O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 46
∾ O perfeito farsante se apaixonando pelo que não é real.


Notas iniciais do capítulo

Olá, gente!

Gostaria de pedir perdão pelo atraso, eu me enrolei na semana passada. Estava engajada nas olimpíadas, desregulei meu sono inteiro pra ver jogo. E, para variar, tive a brilhante ideia de adotar uma gata nova para fazer companhia pra minha gatinha atual. Foi a semana mais estressante pra tentar adaptar as duas, não vou mentir, passei sufoco! De qualquer forma, aqui estamos mais uma vez. ♥



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Após a chuva pesada da noite anterior, o dia amanheceu com o céu de um azul claro estampado por um arredondado e vibrante sol, que fazia o mundo parecer mais vivo, com a vegetação renovada exibindo folhas reluzentes e pétalas coloridas, que ornamentava uma cidade ao despertar para mais um dia. Sob os longos raios de sol que derramavam seu calor, Florencia tornava a florescer diante dos olhos de quem se prestasse a ver. 

Pela manhã, um inebriante aroma de terra molhada preenchia as narinas com o cheiro de lar. Várias pessoas colocavam cadeiras nas calçadas para observar o movimento, admirar as cores da primavera e aproveitar o feriado que julgava estar perdido por conta das chuvas. Algumas outras iam e vinham rindo e conversando, passeando pelas vielas da cidade sem nenhum tipo de preocupação. Conforme o dia se estendeu, o clima esquentou. Em pouco tempo, a cidade estava fervilhando não só de calor, também de vozes, risos e passos.  

Ao longo do concreto umedecido que fervia no sol quente, logo quando a tarde anunciava sua chegada, Nirav encontrou quem ainda parecia ser a garota dos seus sonhos, esperando por ele como se o tempo não tivesse passado. Em uma esquina, escorada em um poste enquanto mexia no celular, Juno o aguardava. 

Vê-la ali, tão distraída e espontânea, trouxe à tona lembranças dos tempos perdidos, quando a simples ideia de um encontro como aquele era o suficiente para deixar seu dia mais feliz. Precisou resistir à tentadora vontade de tê-la nos braços, tentando lembrar a si mesmo de que não era mais o rapaz de vinte e poucos anos. Entretanto, a cada passo na direção daquela mulher, sentia-se caminhando em direção a um precipício. E não podia evitar. Sentia-se cego pela luz que dela irradiava, perdido no caos que ela emanava. 

E, no entanto, quando ela veio em sua direção foi como se nada mais importasse. Olhou-o como se não houvesse mais ninguém no mundo digno de ser olhado. E pousou entre seus braços como se não pudesse resistir. Fê-lo sentir como a pessoa mais miserável e, ao mesmo tempo, a mais satisfeita. De repente, o mundo inteiro parecia estar vazio. Ao seu lado só havia ela, vestindo uma jardineira jeans com uma regata branca e sandálias velhas. E ao lado dela, só havia ele, usando sua camiseta preta de alguma banda antiga sobre um short azul e chinelos desgastados. E estava perfeito. 

Não tinham planos. Estavam ali só pela desculpa de estarem juntos, se divertindo com seus jogos perigosos, ignorando as consequências das brincadeiras de mau gosto que o destino os pregou por jogarem tais jogos. De passo a passo, sem preocupação, foram em direção ao centro da cidade andando sem propósito. Decidiram parar sob a tenda de uma barraca de sucos para aliviar o calor que fazia ambos transpirarem. 

— Só você pra me tirar de casa em um feriado que eu planejava dormir o dia inteiro. — Juno ralhou, exibindo um sorriso torto. 

Agora ela tinha nas mãos uma pequena garrafa esbranquiçada com o suco misturado com mamão e laranja, que fez questão de pagar. O mesmo que também trazia nas suas, apesar de misturar apenas sabores cítricos, o que o deixava mais azedo do que gostaria. 

— Desculpe por arruinar seus planos. — lamentou, retomando a caminhada ao lado dela. 

— Ah, não foi uma reclamação! — exclamou, um pouco ofendida. — A verdade é que eu provavelmente estaria arrumando a casa. Octavia tem uma certa obsessão em trocar os móveis de lugar toda semana. — ela revirou os olhos, suspirando. — Semana passada, o sofá estava do lado da parede esquerda. Essa semana, já estava no centro da sala. Na próxima, sabe-se lá onde vai estar. Pode ser que ela coloque do lado de fora! 

Nirav riu da indignação, se obrigando a tomar mais um gole do suco ácido. Esforçou-se para evitar fazer uma careta, embora se perguntasse porque achou uma boa ideia pedir uma mistura tão azeda. 

— Você construiu uma relação boa com sua tia, pelo visto. — ponderou, desistindo de tomar o suco. Ela concordou com a cabeça, colocando uma das mãos no bolso traseiro do macacão. — Como ela está? Quero dizer, em relação a Abigail. Ela parecia bem quando estive lá. 

— Está se recuperando, pouco a pouco, pedaço por pedaço. — Juno encolheu os ombros ao responder. — Ela está mais animada, é verdade. Adorou ver você. — ela ergueu o olhar até o seu, deixando-o sem jeito. — Consigo ver a vida voltando a ela, só que... ainda consigo sentir a tristeza nela, no olhar, no jeito de falar, no silêncio. Ainda está lá. 

Ele ponderou as palavras, reconhecendo nelas um pouco da mulher que tinha ao seu lado. Quantas vezes, olhando para ela, conseguiu notar os mesmos traços, embora não tivesse coragem de apontar a observação a ela. A tristeza, a mágoa e a dor, apesar de já não serem tão marcantes, ainda estavam ali, intrínsecos em cada parte do seu ser. E era algo que admirava nela. Quando tinha um vislumbre de suas marcas, se lembrava do quanto ela havia lutado e quão forte era, mesmo quando ela própria não parecia lembrar. 

— Sempre vai estar, infelizmente. Tem coisas que nem todo tempo do mundo pode curar, mas imagino que esteja mais fácil para ela ter você por perto. 

— Só gostaria de ter estado aqui quando ela mais precisou. 

Por um momento, ele quis dizer que também gostaria de ter estado ao seu lado quando precisou. Que queria ter segurado a sua mão e nunca soltado. Ao invés disso, respondeu:

— Você estava com a sua mãe e tinha seus próprios problemas para lidar. São os dilemas que a vida nos impõe. 

Juno parou apenas para observá-lo com um sorriso largo ao reconhecer a frase que havia dito. Desconcertado, ele coçou os cabelos. 

— Bem, o que importa é que está aqui agora. E vocês têm uma relação incrível. E eu gosto como vocês se encontraram uma na outra. Como mãe e filha. 

— É engraçado que tenha reparado nisso. — disse quando voltaram a andar, cruzando uma esquina. — Às vezes, me sinto um pouco culpada por me sentir assim. 

— Não se preocupe, sua mãe não vai puxar seu pé de madrugada. — provocou, fazendo-a dar risada. 

— Eu realmente espero que não! 

— Acredite, sua mãe estaria feliz de ver vocês duas juntas. São a única família uma da outra. O que já é mais do que posso dizer sobre meu pai. 

Juno fez um ruído engraçado. 

— Você não aguenta mais, não é? — sua pergunta tinha um tom desafiador e seus olhos inquisidores o analisavam com suspeita. Assim que ele não conseguiu formular uma resposta em sua defesa, Juno riu. — Você não aguenta mais, consigo ver na sua cara!

— Não é que eu não aguente mais, é só que... — ele abriu os braços em rendição, então suspirou. — A dispensa já está esgotando e ainda falta uma semana para o fim do mês. Ou seja, eu vou ter que fazer compras antes do programado e bagunçar tudo, porque quando chegar o meio do mês que vem, as coisas já vão estar acabando novamente. E fazer compras no meio do mês é péssimo, quase não tem opção nenhuma nos mercados, as prateleiras ficam praticamente vazias. E para variar, minha sala já não é mais minha! Eu nunca mais vi televisão, na verdade, nem me lembro a última vez que pude ver televisão, porque ele está dormindo na sala. Eu estou preso dentro do meu próprio quarto, sem nenhum tipo de liberdade... 

Quando deu por si, estavam ambos parados no meio da calçada. Juno sequer piscava, com os lábios entreabertos e sobrancelhas arqueadas era toda ouvidos às suas reclamações. Um riso descrente fugiu de sua boca. 

— Eu exagerei, né? 

Ela abanou a mão direita, pousando-a em seguida em seu ombro. 

— Não se preocupe, reclamar faz bem. Parecia que você realmente estava precisando disso. — ela riu. — Sinto que tirou uma tonelada de suas costas. 

—  Ah, cara! Agora eu me sinto culpado. — juntos, atravessaram uma rua entre outras pessoas que conversavam em volta. — De qualquer forma, eu agradeço por passar esse tempo comigo. Estaria preso dentro do meu quarto se não fosse por você. 

Com um sorriso tímido, Juno o empurrou delicadamente com o corpo para provocá-lo. Enquanto ela estava quase terminando seu suco, o dele jazia esquecido entre seus dedos. 

— Deve ser difícil pra você que sempre morou sozinho. — Juno ponderou, girando o líquido dentro da garrafa. — Ter suas coisas só para você, fazer as coisas do seu jeito, ficar sozinho, andar pelado pela casa... — eles riram. — Deve sentir falta disso. 

— Depende. No atual momento? Sim. Mas, às vezes, não acho que seria má ideia dividir o teto com alguém. — seus pensamentos retornaram a Alice pela primeira vez. — Gosto de ter minha mãe lá comigo, por exemplo. E Alice também, mesmo ela preferindo que a gente morasse no apartamento dela. 

— Então o problema é mesmo o seu pai. — ela pontuou, estalando dois dedos. — Encontramos o culpado! — ele não resistiu e riu, sendo obrigado a concordar com ela. 

— Acho que me desacostumei com ele. — Nirav deu de ombros. 

Ela soltou um ruído nasal, puxando sua atenção, ficando alguns passos atrás. Ao terminar de beber o último gole, um filete alaranjado do líquido espesso escorreu pelo canto de sua boca, descendo até seu queixo. Nunca imaginou que poderia ter inveja de um mero suco. 

De repente, sentiu sede. E obrigou-se a tomar da mistura, mesmo o gosto azedando sua língua. Por fim, jogou a garrafa no primeiro latão de lixo que alcançou. O gosto forte, no entanto, continuou a arranhar sua garganta.

— Hmm, deixa eu te perguntar... — ela balbuciou, limpando o canto da boca, sem notar seu olhar desejoso. — Como foi morar esse tempo todo sozinho? 

— Ah, tudo isso o que você falou. Ficar sozinho, fazer as coisas do seu jeito, falar bastante sozinho. E andar pelado. Ah, principalmente andar pelado! 

Juno esboçou uma careta, retorcendo os lábios e revirando os olhos 

— Imagina ser vizinho seu numa hora dessa. 

— Bem, você não precisa imaginar. 

Incrédula, ela entreabriu a boca, engasgando com a própria risada. 

— Como ousa?! 

— Estou falando alguma mentira? 

— Ah, você não vale nada! — ela bateu ambas as mãos em seu braço, então o deixou para trás, adiantando os passos pela calçada. 

Nirav sorriu satisfeito, apressando-se para acompanhá-la, perseguindo-a como sempre costumava fazer. Quando surgiu ao seu lado, ela o cutucou com uma cotovelada. Eles se entreolharam, ambos com sorrisos bestas estampados em seus lábios, como duas crianças arteiras. 

— Falando sério agora. — ele pigarreou, limpando a garganta. Ela só conseguiu sorrir sem graça. Suas bochechas pareciam arder. — É muito bom, mas também pode ser cansativo. Você percebe que a sua melhor companhia é você mesmo. Então, descobre que não tem tempo para contemplar as vantagens de ficar sozinho, porque está preocupado com as desvantagens de ficar sozinho. Você precisa cuidar da casa e de si mesmo. E por mais incrível que pareça, é fácil acabar esquecendo de si mesmo no meio tempo. 

— Sempre que lembro que você começou a morar sozinho no início dos vinte anos, sem nenhum tipo de ajuda, sem ser o da sua mãe, nossa, eu fico pasma. — ela suspirou. — Não consigo imaginar quão difícil foi. 

Nirav respirou fundo, olhando ao redor, se lembrando de como foi chegar naquela cidade. Tudo parecia tão grande da primeira vez, tão assustador e desconfortável. Agora, já não conseguia imaginar vivendo em outro lugar. 

— Foi complicado mesmo. A louça não se lavava sozinha, a cama não se arrumava por conta própria, o papel higiênico não surgia do nada e a tolha não vinha até mim se eu não fosse buscá-la. — seu comentário a fez dar uma risada gostosa, que o deixou orgulhoso. — E o pior era a comida! Até eu aprender a cozinhar, olha, eu passei bastante fome. 

— Oh, algum dia eu ainda tenho que provar da sua comida. — Juno arquejou, suplicando a ele com o olhar, fazendo-o rir. 

— Modéstia à parte, eu faço um espaguete incrível. — piscou para ela. — E minha sopa é uma das oito maravilhas do mundo. 

— E agora são oito? — franziu o cenho com suspeita. 

— Sim, minha sopa foi oficialmente adicionada nessa lista, não sabia disso?  

— Ah, então eu preciso provar essa oitava maravilha do mundo. — debochou, depois apontou um dedo em sua direção. — E você ainda me deve um refresco de bicarbonato. 

Ele parou, subitamente, surpreendido. 

— Você ainda se lembra disso? 

— Nunca esqueci. — abriu um sorriso meigo, obrigando-se a parar e esperar por ele. — Algumas vezes quase arrisquei a tentar, mas não ia ter a mesma graça sem você. 

— Eu posso fazer para você. — ele omitiu um sorriso ao abaixar a cabeça. — Só não me responsabilizo por nenhuma frustração. Algumas coisas só são boas quando somos crianças. 

Juno encurvou os lábios e deu de ombros. Assim, deu um passo e mais outro adiante. 

— Estou ciente dos meus riscos. — disse, já alguns passos à sua frente. 

— Às vezes, me pergunto se tem certeza. — comentou ao observá-la por trás, caminhando a alguns passos de distância. E ela não pareceu ouvir. 

Respirando fundo, Nirav adiantou os passos em direção a ela, arrastando os pés contra o chão, quase com receio de dar o passo seguinte. Mesmo assim, algo o fazia continuar, como se o puxasse até ela. E ao lado dela, recebendo seu mais tenro olhar acompanhado de um doce sorriso, seguiram o passeio ao redor do centro da cidade, trombando em várias outras pessoas, que cumprimentavam com sorrisos e acenos. Juno sempre se preocupava em retribuir, fosse conhecido ou não. E ele sorria, observando-a tão confortável ao seu lado. Era uma situação tão tentadora quanto torturante. Ela estava ali, ao alcance de sua mão, sem pretensão de fugir do seu toque. E ele, no entanto, precisava lutar contra a vontade de ir até ela o tempo inteiro. 

Com os anseios crescendo dentro de seu cerne, esmagando as bordas morais do seu ser, sentiu a necessidade de fuga. E já que não seria capaz deixá-la, procurou por algo mais vulgar. Com as mãos nervosas apalpando o bolso de seu short, encontrou o cigarro e o isqueiro que jaziam esquecidos e amassados. 

— Você se importa? — perguntou, acenando com um cigarro entre os dedos. 

— Não sou eu que deveria me importar. Você deveria. — ela arqueou as sobrancelhas. — Tudo bem, não vou te dar um sermão. Aposto que sua mãe e Alice já dão o suficiente. 

Mesmo com o cigarro entre os lábios, ele abriu um sorriso enquanto acendia a brasa. Em uma tragada, assoprou a fumaça para longe dela. Percebeu que o olhar dela acompanhava suas ações, quase como se o estudasse. 

— Quando começou com o cigarro? — ela questionou, desviando de duas pessoas que vinham na direção contrária. 

— Bem, posso te dizer o motivo de ter começado. — não se lembrava de quando, exatamente, o vício apareceu. Outras vezes, antes de se tornar um hábito, Nirav já estava acostumado com o gosto de nicotina entre os lábios. — Era como uma forma de escapar da pressão do dia-a-dia, quando as coisas ficavam difíceis demais para lidar ou os pensamentos se tornavam bagunçados demais. Eu sei que parece estúpido, e é, mas... Bem, continua servindo, eu acho. No fim, é só mais um vício como qualquer outro. 

— Todos temos em nós alguns vícios.

— E qual seria o seu? 

Ela apenas o olhou. Uma sombra de sorriso, apenas um mínimo resquício de um sorriso brilhou no canto de seus lábios, que ela desmanchou com uma careta. 

— Eu experimentei uma vez na faculdade. — mudou de assunto, de supetão, ignorando que ele havia percebido. — Nunca tossi tanto, quase vomitei. Depois fui ficando tonta e, para variar, tive dor de barriga. 

Nirav franziu o cenho. 

— Tem certeza que era só um cigarro? 

— Eu prefiro acreditar que sim. — ela riu, envolvendo o braço no seu. — É melhor que algumas coisas permaneçam desconhecidas. 

O sol já havia abaixado no céu ao longo do caminho e o calor já não irritava tanto a pele. Enquanto andavam de um lado para o outro, o movimento de pessoas diminuiu para depois aumentar novamente. Dessa vez, porém, a maior parte se direcionava aos bares que começavam a abrir as portas. Ao longe, era possível escutar o ritmo acelerado de músicas que se misturavam ao longo da avenida. Eles continuaram andando, sem se preocupar com o horário. Juno tinha o braço entrelaçado ao de Nirav, que terminava de fumar sem pressa. 

E caminhando de uma viela à outra, atravessando uma rua e cruzando a próxima, deram por si rodando círculos que os levaram a um lugar tão conhecido. A uma rua de distância, a antiga estação de trem erguia-se na esquina. Apesar de ter sido ocupada por um bar com música alta e luzes bruxuleantes, ainda continha o mesmo charme de antes. E o mesmo apelo aos dois. Portanto, sem que ninguém precisasse sugerir, estavam andando em direção aos trilhos uma outra vez. 

De pé, sobre a plataforma, Juno o olhou por cima do ombro. O sol batendo contra seu rosto, transformou-a em uma pintura feita de sombras e contrastes. Era como estar preso em um rolo de filme antigo, que continuava a rodar infinitamente dentro de sua mente. O sol que brilhava nos trilhos escondidos também se derramava sobre o corpo dela, que parecia beber da luz e reluzir diante de seus olhos. Por um instante, Nirav não soube dizer se estava apenas projetando uma memória há muito perdida ou se estava de fato vivendo o presente. 

— Falando de lembranças... — Juno murmurou, como se pudesse ler os seus pensamentos. — Esse lugar me traz tantas lembranças. 

Ele se sentou sobre o chão empoeirado, após descartar o cigarro. Seus olhos ofuscados pelo brilho opaco dos trilhos teimava em fugir em  direção  a ela, porém, a luz que irradiava de Juno conseguia ser consideravelmente mais perigosa a ele. E ele bem sabia, só não conseguia evitar. 

— Ah, me lembra tantos erros... — retrucou em tom provocativo, contemplando a verdade do passado aplicando-se a realidade. 

— Hm, admita... — cruzando as pernas por baixo do traseiro, ela se sentou ao seu lado e cutucou-o com o cotovelo. — Eu fui o seu melhor erro. 

— Vou te dar o benefício da dúvida. 

Juno deu o ar da graça com seu riso exagerado. Embora não retribuísse o riso, seus olhos seguiam-na sem piscar, presos no magnetismo de sua presença tão influenciada pelo passado. Ela continuava a mesma garota dos seus sonhos. E quando a olhava, trazia à tona tudo aquilo que tentava evitar e falhava. Tudo aquilo que deveria afastá-la dele, era o que a trazia para ele. 

— Sabe de uma coisa? Eu não queria ir ao luau. — confessou para ela, simplesmente. — Estava terminando as coisas da faculdade, cheio de preocupações e responsabilidades, não podia me dar ao luxo de bagunçar tudo. Quando me perguntaram pela primeira vez, eu disse não. Então, as meninas insistiram, disse que precisavam me apresentar a você e, bem, elas não paravam de falar de você. Não digo que cedi por pressão, acho que eu só fiquei curioso demais. 

— Acho que podemos culpar elas pelos eventos que ocorreram a partir disso. — sugeriu, fazendo-o rir, tocando seu braço. Ela se aproximou um pouco mais. — Valeu a pena, pelo menos? 

Fitando os olhos dela, encontrou lá o bendito brilho. 

— Você me perguntou a mesma coisa naquela noite. 

Juno desviou o olhar, engolindo a seco. 

— Eu também não iria ao luau. — contou, voltando o olhar para o horizonte. — Eu queria ir, ao contrário de você. O problema era que Nicholas não gostava quando eu saía sozinha. Tive de ligar para ele e tentar convencer de que ia me comportar. — ele reparou no sorriso zombeteiro que pousava nos lábios dela. — Acho que acabei sendo um pouco desobediente. 

— Você só dançou comigo, nada mais. 

— Na verdade, eu menti para ele no fim da noite. — ela deu um riso nasal, encolhendo os ombros. — Disse que tinha ido embora cedo, estava cansada e apaguei. Por isso, não tinha visto as mensagens. 

— Então, estava ignorando as mensagens dele? — Nirav a fitou, surpreso e admirado. — Só para dançar comigo a noite toda? 

Com uma risada, ela concordou, deitando o corpo para cima do seu. Sem resistir, ele a segurou com ternura, sem conter o riso bobo que estampava seu rosto. 

— Imagine quanta coisa não teria sido diferente se pudéssemos alterar um mero detalhe, uma mínima decisão. — Juno refletiu, ajeitando a postura ao se afastar dele. — Talvez nunca iríamos nos conhecer. Ou nos reencontrar. 

— É por isso que eu faria tudo igual. — disse, recebendo o olhar indignado dela. — Quase tudo. — ela sorriu, concordando. 

— E pensar que se eu não tivesse ido a uma entrevista de emprego com um sutiã adesivo num dia quente demais, talvez nunca teria te reencontrado mesmo. 

Com a testa franzida, ele coçou a barba sem entender. 

— Como é? 

— São uns sutiãs sem alça, eles colam nos peitos. — ela demonstrou, encenando com as mãos e apertando os próprios seios. Quando ele começou a rir, ela abanou as mãos com vergonha. 

— Acho que sei qual é. Alice tem um. 

— Então, pergunte a ela como é depois, não são nada confiáveis! — a indignação em sua voz o divertiu. — Quando você está suando, ele começa a descolar e se você não for esperto, ele cai! — explicou gesticulando com exagero. — Eu fui a uma entrevista de emprego usando um desses, porque qualquer outro ficava marcando na roupa. Só que estava muito quente e eu estava suando muito, inclusive de nervosismo. No meio da entrevista, eu senti algo escorrendo pela minha barriga. Não tive nem tempo de reagir. Quando vi, o sutiã saltou para fora da blusa e espatifou no chão, como todo mundo olhando! 

Nirav gargalhou, apoiando a testa contra o braço dela, que também se divertia. Sempre que tentava imaginar a cena, mais risadas irrompiam de sua boca. 

— Provavelmente, fui dispensada por atentado ao pudor. — com vergonha, escondeu o rosto avermelhado entre as mãos, ainda rindo. Precisou respirar fundo para recuperar o fôlego, passando os dedos nos olhos. — Mas se não fosse por esse maldito sutiã, eu não teria encontrado a vaga de estágio aqui e, talvez, nunca teria voltado. 

— Você não sabe. — ele retrucou depois de controlar o riso. — Acho que era só questão de tempo até voltar. De uma forma ou outra, você teria voltado. 

— O que é isso? — ela grunhiu, fitando-o com descrença. — Por acaso acredita em destino? 

— Por que outra razão estaríamos aqui agora? — perguntou debilmente, apontando para o lugar onde estavam. 

Juno sorriu, tombando para cima dele uma outra vez. Quando os risos cessaram, uma gostosa sensação de cansaço os fez respirar profundamente, preferindo um breve momento de silêncio. 

Ela manteve a cabeça encostada em seu ombro por um tempo, observando o sol se despedindo. Ele ignorava o sol, só tinha olhos para ela, admirando as mechas de cabelos que despencavam por sua testa até suas bochechas avermelhadas. 

— Se pudesse voltar no tempo, na noite do luau, sabendo de tudo o que iria acontecer, teria recusado a ir? — indagou, erguendo a cabeça do corpo dele para olhá-lo nos olhos. 

— Não, sabe que não. — respondeu de imediato. — Gostaria de voltar no tempo para te levar a minha formatura. 

— Oh, sério? — ela se derreteu. 

— Não se anime. — alertou, desdenhando com a mão direita. — Minha formatura foi uma merda. Eu queria convidar você, mas não deu certo porque, bem, nada deu certo. Tudo aquilo aconteceu. Então, basicamente, passei a noite bêbado e triste em um canto, vendo todo mundo se divertir. 

Juno abriu um sorriso gentil. 

— Teria sido diferente se eu tivesse ido. Teríamos dançado a noite toda, até nossos pés ficarem destruídos. Quando estivesse amanhecendo, iríamos tomar café em alguma dessas padarias por aí. E todo mundo iria olhar para a gente e se perguntar o motivo de roupas tão chiques às seis da manhã! — brincou, divertindo-se com a própria ideia. — Oh, eu sempre sonhei com isso. 

— Parece perfeito. 

— Desculpe ter arruinado sua formatura. — lamentou, comprimindo os lábios. — Se te conforta, a minha sequer existiu. 

— Sério? O que houve? 

— Minha mãe tinha acabado de dar entrada no hospital. Fiquei com ela a noite toda. — contou com certo tom afetado, apesar do sorriso que se alargava no rosto. — Estava toda maquiada, com um penteado chique e um vestido lindo e caro. E claro, um maldito sutiã adesivo! 

Nirav não controlou as risadas, empurrando-a de brincadeira com a mão. Ela o segurou, puxando-o até quase cair no chão. Vendo-o se desequilibrar, ela gargalhou, batendo a palma da mão na própria coxa. 

— Eu estou feliz que tenha voltado. — Nirav disse, admirando os risos soltos dela. — Ou eu teria que ir atrás de você. 

— É como dizem. — deu de ombros. — O destino é você quem faz. 

— Quem diz isso? 

— Eu estou dizendo! 

— Ah, então se você falou, está falado! — debochou, recebendo um tapa de brincadeira. 

As risadas foram engolidas, de repente, pelo toque do celular. Nirav até insinuou levar a mão ao bolso, porém, percebeu se tratar do de Juno, que pediu licença e atendeu com pressa. 

Ele piscou seguidas vezes, observando-a responder a chamada ao seu lado, como fizera uma vez antes. Engoliu a seco, recordando-se da noite em que se conheceram quando Nicholas havia ligado, e precisou se convencer de que não havia motivo para se preocupar. Ainda assim, o gosto amargo da memória apertou em sua garganta, fazendo-o se levantar impaciente e andar de um lado para o outro na plataforma. 

Quando Juno guardou o celular, o ocaso começava a cair, transformando o céu em um tom de púrpura. Ela se levantou e veio em sua direção, de forma que ele já sabia o que queria dizer. Ele suspirou, desejando que não fosse tarde demais, que pudessem ficar juntos um pouco mais. Só um pouco mais. 

Não queria se despedir, não ainda. Parecia tão cedo, como se o tempo não passasse quando estavam juntos. E sem ela, Nirav não sabia o que faria quando estivesse sozinho com a sua própria existência. 

— Sua tia preocupada se te raptei? — disfarçou a ansiedade ao provocá-la. 

— Ah, você me devolveria em menos de uma semana. — ela fez uma careta divertida. — Era só Elio, na verdade. 

Seu coração se descompassou diante do nome. 

— Ah, o... o rapaz ruivo? — gaguejou. 

— Sim, ele mesmo! Eu adoraria apresentar vocês dois, mas eu preciso ir agora. — ela suspirou, fazendo um bico insatisfeito. — Disse que precisa falar comigo, algo do trabalho, é urgente, me parece. Não entendi direito, ele estava todo atrapalhado. 

Nirav arqueou as sobrancelhas, já imaginando o que ele iria querer falar. Não podia culpá-lo por estar todo atrapalhado. Também se sentia assim quando o assunto era Juno. 

— Não acha que é exploração trabalhar no feriado? 

— Não quando você é estagiário. — ela deu de ombros, batendo as mãos no traseiro para limpar a poeira. — E precisa desesperadamente da vaga. 

— Bem, eu te desejo sorte então. 

— Obrigada pelo dia de hoje. — ela sorriu, se aproximando. — Nem vi o tempo passar. 

Mas está tão apressada para ir embora, pensou. E se sentiu um idiota por pensar assim. 

— Eu que deveria agradecer. Foi bom ver você. 

Talvez pela pressa dela ou pelo seu nervosismo, o abraço não deu certo. Logo quando os braços se abriram, ao se envolverem, os rostos colidiram quase em um beijo desajeitado e desproposital. Sua testa bateu contra a dela, que soltou uma exclamação dolorosa. 

— Oh, nossa, desculpa! — pediu, tocando-a na testa com delicadeza. — Está tudo bem? 

— Sim, sim, está tudo certo. Não se preocupe, minha testa é que é grande demais. — ela afastou sua mão, dando risada. — Eu preciso ir, me desculpa. Até a próxima. 

Sequer deu-lhe tempo de se despedir outra vez e já estava adiantando os passos para longe, quase como se estivesse fugindo. 

— Até. — Nirav respondeu, mas ela já estava longe demais para ouvir. 

Paralisado, ele permaneceu de pé, no mesmo lugar, sem se mexer, apenas observando-a se afastar a cada passo. E a cada passo que ela dava, algo se remexia dentro de seu estômago. Um enjoo, uma ânsia, um medo imaturo. Um sentimento tão infantil quanto imortal. O ciúme bobo que se disfarçava de uma inveja descabida pelo homem que sequer conhecia. No fundo, não importava, ciúmes ou inveja, era errado. Não deveria se permitir sentir algo tão primitivo. Ela não merecia. Depois de tanto tempo presa a um sujeito que só a destruiu, tudo o que restava esperar era que Elio fosse bom para ela. E estaria feliz por ela, porque era isso o que importava. E, no entanto... No entanto... 

A verdade o atingiu como um soco no estômago, que quase o fez vomitar o maldito suco. Com os lábios trêmulos, os olhos ardidos e marejados, o coração aos saltos, Nirav contemplou a verdade nua e crua que tanto tentou esconder de si mesmo. Ali, parado, observando o fantasma de uma silhueta já longe demais, ele provou do gosto azedo de sua bílis. A ideia de não ser a pessoa certa para Juno o desesperou. 

Sua mão atrapalhada alcançou o celular, desbloqueando a tela com dificuldade. Sabia o que precisava fazer, para quem precisava ligar, mas enquanto discava o número errado, seus dedos pareciam feitos de tocos de madeira desajeitados. Ao pousar o aparelho contra a orelha, só torceu para conseguir pronunciar uma palavra que fosse, pois a verdade sufocava sua garganta como uma mão que o asfixiava. 

— Nirav?! — apenas quando escutou a voz dela do outro lado, ele conseguiu respirar novamente. A voz de sua mãe. — Nirav, meu filho! Que surpresa boa! Como você está? 

Deveria ter ligado para Alice. Como o covarde que era, ligou para Adhira por não saber mais o que fazer. 

— Eu... eu estava errado, mãe. — ele continuava encarando o espaço vazio onde Juno desapareceu na curva. 

— Está tudo bem, meu filho? — ela pareceu se preocupar com o seu tom. — O que está havendo? 

— Eu estava me enganando esse tempo todo.  

— Do que está falando, Nirav? Está me deixando preocupada! 

Nirav fechou os olhos e só conseguiu ver o rosto de Juno. 

— Eu ainda sou apaixonado pela Juno. — o desabafo rasgando sua garganta afora, com o peso de uma tonelada que esmagava seu peito. — Nunca deixei de ser. 

Então, o silêncio. Um silêncio que pareceu durar uma eternidade. Adhira suspirou. 

— Sabe o que precisa fazer agora. 

— Não, eu não... eu não sei, eu não sei. — agora, soava como uma criança desesperada e teimosa. 

— Precisa falar a verdade. Tem que ser sincero e admitir a verdade. 

— Eu não sei se eu consigo. — ele abriu os olhos, sentindo as lágrimas arderem ao escorrer por suas bochechas. 

— Por que não? É o certo a se fazer. 

— Porque a verdade vai destruir tudo. 


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Notas finais do capítulo

E lá vamos nós de novo. Mais conhecido também como: Ah shit, here we go again.

Agora, o bicho vai pegar. Vai estourar a boca do balão. A cobra vai fumar. Vem aí!



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