora fosse o que desejava. Ter Nirav ao seu lado, com o braço dado no seu, caminhando em plena madrugada à procura de uma birosca para forrar o estômago reclamão, começava a soar como um delírio causado pelo abuso de álcool, no entanto, toda vez que sentia o corpo dele encostar no seu, sentia o cheiro do seu perfume que disfarçava a nicotina, sabia que era de verdade. As brincadeiras do destino continuavam a se perpetuar, programando para que continuassem se trombando por mero acaso. E, por vezes, Juno esquecia-se das consequências que essas brincadeiras podiam ter.

Aos poucos, conforme caminhavam, Juno sentia a sensação do alcoolismo aliviar.

— Então, você e ele... — Nirav começou a dizer e de repente, parou para limpar a garganta. — Vocês dois... 

— Está falando do Elio? — interrompeu, já dando risada. 

— Vocês estão juntos? 

Juno não conseguiu decidir se seu tom era brincalhão ou afetado. Mesmo assim, a pergunta a fez corar, deixando-a sem jeito, o que a fez levar um tempo em silêncio. 

— Não precisa responder, eu só... — ele suspirou, coçando a barba como fazia quando ficava sem jeito. — Eu não deveria ter perguntado. Não me diz respeito. 

— Não. 

Nirav franziu o cenho, sem entender o que sua resposta queria dizer. Se estava direcionado ao seu interesse descabido ou à pergunta feita anteriormente. Vendo a confusão e a expectativa manchando seu semblante, Juno mordeu o lábio. 

— Não estamos juntos. — respondeu de forma definitiva. — Na verdade, ele estava casado até pouco tempo e, bem, se divorciou. Meio que nos identificamos um no outro, sabe. — embora nunca tenha dito, com todas as palavras, a verdade a Elio, sabia que ele a compreendia. — É só um jeito de se confortar. 

— Desculpe ter feito parecer outra coisa. — Nirav suspirou, aparentando sentir-se mal apenas por ter perguntado. 

Juno sorriu, acenando com a cabeça. Por algum motivo, admirou a capacidade dele de pedir desculpas, ainda que por algo tão banal. 

— Ele é bonito, engraçado e interessante, mas... — acabou por chamar a atenção dele, que lhe olhou com intensidade. Juno não soube ler seus olhos, que encaravam com tanta vontade. Porém, diante daqueles olhos, quase deu por si revelando a verdade. Ele é tudo isso, mas não é você. Em vez disso, pigarreou. — Eu não gosto de misturar romance com trabalho. E se não der certo, como fica o clima? 

Ouch. — reclamou. — Isso é uma indireta? 

Com um sorriso aliviado, Juno o puxou para andar mais depressa. Sua barriga começava a roncar de verdade. 

— Já que estamos no assunto... — sugeriu, usando as duas mãos para segurar o braço dele, mantendo-se bem próxima. — Como foi quando conheceu Alice? 

Ele hesitou, franzindo o cenho. Então, coçou os cabelos, ajeitando-os para longe da testa. 

— Ela era a nova contratada, tipo você agora, tentando se encaixar. Eu, como o bom moço que sou, aproveitei disso. 

Ugh, homens! Nunca dá para confiar em vocês! — ela riu, acertando-lhe um leve tapa no ombro. — Então, além de Alice, teve outras namoradas? — não soube bem o porquê de estar perguntando aquilo. 

— Ah, algumas, sim. Só não chamaria de namoro. — ele deu de ombros enquanto virava uma esquina próxima a um restaurante movimentado. — Na maior parte, eu só estava mendigando qualquer migalha de afeto, então acabei me metendo em algumas enrascadas. 

— É difícil imaginar você agindo assim. 

— Bem, posso dizer que eu não estava sendo eu mesmo. — de repente, ele deu um riso nasal. — Em uma dessas brincadeiras, acabei recebendo um par de chifres! 

— Você foi traído? — Juno se espantou, revoltando-se. — Quem teve essa coragem? 

— Pois é, eu me pergunto o mesmo! Só conheço gente que traiu para ficar comigo. — provocou, recebendo outro tapa no ombro em resposta. 

— Infelizmente, seus chifres não serviram nem de lição de humildade, pelo visto... 

— Na verdade, eu penso que foi mais um troco por ter dado um par de chifres ao seu namorado. 

— Ah, não, acredite em mim... — Juno abanou a mão direita, bufando. — Se tem alguém que merecia um par de chifres, era ele! 

As gargalhadas explodiram entre eles, chamando atenção de um grupo de jovens que passavam do outro lado da rua. Nirav tapou a boca de Juno, assim como a própria, apressando os passos em seguida. 

— E você? — devolveu a pergunta quando a soltou. — Teve alguém depois do Nicholas? 

— Bem poucos. Quase nenhum, sendo honesta. — Juno respirou fundo, lembrando de alguns rostos aos quais não conseguia atribuir nenhum nome. — Eu tinha receio de me entregar outra vez. E também tinha medo de Nicholas descobrir. Você sabe, tudo o que ele podia fazer, atazanar a minha vida e a do pobre coitado. Não queria arrastar ninguém para minha bagunça. 

— Sinto muito por isso. 

— Ah, sabe como é. Meu ex me amava tanto que me traumatizou pelo resto da vida. 

Apesar do tema sombrio, a piada funesta resultou em mais gargalhadas, até que as barrigas começassem a doer, além de roncar. Com um suspiro cansado, sem fôlego, Nirav envolveu seus ombros em um abraço e Juno o segurou pela cintura, agarrando-se ao pano de sua camisa. 

Depois de mais duas esquinas, encontraram um estabelecimento do agrado. A maior parte já começava a fechar as portas, considerando o horário. Eram duas da madrugada quando adentraram na pequena porta decorada com lanterninhas de neon, que piscavam em azul, roxo e rosa. Por dentro, o ambiente era ainda mais excêntrico. Era um cômodo arredondado, com mesas dispostas nos cantos das paredes, uma escada em caracol levando para o segundo andar e, no fundo, o balcão. Um cheiro de tempero e molho preenchia as narinas, tão fortes quanto a iluminação colorida. Por todo o teto, espalharam-se outras lanterninhas piscando. Uma música brega e lenta tocava no fundo, bem mais baixa e mais intimista do que de outros lugares. E por estar praticamente vazio, com mais duas mesas ocupadas, puderam escolher se sentar próximo ao balcão e serem atendidos com agilidade. 

— Então, como está se sentindo com o emprego? — Nirav perguntou depois de fazer o pedido da pizza. 

— Animada, só que... Agora as coisas ficam um pouco complicadas. — respondeu, passando o dedo sobre o entalhe da mesa antiga. 

— Por quê? 

— Porque significa que eu tenho que procurar uma casa agora. Uma casa minha. Só que tem a minha tia e... 

— Ela não quer ficar sozinha. 

Juno encolheu os ombros, erguendo o olhar para o homem na sua frente. 

— Eu não queria deixá-la sozinha, ela é minha única família. — suspirou. — O que você faria? 

— Não me mudaria, simples assim. 

— Mas eu preciso seguir a minha vida, ter minhas próprias coisas, meu próprio lar. E se eu for me casar? 

Nirav franziu o cenho. 

— Você vai se casar? — com uma expressão desconfiada, debruçou-se sobre a mesa. — Tem algum pretendente que eu não estou sabendo? 

Juno deu risada, abanando a mão com desdém. 

— Não! Você entendeu o que eu quis dizer... “E se”, sabe? 

— Ah, então ainda é só um “e se”. — Nirav parou um instante, ajeitando os cabelos. — Achei que não tinha vontade de casar. 

Debruçou-se sobre a mesa também, ficando mais próxima a ele. 

— Hm, nunca foi um objetivo de vida. Nunca planejei nada do tipo, pois nunca me interessei. 

— Entendo. 

— E você também, pelo visto. 

— Sim, sabe que penso do mesmo jeito. — concordou, vendo-a sorrir. — Mas como te disse no outro dia, acho que dividir o teto não seja assim tão ruim. Então, talvez eu prefira só, quem sabe, morar junto, dormir na mesma cama, conviver diariamente... 

Juno fechou os olhos, deixando a imaginação criar o cenário perfeito. 

— Oh, sim! — o sorriso em seus lábios engrandeceu, ela tornou a olhá-lo. — Eu adoraria. 

— Seria o suficiente para você? 

— Seria perfeito! 

— Filhos? 

— Nada de filhos. 

— Nada de filhos. — ele anuiu com precisão. — Um cachorro, talvez? 

— Com certeza um cachorro! 

Ambos sorriram por um instante, perdidos no olhar um do outro, deleitando-se com os reflexos falsos que suas mentes criaram de um cenário inexistente. Só então, Juno recolheu-se à vergonha de perceber o que estava fazendo. 

— Desculpe, isso foi idiota. — ela lamentou, recostando-se na cadeira, afastando-se dele. 

— O quê? 

Para seu alívio, o garçom se aproximava com o pedido, intervindo na conversa e impedindo-a do constrangimento. Com a comida disposta, assim como o refrigerante, os resquícios de efeito do álcool abandonaram de vez sua mente. Apesar do constrangimento anterior, era difícil evitar o homem à sua frente. Portanto, permanecia falante, comentando sobre qualquer coisa que vinha em sua cabeça, só por ser Nirav ali, a escutando. Ele tinha esse poder. E parecia perceber, pois correspondia, respondendo a qualquer assunto que trazia para a conversa, incentivando-a a continuar tagarelando, a ponto de quase esquecer da comida. 

— Sabe, de todas as coisas para minha vida, trabalhar em uma produtora de vídeos comerciais não estava nem nas opções extras das minhas listas! — comentou, terminando de abocanhar um pedaço e o empurrando para dentro com um gole generoso de refrigerante. 

— Lembro de você querer revolucionar o cinema. — ele respondeu, passando a língua sobre os lábios. — Gerar mais acessibilidade, não só ao conteúdo, também para produção. Como você dizia... 

Juno sorriu, dizendo junto dele: 

— Todos temos uma história e toda história merece ser contada. 

Com o rosto a queimar, ela se deleitou com o olhar admirado dele, do outro lado da mesa. 

— Não acredito que ainda se lembra disso. — respirou fundo, lembrando-se daquela época. — Ah, eu era tão jovem, tão idealista, cheia de sonhos revolucionários e coisas do tipo. 

— E eu sempre admirei essa parte sua. — comentou, sorrindo em sua direção. — Você sempre foi mais voltada para ação do que eu, sempre cuidadoso. Se tinha alguém que era capaz de mudar o mundo, esse alguém era você. 

— Gosto de como fala como se nos conhecêssemos pela vida inteira e não... — sua voz morreu lembrando dos sete longos anos que os separaram. 

— Não era o que você dizia? — ele interrompeu seus pensamentos, roubando-a das memórias ruins com seu belo sorriso. — Como se me conhecesse desde sempre. 

Sem jeito, Juno ajeitou uma mecha de cabelo para trás da orelha. Voltando a cortar uma outra fatia de pizza, mudou o assunto: 

— Eu me sinto realizada, apesar de tudo. — declarou, cortando a fatia em pequenos pedaços. — Sinto que estou onde deveria estar. 

— Às vezes, estamos melhores nos menores detalhes. — elucidou, voltando atenção ao pedaço abandonado em seu prato, terminando de comê-lo com algumas garfadas. — Mas você ainda tem a vida toda pela frente para realizar seus objetivos, revolucionar o cinema, contar sua história... 

Gostava de como ele acreditava nela sem, por um segundo sequer, duvidar do seu potencial. Mesmo quando ela mesma não parecia acreditar em si. 

— Para alguém que sempre quis contar histórias, nunca tive uma própria para contar, não é? 

— Bem, não é como se você tivesse perdido todas as chances. Está aqui agora. É mais uma oportunidade. 

Juno o olhou, observando-o. No fundo, sabia que história queria contar. A única que valia pena ser contada. Entretanto, deveria contá-la? 

— E quanto a sua história? — limpou a garganta, trocando o assunto. 

— Você conhece a minha história. 

— Qual história contaria? 

Nirav a olhou, sem piscar. 

— Ainda estou tentando descobrir. — sorriu, então, com deboche. 

Reconhecendo a resposta recebida, ela revirou os olhos, e aceitou. 

— Certo. — anuiu com a cabeça. — Justo. 

Quando a pizza chegou ao último pedaço, o estabelecimento já estava vazio. Exceto pelos dois, que continuavam conversando como se não houvesse amanhã, apenas o balconista permanecia no lugar, cochilando sobre o próprio punho, na eterna espera de que eles pagassem a conta para, enfim, fechar o caixa. No entanto, mesmo quando a pizza acabou, nem Juno ou Nirav fizeram menção de se levantar para ir embora. As horas deslancharam madrugada adentro e eles, sem perceber, gastavam o tempo que não tinham, juntos. 

— Oh, acreditaria se eu dissesse que essa foi a melhor pizza que comi em anos? — ela bateu na própria barriga estufada, satisfeita. 

— Já dizia minha mãe que o melhor tempero é a fome. — ele comentou, fazendo-a rir. — Então, o que acha da música? 

Juno fez uma careta confusa, surpreendida pela pergunta. Olhou ao redor debilmente, como se fosse capaz de ver a melodia ou cheirar o ritmo. Era lenta, com uma letra romântica de rimas duvidosas. Estranhamente, combinava muito com a iluminação. 

— Brega. 

— Não é tão ruim assim. — ela acompanhou-o com olhar quando ele se levantou. — Eu poderia dançar, se você dançasse comigo. 

Observando a mão dele estendida em sua direção, servindo como um convite irrecusável, Juno sentiu seu coração saltar dentro do peito. 

— Não tem ninguém dançando. 

— Não tem ninguém em lugar nenhum, você quer dizer. — corrigiu, fazendo-a rir. 

— Você realmente quer fazer isso? 

— Você não? 

Juno já havia dito sim antes de sequer pensar na possibilidade de dizer não. Pegou na mão dele. 

Em segundos, o mundo inteiro deixou de existir. Só havia Nirav segurando a sua mão em direção ao centro do chão quadriculado, iluminado por uma centena de lanterninhas coloridas. E a música deixou de ser tão ruim assim. Naquele instante, era quase a melhor que alguma vez já ouvira.

A mão direita dele envolvia sua cintura e a esquerda segurava seus dedos enquanto a conduzia ao longo do salão vazio. Mantinha-a próxima, fazendo os corpos colidirem em determinados momentos, era quando Juno conseguia sentir cada parte dele em contato com cada parte sua.  

O calor da pele ao tocar na sua, como se ambos estivessem com brasas sob as finas camadas de tecido que cobriam a extensão de seus corpos, esquentando e soltando faíscas a cada esbarrão, prestes a explodir. O cheiro do shampoo nos cachos recém-lavados, combinando com o perfume impregnado na barba, bem como no pescoço, até o suave cheiro do sabão em suas roupas, provocando os mais diversos efeitos ao invadirem suas narinas tão viciadas, como se cada cheiro dele fosse uma espécie de entorpecente. E a vida que pulsava dentro de Nirav, que fazia a sua própria vibrar em resposta, como o peitoral dele que subia e descia pela respiração oscilante, o pomo de adão deslizando por sua garganta ao engolir a seco, e o leve tremor em seu peito por conta de seu coração acelerado. Conseguia sentir cada parte dele como se fosse a sua própria. Como se, naquele momento, fossem um só. 

Se havia algum plano reservado ao seu destino, Juno esperava se parecer com esse momento. Os dois juntos, embriagados no fim de uma noite qualquer, dançando ao som de uma música tosca, sob luzes vibrantes que entorpecem os sentidos. Se pudesse escolher, viveria essa noite por todas as outras noites que estavam por vir. 

— Preciso confessar uma coisa. — a voz murmurada dele alcançou seus ouvidos como um verso da música que os embalava. — Acho que tive inveja de Elio. — a boca estava quase encostando em sua orelha. — Sem querer vi vocês dois dançando hoje. Não esperava encontrar você logo no bar do outro lado da rua em que eu estava. 

— E por que não veio falar comigo? — perguntou, com o rosto colado ao ombro dele. 

— Não queria atrapalhar. Você estava tão incrível se divertindo, rodopiando nos braços dele, com um sorriso tão bonito... 

— Você nunca atrapalha. 

Nirav suspirou. Conseguiu sentir o hálito dele deslizar por seu pescoço até seu ombro. 

— Acho que senti um pouco de ciúmes. — agora, o sussurro parecia um lamento. 

Juno afastou o rosto, optando por olhá-lo nos olhos. E ele a olhou de volta, assumindo um semblante de culpa. 

— Ele sempre pareceu te fazer tão bem. Enquanto eu, toda vez que me aproximava, parecia te deixar triste. E eu me odiava por isso. Odiava significar algo que pudesse te ferir. 

— Não, não... — respondeu depressa, com certo desespero. Era ela quem deveria temer o risco de feri-lo ao se aproximar, não o contrário. — Nirav, não. 

— Por vezes, tive medo de não sermos mais como antes, porque quando vi vocês no sebo, pareciam muito com o que éramos, mas não era eu lá com você. E eu via seu sorriso, o modo como conversavam, distraídos do resto do mundo e eu não podia deixar de pensar que, talvez, eu tivesse perdido isso também. 

Havia tantas coisas que gostaria de dizer. A verdade estava estagnada no fundo de sua garganta, implorando pela oportunidade de seus lábios abrirem, mesmo que por apenas um segundo. Só precisava de um segundo para que deixasse acontecer. E se ainda estivesse embriagada, era provável que se deixasse levar. No entanto, a sobriedade a fez permanecer muda. 

— Desculpe. — ele disse, de repente, parando de dançar. — Eu sei que isso é tão equivocado quanto infantil, eu sei. Desculpe. 

Juno o impediu de se afastar, segurando seus braços com cuidado. Ele merecia uma resposta, contudo, a resposta certa. 

— Não se desculpe, por favor, não por isso. Está tudo bem. Isso é normal, nós ficamos tanto tempo longe e mesmo sendo amigos, nós... 

— Amigos? — ele passou a mão no rosto, tão confuso quanto abalado. — Será que somos só isso mesmo, Juno? 

Não, não eram. Nunca seriam. Essa era a verdade e ao vê-la no reflexo dos olhos marejados dele, tão escuros e intensos, que encaravam os segredos que escondia de si mesma, Juno sentiu-se perdida. 

Nirav segurou seu rosto com ternura, trazendo-o para perto. Muito perto, ela temia. E quando os olhares se chocaram, a centímetros de distância, pareceu ser tarde demais. Chegou a fechar os olhos, antecipando o que viria a seguir. E era tão difícil resistir... O polegar dele deslizava por sua bochecha, tocando sua pele com uma ternura que era só dele. Tanto tempo esperou por aquele toque, tanto tempo antecipou um outro beijo, e então... 

— O que estamos fazendo? — sua voz irrompeu como uma sentença, destruindo todo o momento em questão de segundos. 

Ao se afastar, seu nariz roçou no queixo dele, tão próximos que estavam. Mesmo assim, encarou-o nos olhos, embora as lágrimas começassem a danificar sua visão. 

— O que eu estou fazendo? O que fiz com você? — por um momento, se desesperou. Quando percebeu que queria e teria beijado Nirav, foi consumida pela raiva, pela vergonha, pelo medo. — Eu não... Eu sabia que isso iria acontecer, deveria ter ficado longe, eu nunca deveria ter voltado. 

— Não, Juno, não fale assim... 

Nirav tentou impedi-la, mas ela escapou de suas mãos, fugindo porta afora e o deixando para trás. Não deu tempo para que ele pudesse vir atrás, acelerou os passos até que começasse a correr. E correu o mais rápido que pôde, pois sabia que, se vacilasse, não resistiria. Era fraca demais, covarde demais, corruptível demais. 

A garoa a pegou de surpresa, no meio do caminho, lavando as lágrimas que mancharam sua bela face. Infelizmente, não era o suficiente para lavar sua alma e limpar os pecados que continuavam lá, queimando como uma brasa sob a cavidade de seu peito, batendo forte no ritmo de seu coração ainda apaixonado.


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Notas finais do capítulo

Citando William Shakespeare:

"Esses prazeres violentos tem fins violentos, E morrem em seu triunfo, como o fogo e a pólvora, Que, ao se beijarem, se consomem."

Não teve beijo, mas é o suficiente para a tragédia premeditada acontecer. A gente sabia que não iria dar certo, uma hora ou outra. Os dois ali, brincando no limite da coisa mais uma vez! E a questão é: e agora?



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