O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 47
∾ Essas correntes nunca me deixam, mas eu serei livre e ficarei bem.


Notas iniciais do capítulo

Olááá, mais uma vez!

Peço perdão pelos meus atrasos aqui e ali, sabe como são as coisas, né. Sempre tem alguma coisa para dar errado. Mas bem, mais cedo ou mais tarde, estarei sempre aqui servindo um capitulo fresco. ♥



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A sensação era de estar acordada em um sonho lúcido e despertar de repente. Como a linha tênue da sonolência que borra o que a realidade e o que é sonho e, por algum tempo, é difícil entender o que está acontecendo. 

Em um momento, tinha o sol nos cabelos e o sorriso bobo no rosto ao lado de Nirav. No outro, atravessou a cidade entardecida a passos rápidos e encontrou a porta do escritório aberta à sua espera. Lembrava-se de hesitar, receando que a urgência gritada por Elio no telefone resumisse a mais uma demissão precoce. E enquanto entrava, esperando o destino fatal que a espreitava, era difícil não pensar em todas as vezes que fracassou. 

Ao entrar, no entanto, encontrou Elio com seu sorriso sem jeito no rosto sardento. Tentou perguntar e ele nada disse, apenas acenou para continuar indo até o segundo andar, onde suas duas patroas esperavam. Ambas tinham um sorriso similar ao de Elio. E Juno não entendia. Um sorriso não significa que uma coisa boa virá a seguir. E pessoas podem ser sádicas, Juno sabia muito bem disso. 

Quando o contrato atravessou a mesa e pousou entre seus dedos, a linha tênue que borra a diferença entre a realidade e a ilusão tornou-se um pouco mais densa. Como uma criança que um dia já foi, receou ser só um sonho de fim de noite, esperando o mínimo vislumbre da manhã para se dissipar. Desde o encontro com Nirav até as páginas daquele contrato. Teve receio de despertar para uma realidade não tão agradável, que ainda temia não ter superado. Mas apertando freneticamente o clique da caneta esferográfica enquanto lia as linhas que a designavam para um serviço fixo, Juno entendeu que se tratava da realidade em si. Da sua própria realidade e ninguém poderia tomar isso dela. 

Seus dedos trêmulos folhearam as páginas uma e duas vezes, só para ter a certeza de que não estava lendo errado. Escutou Regina, do lado direito, erguendo a voz pela primeira vez, questionando se havia algo errado. Não, não havia. Só estava tentando dizer a si mesma que havia conseguido. Bastava rubricar em uma letra garranchada pela ansiedade e teria um emprego fixo. O primeiro nos últimos anos. 

Apesar da noção da veracidade daquilo que estava diante de seus olhos, era difícil assimilar o que acontecia. Por isso, quase não falava e muito pouco escutava. Regina e Elise explicavam a necessidade de adiantar a sua contratação, balbuciando sobre novos projetos e expansão dos negócios. Juno apenas assentia, como uma obediente empregada, embora fosse difícil manter a atenção. Elas sorriram satisfeitas em sua direção e, uma de cada vez, apertaram sua mão. Então, Juno soube que estava feito. E que havia conseguido. 

Conforme se despediu e saiu da sala, a lembrança do que havia lido repetidas vezes retornava à sua mente. Precisava repetir incansavelmente para dar a si mesma o crédito. E embora não fosse um salário tão recheado, um projeto que não era o ideal, era o suficiente porque era seu agora.  

O mundo só pareceu retornar à normalidade quando fechou as portas do escritório atrás de si. A cada passo que dava em cada degrau, a realidade estabelecia-se cada vez mais firme. Aos pés da escada, Elio a esperava ansioso e curioso. As mãos emboladas umas nas outras, se esfregando. O sorriso vacilante e os olhos bem abertos. Parecia estar mais nervoso do que ela. 

Juno parou diante de Elio. Ela encarava o chão enquanto ele a encarava. A atmosfera repleta de expectativas rodeando os dois, parados, numa sala bagunçada. Ela respirou fundo, erguendo o olhar para ver seus belos olhos azuis. 

— Isso realmente acabou de acontecer? — percebeu que quase não ouvia o som de sua voz, pois seu coração batia tão alto que parecia estar dentro de sua cabeça. 

— É você quem precisa responder isso. — ele riu, nervoso, ajeitando os cabelos ruivos. — E então? 

Juno não soube o que responder. Não havia palavras que pudessem explicar, porque não era tão simples quanto parecia. Para ela, poucas coisas eram tão simples. E um abraço era uma dessas poucas coisas. 

Apenas pulou no pescoço de Elio, abraçando-o com força. Ele exclamou surpreso, mas soltou um riso aliviado. Mantendo-a segura entre seus braços, Elio rodopiou sobre os próprios calcanhares, fazendo Juno levantar voo por alguns segundos. Até que quase derrubaram o vaso decorativo do corredor. 

— Acho que isso quer dizer que deu certo. — ele comentou, ajeitando o grande vaso de porcelana com cuidado. 

— Sim. — ela concordou, balançando a cabeça seguidas vezes. — Sim, sim, sim! — deu uma risada satisfeita. — Sim! 

Contagiado pela sua felicidade, Elio riu junto. 

— Estou orgulhoso de você, sabia que ia conseguir. 

— Quase não consigo acreditar. — murmurou, respirando fundo. 

— Vai ser um prazer trabalhar com você. 

Juno fez uma careta, acotovelando-o de brincadeira. 

— Vai se arrepender por essas palavras, sabe disso, não sabe? 

— E eu sei que vai trabalhar duro para que eu me arrependa. 

Ela riu, depois gargalhou. Então, em um impulso, segurou o rosto dele com ambas as mãos e beijou ambas suas bochechas. Um beijo de cada lado do rosto. Elio tornou-se tão vermelho quanto seus cabelos, mesmo embora a sua circulação parecesse ter coagulado de tamanho nervosismo. 

— Precisamos comemorar! — disse, depois de soltar suas bochechas. 

Sem jeito, ele deu risada, coçando os cabelos. 

— E você ainda tem dúvida? 

— Mas antes, eu preciso contar para... — ela ergueu um dedo indicador sobre os lábios, pensando. Tantos nomes vieram em sua mente que não conseguiu escolher um sequer para dizer. — Para todo mundo! 

— Sua tia vai adorar saber da notícia. 

Juno fechou os punhos, quase dando pulinhos. 

— Ela vai amar! 

Elio sorriu, batendo a mão em seu ombro com satisfação. 

No fundo, Juno desconfiava que havia as mãos dele por trás de tudo aquilo, mexendo umas cordas aqui e ali para ajudá-la a chegar lá. Não precisava que ele lhe falasse, pois sabia que ele jamais admitiria, mas estava agradecida. Por isso, pulou em seus braços novamente, abraçando-o com toda a sua força até ele grunhir de dor. 

— Obrigada. 

— Não tem que me agradecer por isso. — ele sorriu, soltando seu corpo. — O mérito é todo seu, aproveite! 

Juno sorriu ao se despedir. E mesmo quando saiu porta afora, o sorriso permaneceu. O seu sorriso largo, exagerado, que exibia a sua bela arcada dentária. E com esse sorriso a brilhar em seu rosto, Juno sentiu-se desfilar pela cidade. A confiança que a atingia ia dos pés à cabeça, preenchendo cada parte de seu corpo como se sua pequena casca mortal não fosse o suficiente e, logo, ela explodiria, tão grande era seu próprio ser. Sentiu a vida pulsar. 

Era só o primeiro passo. O primeiro passo que a levava para reconstrução de sua vida. Depois de tantas tentativas seguidas de tantos fracassos, era o seu primeiro passo. E agora sentia como se cada parte de sua vida estivesse pronta para entrar nos eixos. 

Conforme andava pela cidade noturna cheia de vida, a cada passo que dava entre as pessoas que enchiam as calçadas, ela sentia como se deixasse algo para trás. Seus medos, ressentimentos e traumas abandonados ao esquecimento, sendo esmagados pela multidão de outras pessoas que iam para lá e para cá nas ruas de Florencia. Juno deu um passo, depois outro e mais outro, quando deu por si estava correndo. Porém, dessa vez não corria para fugir das partes que deixaria para trás, corria porque estava se livrando de cada uma delas. 

Quanto mais corria e saltitava, mais distante ficava dos pedaços de sua história que já não valiam tanto a pena. E o que restava era a felicidade. Como uma garotinha, correndo com os cabelos balançando ao vento e o fôlego rarefeito, Juno sentiu o sentimento pulsando em cada mínimo pedacinho de seu corpo. Quis dançar no meio da rua, sozinha ou com o primeiro estranho que encontrasse. Desejou cantar até receber um sermão ou ser multada por um guarda por importunação. E sentiu vontade de gritar até que sua garganta arranhasse e o ar em seus pulmões se extinguisse. 

Esta parte, por menor e ínfima que pudesse parecer aos olhos de terceiros, era quase imensurável a Juno. E era somente sua. Uma parte que ninguém poderia lhe tomar. Muito menos Nicholas. Ele não estava ali para destruir suas conquistas, impedir o seu progresso, como tantas vezes fizera. Todo o seu veneno ácido que fomentava os boatos infames, as perseguições doentias e suas mentiras viscerais, aos poucos, se tornavam apenas uma lembrança ruim indigna de ser lembrada. Toda a insegurança, o medo e a autossabotagem que a incutiu, nada disso era mais a verdade absoluta que a obrigou aceitar. Cada vez que arruinou suas chances, destruiu seus esforços, arquitetou seus fracassos, já não importava mais. A sua sombra, o seu fantasma, a sua existência não eram mais capazes de assustá-la como um animal encurralado. Ele não podia mais alcançá-la. Conquistar algo, mesmo que só um emprego, sem depender do controle que ele exercia era como recuperar a sua própria vida. Era desabar o cativeiro de medo que ele construiu ao seu redor. Era demolir a sua prisão. Era estar, finalmente, livre. 

E a liberdade tinha um gosto doce, que há tempo sonhava em provar. Embora o tivesse deixado para trás há tanto tempo, partes dele continuavam a infectar sua vida. E, talvez, nunca deixassem de abrir suas cicatrizes, mas estava orgulhosa por conseguir estar progredindo. Sabia que, no fundo, todos também estariam. Sua mãe iria se orgulhar se pudesse. Já sua tia a aguardava com todo o seu carinho. Bem como os beijos que Helena distribuiria em seu rosto. Ou sorriso satisfeito no rosto de Hester. As parabenizações de Lou. As comemorações de Theo. E o calor dos braços de Nirav.

Ah, Nirav.

Mais do que nunca, desejou correr até ele, pular em seus braços e nunca mais soltá-lo, mesmo que ele reclamasse da sua força. Queria contar a notícia a ele e ver seus olhos cintilarem como o sorriso orgulhoso em seus lábios que diriam as coisas mais incríveis que suas orelhas já ouviram. Compartilhar cada sentimento que borbulhava sob seu peito arfante e saber que ele entenderia cada um deles por mais confuso e intangível que pudessem parecer a qualquer outra pessoa. Sabia que ele estaria lá por ela e que entenderia, que a tomaria nos braços e não a soltaria tão cedo e que olharia para ela como se fosse a pessoa mais especial do mundo inteiro. 

Entretanto, apesar de todos seus anseios primitivos viciados na adrenalina daquele amor, correu em direção a sua casa porque era o certo a se fazer. Nesses momentos, todo cuidado é pouco. É fácil se perder quando se é livre. Ter a liberdade entre os dedos é sempre arriscado demais. Um passo em falso e tudo estaria prestes a desabar novamente. E não gostava nem de pensar em algo do tipo. Portanto, correu em direção aos braços em que podia confiar e que encontraria a mesma quantidade de carinho. 

A noite cerrada já cobria a cidade inteira quando chegou em casa, descabelada e exaurida. Engolindo a seco, sua garganta arranhava implorando por um gole de água. O corpo desacostumado tinha os flácidos músculos enrijecidos e irritados pela pressão da corrida, exigindo o mínimo de descanso. Precisava, além de tudo, um banho bem longo e refrescante. Todavia, não procurou por nenhuma dessas coisas. Queria Octavia, apenas ela. A água podia esperar, o cansaço logo viria e a tia que perdoasse o cheiro de suor. 

Seguindo o som da televisão, encontrou a tia cochilando em sua cama, coberta por uma fina manta laranja. Perdida no mundo dos sonhos, estava alheia ao mundo real. E a televisão apresentava esportes radicais para o absoluto nada. Com um sorriso arteiro feito uma moleca atentada, Juno não sentiu um pingo de pena em acabar com o sagrado descanso de sua tia. Pulou sobre o corpo adormecido, acordando a mulher com um susto tão grande que a fez gritar. Sem entender, Octavia a encarou confusa. Com a boca cheia de gargalhadas, Juno disparou diversos beijos no rosto da tia. 

— Juno, minha nossa! — Octavia se divertiu com os beijos, abraçando a sobrinha. — O que está acontecendo? Ganhou na loteria? 

Ela parou de atacá-la apenas para responder. 

— Eu consegui! — exclamou, segurando o rosto da tia entre as mãos nervosas. — Eu tenho um emprego. Eu consegui, eu fiz isso, eu consegui! 

Octavia sorriu, envolvendo seu corpo em um abraço fraternal, esfregando suas costas com as mãos. 

— Você conseguiu, minha querida, conseguiu mesmo! — ela beijou o alto de seus cabelos. — Não sabe como estou feliz por você. Oh, estou tão orgulhosa! 

— Eu não preciso mais voltar. Eu estou aqui e vou ficar. Eu posso ficar. Eu quero ficar! 


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Notas finais do capítulo

Quando eu escrevi sobre a Juno e tudo mais o que aconteceu em sua vida, eu sempre tive em mente em não resumi-la ao trauma que sofreu. Porque a Juno não é o que o Nicholas fez com ela. Então, eu sempre me preocupei em mostrar a Juno como ela é, apesar dos pesares, mas revelar um pouco aqui e um pedaço ali, que suas dores ainda existem, só não são tudo o que ela é. Ela quer viver, ela quer recomeçar, mas ela ainda sente as correntes que a limitam puxando ela pra trás algumas vezes. Ela é a garota sorridente, brincalhona e extrovertida, mas que, às vezes, continua presa no passado e se sente acuada. Nós vemos suas dores, seus receios e seus traumas, mas nunca quis mostrar só isso, porque ela não é só isso. Tudo isso é só parte de quem ela como um todo. Não a resume, no fim das contas. ♥



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