O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 49
∾ Todas as minhas lágrimas já foram derramadas por um outro amor.


Notas iniciais do capítulo

Olá, como estão? Tudo certinho?

Trago mais um novo capítulo, sei que eu tenho dado intervalos maiores e demorado um pouco mais, mas pretendo colocar tudo nos eixos e voltar a postar semanalmente como antes!



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A culpa bateu tão forte quanto a dor de cabeça no dia seguinte. 

Estavam no centro da cidade, rodando loja após loja para escolher o presente de casamento de Hester e Theo. Deveria ser entre a quarta ou quinta loja que visitavam e, sem sucesso, partiam para a próxima. Nirav se limitava apenas a seguir Alice, respondendo ao que ela perguntava com o que ela queria ouvir. 

Sua desculpa era o dia de trabalho excessivo após o feriado. E não era totalmente uma mentira. Sentia-se cansado, cada parte de seu corpo reclamava do menor dos esforços e qualquer ruído ao seu redor fazia a cabeça parecer prestes a explodir. Só gostaria de ter conseguido dormir, ao menos um pouco, na noite anterior. Porém, era impossível fechar os olhos sem ver Juno. Sua mente estagnada continuava a reproduzir o caos em câmera lenta para que ele, de alguma forma, pudesse aproveitar um pouco da tragédia. Tanto antes como agora, era difícil não pensar e era difícil não desejar ainda ter Juno. 

Bem diante dos seus olhos, a teve como antes. Entre seus braços, a segurou assim como em outrora. Escutou seus risos, sentiu cheiro, tocou sua pele. O suficiente para fazê-lo perder a noção do certo e do errado. Quando deu por si, estava se declarando a ela, quase beijando seus lábios. E o teria feito, se não fosse pela própria Juno, ciente do erro insistente, receando que a tragédia se repetisse. Admirava isso nela, pois odiava a si por ainda desejar o beijo que não aconteceu. Ao contrário dela, não era tão forte assim. 

Então, a culpa o remoía por dentro. E a culpa não é tímida em punir aqueles que a merecem. Manifesta-se quase como uma dor física, de dentro para fora, crescendo e crescendo, até não caber mais em sua pequena casca corpórea, sem quase nunca arrebentar. Essa é a pior parte da culpa. Ela não se esvai em uma explosão, só contorce e tortura, até que sua vítima esteja sufocando em si mesma. 

Havia falhado com as duas. Era isso o que mais lhe doía. A sua intenção clara de trair Alice, quebrar todas as promessas vazias que havia feito para tentar não convencer a ela, somente a ele mesmo. E tentar submeter Juno a tudo o que ela tentava superar, fazê-la se sentir culpada pelo seu desvio de caráter, pela sua falha moral. Em seu infinito egoísmo, Nirav condenava a mulher que deveria amar e aquela que amava. 

Enquanto Alice enchia uma vendedora de dúvidas, Nirav andava de um lado para o outro sem nenhum propósito. Seus olhos se perdiam nas vitrines, encarando o próprio reflexo, encontrando o homem lamentável que temia ter se tornado. Então, olhava as ruas e o constante movimento do fim do dia, desejando... desejando... não sabia o que desejar, pois tudo o que parecia querer era errado. E quando Alice o olhava, procurando alguma aprovação ou sugestão, sentia que ela sabia. Sentia naqueles olhos que ela encarava seus mais profundos pecados e só escolhia ignorar. Talvez por ser fácil ou por esperar que Nirav tivesse coragem o suficiente para contá-la. Ele não saberia diferenciar um do outro. Há muito tempo perdeu a noção do que deveria ser feito e o que queria fazer. 

— O que acha desse? — ela se aproximou para puxá-lo pelo braço, levando-o até uma cama disposta no meio da loja. Era de casal, coberta por um edredom estampando o outono com quatro travesseiros cheios de folhas acobreadas. Não entendia a necessidade de tantos travesseiros para só duas pessoas. — Achei que as cores combinam com a casa nova. 

Nirav fungou, encarando a cama. O que ela esperava que dissesse? Tudo que havia em sua garganta não tinha nenhuma relação com Hester e Theo. Desamparado, Nirav olhou da cama para a vendedora e da vendedora para Alice. Perguntou-se o que Alice pensaria se confessasse ali, na frente da loja inteira, que desejava outra mulher. 

— O que há com você hoje? — reclamou quando ele não falou nada, impaciente com seu silêncio agourento. — Eles são seus melhores amigos, não meus. Espero que se lembre disso. 

Nesse momento, soube que ela sabia. A raiva implícita em sua voz, o olhar rígido ao mesmo tempo ferido. Por isso, sentiu-se miserável. Quando ela desistiu, ele puxou seu braço. Não havia tanto calor naquele toque como outra vez tivera. 

— Deveríamos tentar algo mais... vivo. — sugeriu, fazendo-a piscar em dúvida. — São folhas mortas no outono. Não acho que seja um bom presente para recém casados. 

Alice ponderou suas palavras. Passou o olhar de seu rosto para a cama e depois o olhou de novo e concordou, acenando com a cabeça. 

— Tem razão. Não tinha visto por esse lado. 

De repente, notou um lampejo de sorriso brilhar no canto de seus lábios e não entendeu. Estava assim tão necessitada da sua miserável companhia? A ideia o fez querer vomitar. Ela só queria que seu namorado agisse como um namorado, nada demais. Estava tão errada em desejar isso? 

Respirando fundo, decidiu cumprir o papel a si imposto. Alice merecia ao menos isso. Devia isso a ela. Por isso, a seguiu para o fundo da loja, aceitou olhar colcha por colcha, edredom por edredom, travesseiro por travesseiro. A metade era extravagante demais e a outra parte era cara demais. Ainda assim, foi o suficiente para fugir das consequências de seus pecados e ignorar os sentimentos que o consumia por dentro.  

Por um tempo, mas só por um tempo, não sentiu os demônios morderem sua alma. 

O ocaso caíra por completo quando deixaram a loja com um conjunto branco mais sofisticado, porém com traços rústicos, sem estampas, apenas com o acabamento em lã cinza. Do lado de fora, um céu limpo e estrelado pairava sobre a cidade acesa, soprando uma leve brisa fria. Nirav decidiu dar carona a Alice até seu apartamento. Naquele horário, as ruas já estavam mais vazias e o tráfego menos sobrecarregado, de qualquer forma, preferiu traçar um caminho mais longo para deixá-la em segurança. E, quem sabe, criar algum tipo de coragem. 

Um silêncio sepulcral sucumbiu aos dois dentro do pequeno carro popular. Até a música ruidosa do rádio parecia abafada, oprimida dentro do silêncio. Era quase como se recusassem a falar, por medo do que viria a seguir. Tudo o que precisavam era de uma deixa e, no entanto, nenhum dos dois pareciam estar dispostos a darem a bendita deixa. Um suspiro despercebido fugiu de seus lábios viciados, que ansiavam por um cigarro que não tinha. Poderia fumar um maço inteiro para suportar aquela viagem até o fim. Olhando pelo retrovisor interno, Nirav observava o rosto nulo de Alice, que olhava pela janela. Desde quando se tornaram tão estranhos a ponto de ser incapaz de ler sua expressão? Era como se encarasse uma parede de gelo, um vidro opaco, um vazio denso. Nada escapava, nenhuma pista do que estava pensando. E talvez, ele só quisesse que ela perguntasse. Porque, talvez assim, ele teria coragem de dizer a verdade. 

No fim, quando estacionou o carro na frente do prédio, Alice insistiu para que entrasse. 

— Já está ficando tarde. — ela disse, fechando a porta do carro. — E precisa me ajudar a levar o presente. 

Não, não precisava. Mas, por algum motivo, o fez. Bateu com a porta do carro e tirou o pacote das mãos dela, antes de segui-la pela portaria. Observando-a diante de si, subindo as escadas enquanto cumprimentava os vizinhos que passavam por eles, Nirav notava uma simpatia forçada em seus modos que o incomodava. Ela tinha um sorriso estagnado no rosto, um olhar vazio que imitava um brilho fosco. Quase como se ela estivesse desempenhando um papel em uma peça de pantomimeiros. E, no fundo, estivesse se esforçando para se convencer de que era real e não uma farsa que, aos poucos, começava a ruir. Ver o que havia feito a ela fez Nirav sentir-se o ser mais miserável a caminhar pela terra. 

Ainda atuando em um papel defasado, Alice se enfiou apartamento adentro, sem dar chance para Nirav se despedir. Sem dar chance para que dissesse nada. Ele começava a desconfiar que ela só estava evitando o pior, assim como ele. Não podia culpá-la por isso. Todavia, também não podia mais suportar aquela mentira. Eles não mereciam. 

— Estava pensando em fazer uma lasanha — ela disse da cozinha, depois de abandoná-lo na sala com o gigante pacote de presente. — Quase não ficamos juntos nesse feriado. 

Nirav bufou, meneando a cabeça. Escutou o barulho de pratos e talheres, tão altos que pareciam estar despencando pelo chão da cozinha. Largando o pacote sobre o sofá, ele esfregou o rosto. Ela continuou tagarelando. Ela nunca tagarelava. 

— O que vai querer beber? Acho que ainda tenho um vinho aberto na geladeira. Posso fazer um suco também. Não tem refrigerante, mas... 

— Alice. — interrompeu-a com delicadeza. 

Ela ignorou. Desesperado, Nirav coçou os cabelos e esfregou o rosto. Em um repentino lampejo de raiva, acertou um tapa em sua própria bochecha. Então, decidiu não voltar a atrás. 

— Alice, eu preciso conversar com você. 

— Um instante! — continuou a fugir. — Pode me ajudar a pôr a mesa? Logo fica pronto, não... 

— Chega! — ele trovejou, observando-a surgir na sala outra vez segurando uma colher de pau tão incrédula quanto assustada. — Eu não consigo mais! Isso não está mais funcionando! 

— Sobre o que está falando? — perguntou fingindo-se de confusa, franzindo o cenho. Ele desejou que não jogasse esse tipo de jogo. 

— Sobre nós! — disparou de uma vez, impaciente.  

A voz dela desapareceu, na boca debilmente aberta, qualquer resposta pronta pareceu morrer em sua garganta. Houve um momento de silêncio, Nirav resolveu respirar fundo para tentar equilibrar a situação. Não precisavam brigar, não mais. 

— Eu vou ser honesto com você, Alice, eu não consigo mais continuar nesse relacionamento. — não acreditou em dizer tais palavras, apenas jorraram de sua boca como se não pudessem ser paradas. E não havia mais volta. Quando ela o encarou com os olhos avermelhados, ele não sustentou o olhar. — Eu sinto muito. 

— Não, você não sente. — ela fungou, a irritação tremendo em seus lábios. — Mentiroso. 

Ele meneou a cabeça, suspirando, tentando ir até ela e sendo evitado. Alice o afastou com desdém. 

— Alice, por favor. Eu não queria que as coisas terminassem assim, eu só estou perdido. Eu não sei mais o que fazer e isso está afetando você. Eu tentei, eu juro que eu tentei, mas eu não consigo mais. Estou no meu limite! 

— Perdido? Perdido com o quê? Eu é que estou perdida, Nirav! Eu sequer sei do que você está falando! 

— Estou falando dos meus sentimentos! 

— Por que isso agora? — ela parecia tanto prestes a chorar quanto prestes a surtar. Em seus olhos, as lágrimas ardentes. Em seu punho, a força esmagando a colher de pau. — Por quê? O que aconteceu? 

Ele engoliu a seco. E mentiu. 

— Nada. 

Ela percebeu. 

— O que aconteceu? — ela se aproximou, aumentando o tom de voz. — O que você fez? 

— Eu não fiz nada, Alice! — por muito pouco. Quis fazer. Mas não fez. 

— Mentira! 

— Alice, eu juro... 

Ela arremessou a colher de pau contra o chão, estilhaçando-a em duas partes. Nirav não chegou a se assustar, sabia que não tinha a intenção de acertá-lo. Alice chorou em um silêncio raivoso. 

— Foda-se seus juramentos! — as lágrimas manchavam sua face em fúria. — Não me servem de nada. 

— Não vou discordar de você. — murmurou, mantendo a cabeça baixa. — Não tenho esse direito. 

— Oh, não se faça de bom moço agora. Não me venha com essa palhaçada. — Alice fungou, passando as costas da mão sobre as bochechas vermelhas. — Por que isso agora? Ou melhor, por causa de quem? 

Nirav desviou o corpo, afastando-se dela ao caminhar sem rumo pela sala. Ela insistiu, tornando a aumentar o tom de voz: 

— Vamos, fale! Me responda! 

— Você sabe, Alice. 

— É claro que eu sei. — ela tornou a se aproximar, cruzando os braços ao encará-lo. — Eu só queria saber se você tinha coragem o suficiente para assumir na minha cara. E eu vi que não tem. 

Eles se encararam. Tudo parecia desmoronar entre eles e não havia nada que pudesse ser feito.  

— Por que não diz o nome dela? Por que não tem coragem de admitir? — Alice inquiriu. — E espera que eu acredite que não me traiu? 

— Eu não traí você! 

— Mas teve vontade, não minta para mim! — praticamente gritou, calando sua boca. — Por isso está com essa conversa fiada agora, só para poder correr para os braços dela sem se sentir culpado. Só que, adivinhe, a partir do momento que desejou outra pessoa, quis estar com outra pessoa, já é o mesmo que estar me traindo. 

Nirav esfregou o rosto, meneando a cabeça. Seus cabelos estavam tão desgrenhados quanto seu estado de espírito. E sua barba era um amontoado disforme. Era a bagunça que desconfiava sempre ter sido. 

— Não comece com isso, sabe que não é assim. Eu estou sendo honesto com você, acha que eu estaria terminando com você se pretendesse te trair? — disse sem acreditar no que dizia, só podia esperar que estivesse certo. 

— E ter sentimentos por outra pessoa é o que, Nirav? 

— É diferente, não é como se eu tivesse me apaixonado por outra pessoa... 

Ela o interrompeu. 

— Desde que ela voltou, você se tornou outra pessoa, uma pessoa que eu não reconheço. Não é mais o cara que eu conheci. Eu nem sei quem você é mais. Ela acabou com você! — sua voz trêmula vacilou e quando pareceu que estava prestes a desabar, na verdade, ela explodiu. A voz oscilante tornou-se alta e estridente. — Olha só para você! Parece um animal de estimação abandonado, com o rabo entre as pernas. E agora que a dona se arrependeu, você volta correndo para ela. Ela acabou com você! 

— Ela não fez nada, Alice. Se tem que culpar alguém, culpe a mim. 

— Você ainda tem coragem de defender essa mulher para mim? — Alice deu uma risada histérica e incrédula. — Está brincando com a minha cara? 

— Não estou defendendo ninguém, Alice! — pela primeira vez, ele ergueu a voz para respondê-la. — Isso não é sobre ela. É sobre nós dois. E eu devo a você, por isso estou aqui, por mais que me doa. Eu sinto muito! 

— Cale a boca, você não sente porra nenhuma! — aquilo o surpreendeu. — Para o inferno vocês dois! 

No rosto choroso dela, Nirav viu os melhores momentos escorrendo por sua face, sem ter mais volta. Cada sorriso, cada toque, cada sentimento se transformavam em raiva, decepção e ressentimento. Estava tudo por um fio e o fio se arrebentava a cada instante. 

— Eu nunca te tratei assim, Alice... 

— E acha que o que estava fazendo comigo era me tratar diferente? Pare de tentar se convencer de que está fazendo as coisas do jeito certo, você sabe que não está! 

Se havia alguma esperança em terminar em bons termos, Nirav havia abandonado há algum tempo. Só restou abaixar a cabeça e acatar a fúria dela. Porém, mesmo isso a irritou. 

— Quer saber, vocês dois se merecem mesmo! — cuspiu as palavras, então não parou mais. — Toda aquela conversinha de que não importava mais, que tantos anos se passaram, que o aconteceu tinha ficado para trás e que vocês já não eram mais os mesmos, toda essa baboseira era mentira! Mentiu para mim todo esse tempo! Na primeira oportunidade, você foi correndo atrás dela. Mentiu e enganou, do mesmo jeito que ela fez! Você é igualzinho a ela! Vocês são perfeitos um para o outro! 

O peso das palavras acertou-o como um soco na boca do estômago. Estava tão enojado consigo mesmo que poderia vomitar. Não conseguia se suportar mais. Teve vontade de chorar, porém, nem uma lágrima foi capaz de derramar. 

— Eu vou entender se não puder me perdoar, eu mereço isso. Só saiba que não foi em vão nada do que tivemos. — sentia-se tão sujo por dizer algo tipo, por mais verdadeiro que fosse. — Eu sinto muito, de verdade. 

— Para o inferno você e as suas desculpas, eu não acredito em nenhuma delas. — ela respirou fundo, olhando-o uma última vez. — Vá embora, eu não quero mais ver você. 

Agora, uma lágrima escorria por seu rosto. 

— Alice, eu... 

— Vai embora! — ela berrou com toda força, conseguia ver as veias de seu pescoço saltarem. — Some daqui agora! Sai! 

Quando fechou a porta atrás de si, escutou a raiva de Alice se transformar em soluços. Parte de si queria voltar e abraçá-la, ao menos uma última vez, só para confortá-la. Porém, ao olhar para trás, aquele caminho já estava fechado. Tudo o que encontrava era uma porta trancada. 

Por algum motivo, pensou em Nicholas. Não estava se comparando a ele, na verdade, pegou-se comparando a Juno. 

— Foi assim que se sentiu? — perguntou para ninguém em particular ouvir. — Sentiu ser injusta, cruel e covarde? — só precisou ponderar para perceber que já sabia a resposta. — Não, você sentiu medo. Eu só estou sendo babaca. 


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Notas finais do capítulo

Bem, apesar dos pesares, Nirav tomou atitude correta. Não que ele não tenha esperado quase o pior acontecer para isso, mas, pelo menos, alguma coisa foi feita. Mas será que é o suficiente?



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