O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 34
PRIMAVERA: O ato de renascer


Notas iniciais do capítulo

Um cumprimento demasiado tarde, eu sei, me perdoem.

Eu tive uma sucessão de problemas nessas duas semanas, que acabaram me atrapalhando. Porém, como eu sempre digo: eu tardo, mas não falho. Então, aqui está o nosso arco final. A primavera.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/793402/chapter/34

A chuva daquela manhã em nada se parecia com a tempestade da madrugada anterior.  

Assim como a insônia, a tempestade foi a sua principal companhia durante as horas mais escuras. Perdeu uma noite de sono observando a torrente constante, escutando os estrondos dos trovões após os clarões de relâmpagos. Quando finalmente conseguiu dormir, já não sabia mais dizer do que se sucedeu a tempestade.  

Quando acordou, sua suavidade era um acalento e o som que produzia era um afago aos ouvidos. Enquanto banhava a cidade, lavando suas ruas, também trazia consigo uma nova fase. Uma nova estação. A primavera cumprimentava através dos incessantes pingos gelados, com um sol tímido recuperando a força em seu brilho.  

Enquanto observava a primeira manhã de primavera, um bocejo escapuliu de seus lábios, ocultos atrás da barba aparada. Parado em plena rodoviária, o corpo reclamava da noite mal dormida, arrancando bocejos e causando olhos doloridos.  

Ainda era cedo. Na verdade, mais cedo que o combinado. Poderia ter dormido um pouco mais e se amaldiçoava por não tê-lo feito. Apesar de dormir pouco, o nervosismo o tirou cedo da cama. E, ali estava Nirav, com o coração acelerado, os dedos inquietos e a ansiedade a abafar o cansaço do corpo. O nervosismo do encontro que demorou quinze anos para acontecer.  

Quando a hora chegou, sentiu-se decepcionado. A visão que tinha do homem que descia do ônibus já não era mais a mesma que tinha das lembranças de seu pai.  

Do monstro que residia em suas memórias, já não restava quase nenhum resquício. Aquele homem imponente, tão grande com seus braços longos e mãos gigantes, agora, não era nada disso. Era uma visão lamentável.  

Era só um velho. Tão alto quanto magro, sua postura afetada pela idade, tornando-o encurvado e até encolhido. A pele pálida era cadavérica e enrugada. Nem os cabelos estavam tão escuros e espessos quanto antes, apenas o grosso bigode permanecia igual. E o semblante era do cansaço de uma vida miserável e rude.  

A roupa era apenas um trapo envelhecido, surrado e desbotado. O paletó não combinava com a calça social, tinha o tom esverdeado enquanto a outra peça era acinzentada. A blusa, por baixo, não passava de um suéter velho. Os sapatos pareciam não caber em seus pés. Nas mãos, trazia uma única bagagem, pequena e fina, tão velha quanto o próprio.  

Quase foi capaz de sentir pena ao ver as rugas em seu rosto triste, suas mãos ossudas e trêmulas, as pernas finas e instáveis, a magreza inconfortável. Apesar do baque de vê-lo tão arruinado, tão diferente do homem que costumava ser, ainda era o seu pai, o mesmo de antes. E, embora não se parecesse em nada com as suas lembranças, não deixava de ser o monstro que atormentava seu passado. Olhar para August era reviver seus piores momentos.  

Seus gritos rudes sem propósito além de agredir. Suas atitudes grosseiras resultantes de bebedeiras sem fim. Suas humilhações desconcertantes para reclamar o controle. Suas brigas irritantes que desmembrava uma raiva que consumia. E foi dentro dessa raiva que Nirav teve de aprender a lidar com o pai.  

Todas as vezes que ergueu as mãos pesadas para sua mãe, exigindo que tomasse a frente numa vã tentativa de protegê-la. A cada necessidade de gritar duas vezes mais alto para se fazer ouvido, mesmo que isso sangrasse sua garganta. Sempre que precisou engolir o choro e deixar ser consumido pela raiva que tanto odiava. Todos esses momentos estavam ali, agora, diante de seus olhos, caminhando em sua direção, distorcidas e desconfiguradas em uma imagem lamentável de um velho que, a qualquer estranho, era inofensivo.  

Por isso, quando ele ergueu os braços em sua direção, buscando o abraço de um filho, tudo o que encontrou foi apenas um aperto de mão, trêmulo e hesitante. Não havia calor no toque de Nirav para com August. Como haveria de ter, se todo toque entre ambos resultava somente em dor?  

Não pode deixar de notar o baque dele. Percebeu-se inconformado ao acreditar que ele esperasse mais do que isso quando merecia até menos.  

— Minha nossa, olha só para você... — desconversou, seu semblante desconcertado combinava com a voz incerta. — Está um homem feito! — riu, admirado, batendo a mão em suas costas como uma congratulação. — Meu filho é um homem feito!  

Nirav não conseguiu sorrir, sequer responder. Há quanto tempo não o ouvia chamar-lhe de filho.  

— E pensar que um dia você coube na palma da minha mão. — a emoção tomou conta, August estava realmente feliz em revê-lo. — Quanto tempo faz?  

— Quinze anos. — pela primeira vez, sua voz se fez ouvida. — Se não contar as poucas vezes que falou comigo depois de ir embora.  

Outra vez, o baque no olhar, no soluço engolido a seco e na respiração pesada. Ele sabia quanto tempo havia se passado, não adiantava fingir. A frieza de Nirav ao recebê-lo acabou por desarmá-lo. Então, a mão em seu ombro, aos poucos, se afastou.  

— Eu sinto muito. — murmurou antes de soltar o filho. — Espero ser capaz de consertar as coisas entre nós.  

O silêncio permaneceu a maior resposta de Nirav, que apenas o analisava com o olhar. Não tinha nada a dizer a ele, não ainda. Primeiro, queria descobrir até onde August chegaria com o discurso de arrependimento.  

Quando o silêncio entre eles se tornou insuportável, August deu o primeiro passo para se afastar. Houve uma pontada de culpa para que, só então, Nirav chamasse sua atenção de volta:  

— Aonde está indo? — perguntou, observando o dorso grande, porém fino, do homem.  

Ele parou, trocando a bagagem de uma mão para a outra.  

— Procurar uma pousada, hotel, uma pensão qualquer. A cidade deve ter algo do tipo.  

— E tem, mas você vem comigo para casa. — anunciou, observando a surpresa estampar o semblante enrugado dele.  

No fundo, se fosse sincero, não era a sua maior vontade. Preferia não ter de lidar com seu pai a todo instante, depois de tanto tempo, como se nada tivesse acontecido. Era uma ideia que demoraria a se assentar em sua cabeça. Todavia, estava tomando tal decisão, principalmente, por sua mãe. E Adhira não aprovaria que deixasse seu pai desamparado.  

— Não, não quero incomodar você. Não precisa se preocupar...  

Assim, foi até ele, ignorando seu olhar incrédulo e pegou a bagagem de suas mãos. Estava tão leve que parecia vazia. Questionou-se quanto tempo ele pretendia ficar e, logo em seguida, decidiu que preferia não saber a resposta.  

— Não tem motivo para gastar dinheiro já que tem onde ficar. — pontuou, antes de acenar em direção ao carro. — Minha casa não é grande coisa, mas cabe nós dois.  

Mesmo quando já estava se encaminhando em direção ao próprio carro, seu pai permaneceu parado, apenas o seguindo com o olhar.  

— Eu pensei que não iria querer me ter por perto.  

Nirav suspirou, escolhendo não dizer a verdade.  

— Antes de tudo, você é meu pai, não é? — eles se olharam por um instante. — E, embora você sempre tenha dito o contrário, minha mãe me deu educação.  

Com o gosto amargo da vitória da discussão, ele insistiu em apontar o carro para August, que pareceu admirado com a ideia de o filho ter um carro próprio. Pela primeira vez, observou em seus olhos um brilho de orgulho. Não pode fingir não sentir o choque da expressão encantada dele. Nunca havia recebido um olhar parecido antes e, por muito tempo, era tudo o que queria. Porém, agora, já não parecia mais o suficiente.  

A rodoviária, logo, estava prestes a ser deixada para trás. Em um dia como aqueles, estava um tanto vazia. Apesar de o movimento dos ônibus ser constante como sempre, a densidade de pessoas que embarcavam e desembarcavam era consideravelmente pequena. Menos ainda eram as pessoas que esperavam pelas chegadas ou se preparavam para as despedidas.  

E, lado a lado, seguiram o caminho para casa. Pela primeira vez, depois de quinze anos, pai e filho estavam juntos, apesar dos pesares.  

A chuva permanecia constante. Leve, porém consistente. Os pingos finos pareciam agulhas geladas se estilhaçando contra a lataria do carro que cortava pelas ruas. Contudo, o tempo não estava ruim. O clima tornava-se abafado, permitindo as roupas mais leves e mangas mais curtas. Por trás da chuva, o sol brilhava mais forte, reacendendo a cidade. No fundo, um fino arco-íris se erguia no horizonte.  

Era como ver a cidade florescer. A vegetação que ainda resistia, pouco a pouco, tornava o meio urbano mais colorido, superando a seca hostil da estação anterior. E com isso, todo o resto parecia criar vida novamente. Apesar da chuva a banhar as calçadas, a cidade parecia mais animada, mais viva. O som das conversas e o vaivém das ruas invadia as janelas do carro, suprindo o silêncio que ocupava entre os dois corpos.  

Um silêncio pesado, mas que dizia muita coisa em sua quietude. Naquele silêncio havia uma vida inteira sendo dita. As dores, os prantos, os abandonos e os anos. Era necessário que existisse tal silêncio para que pudessem ponderar o peso do reencontro para que, só então, pudessem se falar com a verdade.  

— Sua mãe me contou que está namorando. — enfim, comentou com casualidade. — Disse que se chama Alice.  

Ainda o incomodava o fato de sua mãe continuar tendo uma relação com August. Entretanto, era uma decisão dela e apenas dela.  

— Sim, é verdade.  

— Isso é bom! — ele sorriu, empolgado, alisando o grosso bigode com a ponta dos dedos. — E como ela é?  

Trocando a marcha, Nirav ponderou por mais alguns instantes. Então, suspirou.  

— Como qualquer outra garota, mas é bela, gentil, serena. É uma boa pessoa.  

— Como a conheceu? — perguntou, curioso. Talvez só para render o assunto e Nirav parecia não se importar em responder.  

— No trabalho. Era a nova contratada, acabamos nos aproximando, viramos amigos e... já pode imaginar o resto.  

Seu pai pareceu satisfeito, acenando com a cabeça.  

— É com ela que pretende passar a vida inteira? — a pergunta foi uma surpresa. — Você a ama?  

Pelo retrovisor, Nirav olhou para o pai. Algo pareceu agarrar em sua garganta, preso. O peso das suas perguntas, por algum motivo, apertou seu pescoço, roubando o seu fôlego. E quando seus pensamentos fugiram de seu controle, ele pigarreou.  

— É alguém que eu gosto de gostar.  

— E quando vou conhecê-la?  

Então, não deu mais nenhuma resposta. E, apesar de sua reticência conturbada, de quando em quando seu pai insistia em perguntas cordiais, as quais Nirav se via obrigado a responder, ainda que por educação, mesmo monossílabo. Logo, a empolgação de seu pai também não durou por muito tempo. Suas perguntas tornaram-se rarefeitas e seus comentários inexistentes. Por fim, tudo o que restou entre eles foi, mais uma vez, o silêncio contemplativo. Talvez um prelúdio do que seria aquele encontro, pois não adiantava unir aquilo que não se compreendia junto. Não importava, talvez, o quanto tentassem, porque tudo o que restaria era o que um dia restou antes. Silêncio e vazio.  

 Apenas o ruído do rádio preenchia o vazio entre eles, comentando sobre as ofertas dos mercados, os horários dos programas, as notícias do dia e a previsão do tempo. Nenhuma novidade no geral, somente o anseio pela nova estação.   

Quando olhava para o lado numa tentativa vã de espiar o que seu pai pensava, encontrava, para sua surpresa, um August admirando Florencia. Não sabia dizer o que estava pensando, só conseguia notar um rastro de atração em seu semblante. Nunca tinha gostado da cidade, Nirav bem se lembrava, entretanto, depois de todos esses anos a sua concepção parecia ter mudado. Teria precisado de tanto tempo assim para, enfim, entender?  

Era difícil não traçar o paralelo com perdão. Afinal, era do que se tratava. Para perdoar é necessário entender. Do que adiantava estar cheio de intenções, mas ser incapaz de empatizar com o lado oposto? E, embora não entendesse a razão pela qual seu pai, provavelmente, precisasse perdoar a cidade, conseguia reconhecer-se em seu olhar. Naquele olhar, também encontrava um outro alguém. Um outro perdão.  

Pensar em Juno ainda era um tormento. Embora soubesse o que precisava fazer, não conseguia tomar uma iniciativa, senão punir a si mesmo. E pensando nela, seu coração saltou dentro de seu peito, deixando-o tão inquieto quanto nas noites insones que passava encarando um teto ao tentar entender. E antes que seu pai notasse seu repentino agito, já estavam estacionando em frente à casa. Apesar do arquejo de entusiasmo do pai, Nirav permanecia escondido em uma concha, apertada com os mais diversos sentimentos, sufocando-o aos poucos.  

Enquanto seu pai se aproximava da porta, Nirav continuava dentro do carro. Era preciso certa coragem para enfrentar o que estava por vir. E já não havia mais volta. Com um suspiro trêmulo, depois de longos instantes, ele saiu. Bateu com força a porta, não só para chamar atenção do homem, como para fazer o barulho alto calar seus próprios pensamentos.  

— Eu preciso entender uma coisa. — disse, apoiado no carro, sem se importar com a garoa sobre seus ombros. — Por que voltou?  

Seu olhar comprimido mirou o pai sob a marquise da casa. Ele pareceu hesitar, com as mãos na cintura, cruzando os olhos pela rua, como alguém que vai atravessar e se detém no último segundo. Foi quando percebeu o quão velho estava e o quão cansado parecia. E era inevitável se perguntar estar no fim de sua vida miserável.  

— Eu voltei porque precisava ver o que eu perdi. Queria ver você. Na verdade, queria que fosse a última coisa que eu pudesse ver, assim como fui para você quando parti. — respondeu, cabisbaixo. — Minha vida está se esgotando, chegando ao fim pouco a pouco, sinto isso nos meus ossos. Queria ter um último momento para você. Meu filho.  

Nirav fungou o nariz, sentindo a coriza do pranto arder em seus olhos. Mesmo assim, não desviou o olhar.  

— Eu sou?  

— Você é meu filho. — August sorriu triste. — Meu único filho.  


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Assim como o outono trouxe Nicholas, a primavera traz August. O que será que vem desse reencontro? Depois de todos esses anos, Nirav é uma pessoa ressentida, não podemos julgá-lo por isso. Mesmo assim, tenho esperanças do que vem por aí!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Caminho das Estações" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.