O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 33
∾ Como dois estranhos sob as luzes vibrantes.


Notas iniciais do capítulo

Bem, essa semana foi um pouco diferente, não é? Não postei na quinta, mas na sexta.

Eu tive problemas com meus óculos. E escrever até é possível sem eles, mas corrigir se torna impossível... E, além de tudo, eu precisava caprichar pois tanta coisa aconteceu, afinal é o último capítulo de inverno!



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As luzes vibrantes dançavam por suas retinas, inebriando sua visão já turva. Espalhavam-se por todo seu rosto, derramando-se nas mais diversas combinações de cores. Azul, rosa, roxo e vermelho. Destacavam sua pele escura, trazendo um contraste tão único. Por onde olhava, as luzes estavam lá. Não ousava olhar demais, pois sentia ferir os olhos e atordoar seus sentidos, apesar de gostar da sensação estonteante que causavam em seu corpo. Quando piscavam, sentia estar em câmera lenta. Quando aceleravam, sentia estar flutuando.  

Junto com as luzes, combinava-se a música. Tão agitada quanto. O ritmo forte acelerava seu coração, quase o fazia sentir como se estivesse saltando de seu peito. E mesmo assim, continuava inerte ao som, sem se permitir aos movimentos. Apenas escutava o agudo estridente do teclado eletrônico, a batida grave no fundo e a letra estrangeira sem sentido. Não era bom ou ruim, apenas o suficiente para abafar o som de seus próprios pensamentos.  

Talvez a bebida já estivesse fazendo efeito. Não sabia quantos copos havia tomado. Na sua mão, ele continuava cheio, o líquido tremendo de acordo com a sonância. Por isso, tornou a levá-lo até a boca e beber, uma vez e mais uma. O gosto era amargo, como todo chopp. E não compensava o preço caro. Pelo menos, tonteava sua lucidez e o deixava absorto, apesar de temporariamente.  

Ao seu redor, o tumulto da casa noturna. E dentro de todas as dezenas de pessoas, das luzes coloridas e música agitada, Nirav também estava. Perdido, deslocado e esquecido, quando olhava em volta encontrava tantos inúmeros indivíduos percorrendo o salão. Seus amigos estavam em algum lugar próximo. Theo estava ao seu lado minutos atrás, agora, não fazia ideia de onde encontrá-lo. Dançavam, cantavam e bebiam enquanto ele permanecia lá, observando, parado e quieto.  

A vontade era, de alguma forma, encontrar conforto na bagunça de uma madrugada numa sexta-feira. A consolação de uma bebida, o tumulto do barulho exagerado, o conforto de uma diversão fútil para que, talvez assim, não se sentisse tão reprimido por seus próprios sentimentos.  

Quis se permitir, então. Deixou a bebida tomar a sua consciência, a luz cegar seus olhos e a melodia convidar seu corpo.  Apesar de não ser um homem extrovertido, quase não gostava de dançar e tumultos não eram um atrativo, dessa vez, era tudo o que seu ser parecia precisar. E, por isso, ele cedeu.  

Quando olhou para frente encontrou um par de olhos admirados. Olhos coloridos, pintados com maquiagem exótica, contornando-os até se tornarem afiados como uma faca. Olhos de mulher. Ela sorriu em sua direção, exibindo seus belos dentes e expressando seu verdadeiro interesse. Estava ali, entregue para ele, com um belo decote. E não era feia, não era mesmo. Era linda. Quando se tornou tão fácil para ele ter diante de si uma mulher tão bela?  

Ele não sorriu de volta, entretanto, quando abaixou o rosto, encontrou no dedo anelar a aliança. Tinha um brilho fraco, resistindo ao esquecimento, como um lembrete que, por mais velho que fosse, continuava servindo ao propósito de lembrar.  

De que adiantava, afinal? Depois de tudo, a aliança parecia apenas jazer em seu dedo, como o significado do que um dia já foi e agora não é mais. E não era assim com tudo na sua vida?  

Esquecendo o belo sorriso para trás, assim como o copo, ele se afastou do balcão do bar. Então, se afundou no mar de pessoas que o cercavam, como se o envolvessem ao recebê-lo. E pela primeira vez, encontrou conforto no excesso do calor humano.  

A iluminação psicodélica piscava roubando a lucidez de sua visão, o mundo pareceu um grande borrão colorido. Sem notar, era tomado pelos desconhecidos. A música envolvia os que o impulsionava em uma maré, balançando cada membro seu como onda. A melodia, então, derramou-se sobre ele, invadindo seus ouvidos e penetrando em seu interior. Aos poucos, tudo o que restava dentro de si era o colorido, o movimento e o som. Não havia mais nada.  

Era levado com a correnteza e não relutava. Aceitava ser tomado pelo mar de pessoas, empurrado de um lado para o outro, conduzindo por um ou por outro, esquecido pelo resto do mundo. Seu corpo parecia se mover sozinho, lutando contra os princípios que o impediam de fazê-lo normalmente. A necessidade de seu cerne em se rasgar, dilacerar, retorcer até se cansar.  

O suor começou a escorrer por seu rosto, descendo por seus cachos até a barba. Sua pele tornava-se quente, assando sob sua camiseta abotoada e a calça jeans. O ar começava a faltar em seus pulmões, sendo exigidos um preço alto pela repentina pressão do agito. Ainda assim, ele permanecia. Sentia mãos estranhas puxando, empurrando, tocando e apertando. Entregava-se, sem conhecer a quem pertenciam. Não ousava olhar em seus rostos por medo de reconhecê-los.  

De olhos fechados, era como ver o seu próprio interior. Enquanto era dilacerado em inúmeras direções opostas, seus sentidos pareciam bloqueados. O mundo parecia de ponta cabeça, revirado do avesso, o provável efeito do álcool. Então, sentiu-se tonto, prestes a cair. Apenas uma sensação enganosa, embora seu coração estivesse acelerado. Ele tornou a abrir os olhos para o mundo exterior.  

Os flashes das luzes eram como relâmpagos no canto de sua visão. O suor que escorria por sua testa invadiu suas pálpebras, ferindo suas retinas por um instante. Ele piscou, comprimindo os olhos com firmeza. Diante da visão turva, embebida com as cores vibrantes, encontrou o vislumbre de uma miragem.  

De repente, o mundo pareceu ficar devagar, correndo em um tempo alterado, quase paralisado. Ao seu redor, as pessoas pareciam desaparecer do campo de visão. Em sua frente, cada um saía de seu caminho. Aos poucos, o mundo pareceu se esvaziar diante de seus olhos. Tudo o que restou foi a música e a mulher que dançava.  

Juno.  

Logo quando havia desistido de procurá-la, ela reapareceu. Como uma entidade que surge assim como desaparece, sem deixar pistas ou aviso algum. Como uma miragem que aparece nos momentos mais sedentos e se dissipa na menor das intenções. Ou talvez a bebida já estaria corroendo seu cérebro para uma comparação como essa.  

E como um ser eminente, lá estava ela. Intocável, emanando o caos com o seu calor. Não podia tocá-la, mas podia senti-la. Sob o colorido da iluminação, sua pele irradiava uma cintilação que se reluzia por todo seu corpo ao acompanhar a melodia da música como se fizesse parte dela.  

Seus cabelos escorriam por seus ombros desnudos, marcando sua pele suada e rosada. Embebida na atmosfera inebriante, ela era toda graciosa. O corpo se mexia instintivamente, harmonizado com o ritmo dos instrumentos. Os olhos dele a acompanhavam com concentração, incapazes de desviar, temendo piscar e perder qualquer detalhe daquela mulher.  

Cada parte dela parecia um pecado diferente. O colo do peito revelando o decote ao balançar os ombros. Os lábios tingidos de vermelho-sangue, alargando o sorriso. A fenda da longa saia na coxa esquerda, revelando toda a extensão de sua perna enquanto rebolava os quadris. As mãos que traçavam o contorno de sua silhueta, desenhando seu corpo com as pontas dos dedos. E ele sentia se perder em cada um desses pecados.  

Não, não deveria ir até ela. Que se contentasse com o ato de admirar o seu calor sem ter de tocá-lo, pois era fraco demais para resistir ao caos que irradiava de sua natureza. Caso se entregasse, estaria perdido. Em sua mente, lutando com o som magnético da música estavam as palavras de Alice. A nua e crua verdade que já estava prestes a acreditar.   

Só então percebeu que, agora, Juno também o notava. E o destino mostrava se divertir com sua brincadeira de mau gosto. Continuava a jogá-los um de encontro ao outro, só para afastá-los em seguida. Sempre estavam perto demais e tão longe ao mesmo tempo.  

Através das luzes bruxuleantes, os olhares traçaram o caminho até o outro, encontrando-se com violência. Era inútil resistir, tentar repelir. Embora entre tantos corpos, diante de tantos obstáculos, não conseguiam desviar o trajeto e estavam prestes a se colidirem. Como imãs que se atraem, a presença de um puxava a do outro para o impacto inevitável.  

No minuto anterior, estavam tão distantes. Agora, de repente, estavam tão próximos. Tinha-a ao alcance de sua mão, sob a sua visão, diante de seu corpo. Estava tão perto que conseguia sentir seu cheiro. E não parecia o suficiente.  

Seu corpo parecia trair seus princípios. A mordida da insanidade marcava seu cerne todas as vezes que olhava para ela. Precisava se esforçar para se manter são, mas era tão incompetente. E a tinha tão perto que parecia errado não a tomar. Sua mente fraca cedia a fantasias febris, corroendo seu cérebro junto com a bebida.  

Como dois estranhos sob as luzes vibrantes, queria a segurar entre suas mãos. Sentir o calor da pele contra as suas palmas, descobrir as curvas de seu corpo, apertar a carne entre seus dedos. Deixar a fúria rasgá-lo em seu ser, dilacerar-se em cada curva sua, destruir a si mesmo só por ela.  

— Há tantas coisas que eu queria...  

A voz entorpecida pairou entre eles, como a única fonte de som do mundo inteiro. Já não havia mais o tumulto, a música eletrônica. Apenas os dois, um contra o outro.  

Quando tomou o rosto dela em suas mãos, sentiu o estrago espreitar no horizonte. O caos iminente veio ao seu encontro como um baque. E logo em seguida, veio a ruína.  

Enquanto olhava para Juno, no profundo de seus olhos, sentia a contradição que era. Ela oscilava entre os próprios sentimentos. Sua postura se alterava de súbito. Em um segundo, ela estava ali com ele. No outro, queria fugir dele. Ao mesmo tempo que resistia, também queria ceder.  

O colapso de seus sentimentos trazia ao seu rosto a inquietação. A ansiedade a tomava. Então, outra vez, ela quis fugir. E ele não entendia. O que de tão grave poderia proibi-los de um jeito tão violento?  

— Você não devia estar aqui. Não comigo.  

— Por que está me evitando? — sua voz parecia um fino suspiro ao competir com a música.  

— Eu não estou evitando você. Eu estou evitando insistir nisso. — um sorriso triste em seu rosto apontou, de novo, a sua contradição.  

Notou-se sendo tomado pela fúria. A necessidade de se destruir agora era potencializada pela bebida. Pretendia o confronto, estava decidido. Que ela o odiasse por isso, mas ele insistiria na briga. Queria escutar seus gritos, seus xingamentos, sua raiva. Porque, afinal, talvez fosse tudo o que restasse.  

— Isso o que? Porque eu não sei o que isso é! — rugiu com os lábios trêmulos, percebendo junto com seus conflitos o pranto engasgado. — Você fica indo e vindo de encontro a mim, só para fugir depois. Continua agindo como se isso fosse uma brincadeira!  

— Eu sinto muito, você não entende... — ela retrucou com intensidade, apesar de tentar se desviar.  

— Eu não entendo? Eu? Sabe quanto tempo fiquei esperando por você? Sabe o quanto eu quis reencontrar você? Tem alguma noção do que eu senti esperando você por todos esses anos?  

Encurvado em sua direção, conseguia ver no fundo dos seus olhos. Havia ali uma chama acesa. O resquício do brilho de seus olhos que, aos poucos, tornavam-se somente a umidade de um pranto contido.  

— É quase como se eu estivesse parado no tempo, esperando por você. — ele continuou com a voz mole, sem saber se estava só bêbado ou prestes a chorar. — Eu não consegui esquecer você por um maldito dia...  

— E você não foi o único! — contestou com firmeza, aumentando o tom para interrompê-lo. — Acha que eu não queria ter voltado? Eu também não esqueci você, eu também senti sua falta!  

— Então não estaria brincando com meus sentimentos assim!  

O silêncio arrematava a culpa de Juno, que revirou os olhos para impedir o choro. Se quisesse chorar, que chorasse, ninguém parecia se importar com os dois no meio da pista. Nem mesmo suas vozes esganiçadas, as feições desesperadas, as palavras equivocadas. Era como se estivessem gritando em um quarto vazio, um contra o outro.  

— Vá em frente e me odeie. — ela murmurou, mais para si do que para ele, então tornou a aumentar a voz em sua direção. — Despreze-me! Eu mereço isso, afinal de contas! Sinta-se à vontade, me mande sumir!  

Não sabia dizer se era a embriaguez em seu sangue ou seus sentimentos controversos ao vociferar aquelas palavras. No entanto, quando contemplava sua raiva, encontrava o total oposto. Juno implorava para odiá-la, suplicando o contrário, na verdade.  

— Olhe para mim! — ele repreendeu, segurando seu rosto para interromper sua reação.  

Mais uma vez, os olhares se sustentaram. Juno piscava devagar, deixando o pranto manchar a sua maquiagem. Nirav observava, contemplando seu rosto enquanto sentia o seu próprio lhe trair. A vontade de chorar tornava-se insuportável.  

Ele tocou suas bochechas, sentindo a textura de sua pele depois de tanto tempo. Por um instante, deixou seu corpo ceder. Encostou sua testa sobre a dela, mantendo os rostos em contato. Conseguia sentir o lamento dela molhando sua face.  

— Eu gostaria de ter esquecido você. Eu queria ter superado você, mas eu não consegui. — murmurou com dor, ainda escorando o rosto dela no seu. — Todos esses anos, eu continuei tentando entender porque você se foi. E agora que você está aqui... Tudo isso parece tão errado.  

Houve um breve instante de silêncio, até que ela pigarreou, engolindo a seco os próprios soluços.  

— Então por que está aqui?  

Uma pergunta foi o estopim. Enfim, ele a soltou. Sentiu-se irritado por ser tolo.   

Um sorriso de escárnio manchou seu rosto. E ele decidiu que estava cansado. Cansado de insistir em tentar entender alguém que só estava brincando, se divertindo com a sua ruína.  

No fim, Alice estava certa.  

— Porque há uma parte em mim que continua indo de encontro a você e eu não consigo resistir. É ridículo! — respondeu com uma risada, embora o pranto se derramasse por seu rosto. — Eu só fui tolo de achar que pudesse significar alguma coisa para você.  

 O sorriso controverso contrastava com a lástima, construindo um semblante difícil de ser encarado. Ele, então, deu de ombros e desistiu. Por fim, deu as costas para Juno.  

Só precisava de um motivo, uma mínima razão que fosse. Qualquer resquício de esperança para, talvez, encontrar a mesma mulher de antes. A mulher que, infelizmente, ainda amava. E, como devia desconfiar, era óbvio que estava errado. Quão tolo era...  

Com lágrimas a queimarem seu rosto e a revolta corroer seu peito, Nirav atravessou o salão, trombando em quem estivesse no caminho sem se desculpar. Só queria ir embora, fugir daquela realidade tão cruel e encarar seu próprio vazio.  

No entanto, não podia dizer esperar uma mão agarrando a sua camisa em uma última súplica. As unhas curtas e os dedos trêmulos enfiaram-se no tecido de sua blusa com força. Juno, uma última vez, tentava trazê-lo de volta. Ele só não foi capaz de ficar.  

Era tarde demais. Sequer se prestou a se desviar, o que soltou a mão dela foi mero atrito com os obstáculos entre eles.  

Percebeu não estar tão bêbado quanto gostaria. Talvez devesse ficar mais. Beber o suficiente até se entregar a um sono pesado e acordar no dia seguinte com uma dor de cabeça tão terrível a ponto de esmagar seus próprios pensamentos.  

A noite o recebeu com um vento agressivo, que bagunçou seus cabelos e esparramou suas roupas. Ao longe, foi capaz de escutar um trovão. Quando olhou para cima, reparou em relâmpagos que cortavam o céu. Não tardou para sentir alguns pingos isolados de uma chuva iminente.  

As ruas estavam movimentadas, dignas de uma sexta-feira à noite. Mais carros estacionaram próximos a casa noturna enquanto outros imobilizaram o trânsito, seguindo por diversos caminhos. E foi entre o tráfego pesado que passou, transitando entre os carros, sem se importar com o perigo que o espreitava. Sem sequer olhar para os lados, muito menos para trás.  

— Nirav, me perdoe! — gritou a voz metros atrás de si, para sua surpresa.  

Foi quando uma buzina alta e estridente ressoou, arrancando de volta para a realidade. Com o susto, foi obrigado a olhar para trás e encontrar Juno ainda lá, escapando por muito pouco de ser atingida por um carro. E somente essa adrenalina o fez parar.  

— Eu sinto muito! — ela gritou em sua direção, desesperada. Sua respiração estava ofegante, seus olhos arregalados e seu corpo agitado. Ele não sabia dizer se era por sua culpa ou pelo susto com o carro.  

Aos poucos, ela tornou a se aproximar. Tentava controlar a própria respiração, assim como as lágrimas.  

— Por favor, me perdoe.  

— Perdoar você por quê? — indagou, estendeu os braços em sinal de confusão. — Por continuar a me fazer de otário mesmo depois de todos esses anos?  

Juno abaixou a cabeça, investindo no silêncio. Sem acreditar, ele riu de novo. Como ela poderia pedir por perdão se era incapaz de se confessar.  

— Por que não me responde? — exigiu com seriedade. — Vamos, diga! Por ter me usado, então me tratado como se eu não significasse nada? Por ter fugido com o babaca do seu namorado, como uma covarde? Você foi incapaz de dizer adeus...  

Mais silêncio. Pareceu durar uma eternidade.   

— Sete anos, Juno! Você some por sete anos e acha que tem o direito de voltar e bagunçar tudo de novo?  

— Eu não tive escolha. — a voz era um sopro quase inaudível.  

Nirav, então, se aproximou. Para sua surpresa, seu coração começava a descompassar, acelerando sem parar.  

— Como é?  

— Eu não tive escolha! — praticamente gritou, erguendo o rosto em sua direção. Agora, as marcas de seu pranto pareciam marcas de uma agressão. — Eu nunca quis ir embora e deixar você. Eu nunca quis!  

— Então por que foi?  

Um arquejo ressoou em sua direção. Observando-a em sua frente, notou estar em um ponto sem volta. Ela não iria fugir, parecia já não ter mais forças para tentar.  

Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, sentiu o ar faltar em seus pulmões. Algo parecia esmagar seu peito, pouco a pouco. Uma pressão quase dolorida e uma péssima sensação. Quando olhava para ela, sentia-se zonzo como se estivesse preso em uma premonição. E, de alguma forma, já sabia o que ela estava prestes a dizer.  

— Eu não podia dizer não. Não para o Nicholas, não daquela forma. — o tom dela estava alto, desesperado e aflito. — Eu nunca quis partir, mas se eu ficasse...  

A verdade começava a desabrochar diante de seus olhos. Uma verdade que tinha um gosto amargo e familiar. Era difícil de engolir, portanto, precisou indagar:  

— O que quer dizer? O que...  

— Ele não me deu escolha! — deu a resposta antes da pergunta, como se estivesse no automático. — Eu sei que isso soa conveniente como uma desculpa esfarrapada, mas é a verdade! Eu deixei ele me controlar, me chantagear, até não ter mais controle nenhum sobre nada.  

Nirav respirou fundo, ainda sentindo a pressão em seu peito. As palavras dela pareciam gravadas em sua mente, mesmo que nunca as tivesse dito antes. Ele sabia, de alguma forma, ele sabia. Então, por que continuou procurando a suposta verdade?  

— Ele sabia o que precisava fazer para me manter sob o domínio dele. — ela prosseguiu e cada palavra parecia uma sentença. — Não só ameaçou a mim, também ameaçou a você. Sabia que se mirasse em você, conseguiria me atingir.  

— Eu não tinha medo dele, Juno, eu não...  

— Você não o conhece, não como eu conheço! — a voz embargada começava a falhar, engasgada com o pranto. — Ele conseguiu colocar em risco tudo o que me cercava, todos quem eu amava. E como eu poderia reagir com tudo o que eu mais prezava em risco? Desculpe, eu não sou tão forte assim, eu pensei que era, mas eu não sou!  

Juno pareceu quebrar, desmontar como se não tivesse mais forças. Ao vê-la ceder, seu primeiro impulso foi ir até ela. Percebeu que estava tremendo, quase chacoalhando entre suas mãos firmes. Quando olhou para seu rosto, sentiu seu coração quebrar. Cada parte dele estava em suas mãos, tremendo junto com ela.  

— Eu entreguei tudo o que tinha a ele, sem perceber. — revelou com rouquidão, fungando o nariz. — Aos poucos, se impregnou em toda a minha vida até me deixar sem nada, exceto ele próprio. Fez de tudo para que eu dependesse dele para que, assim, eu não pudesse deixá-lo. Dependência era tudo o que ele entendia como amor. E quando deixei de depender dele... Ele tomou tudo de mim. Era como se eu não existisse mais.  

Nesse ponto, já não havia mais palavras em sua boca, só conseguia ouvi-la dizer o que já sabia. E só havia raiva. Uma raiva tão profunda, tão agressiva, que nunca pensou sentir outra vez. A raiva que dilacerava seu cerne quando precisava defender a sua mãe de seu pai.  

Além de tudo, raiva de si mesmo. Por, de alguma forma, sempre saber da verdade. Se dissesse que não sabia, pelo menos, desconfiava. Era óbvio. Só precisava lembrar como os olhos dela brilhavam para si e se apagavam para Nicholas.  

Com a sua mãe, foi capaz de agir e ajudar. Com Juno, preferiu acreditar no seu próprio egoísmo pelo medo da rejeição. E agora, não se sentia tão diferente dos homens que conhecia.  

— Acho que, no fundo, eu sempre soube quem ele era, só estava carente demais para encarar a verdade. Ele me fez acreditar que o amor dele era uma necessidade, não algo natural ou espontâneo. Como se fosse algo que eu deveria construir para o meu próprio bem. Eu só não percebi que estava construindo algo que seria minha própria ruína.  

— Por isso nunca disse nada a ninguém?  

— Eu tive medo. Eu nunca pensei que o medo pudesse exercer um controle tão grande sobre mim! — ela tornava a chorar, soluçando e engasgando com as próprias palavras. — Era mais seguro manter a cabeça baixa. É covarde, fraco, eu sei! E é por isso que nunca contei a ninguém. Sei como soa conveniente, principalmente depois do que eu fiz. Como eu podia garantir que não estava mascarando um erro meu para sair como vítima? Afinal, eu o traí!  

Nirav meneou a cabeça, levando as mãos até seu rosto, outra vez. Agora, com cuidado, enxugava as lágrimas, apesar de manter as suas derramando-se sobre seu rosto.  

— Não, esse erro não foi só seu...  

— Sim, foi. Era uma tragédia anunciada. Eu criei todo esse caos. Se eu não tivesse sido covarde, nada disso teria acontecido. Eu poderia ter terminado, você me pediu isso. Eu fui tão covarde que não consegui...  

— Não precisava fazer isso sozinha. Poderia ter me contado, eu teria feito alguma coisa, qualquer coisa!  

— Eu sei que teria! — um breve sorriso iluminou seu rosto triste. — E eu já tinha te envolvido em uma bagunça que não era sua. Por minha culpa, ele te agrediu! Eu não podia deixar que corresse risco por minha causa!  

Nirav tentou insistir, retrucar sua culpa injusta, mas foi impedido.  

— Quando veio atrás de mim, eu deveria ter gritado. Deveria ter feito qualquer coisa, mas eu estava aterrorizada. — aos poucos, ela pareceu recuperar o fôlego. — Eu tive tanto medo do que ele seria capaz de fazer. Não por mim, por você. Era minha culpa você estar envolvido naquela bagunça. E se algo acontecesse com você, eu jamais seria capaz de me perdoar. Era melhor que você me odiasse, então. Por isso, fugi. Era um preço que estava disposta a pagar.  

Seus lábios tremeram e foi incapaz de controlar a urgência de chorar. Teve de soltá-la para suportar o peso de sua própria dor. Com as lágrimas rolando sobre suas bochechas, ele tentou esconder o rosto.  

— No instante em que parti, eu quis voltar, mas do que adiantaria? Eu só estaria fugindo se ficasse. Teria de abandonar minha própria mãe! E para que? Complicar a sua vida também? Eu não podia ficar, eu só podia ir embora com ele. Era tudo o que eu podia fazer. Eu não tive escolha. Então, me perdoe.  

— Juno...  

— Perdoe-me por toda a dor que causei a você. Perdoe-me por ser uma covarde e fugir. Perdoe-me por não ser quem você merecia. Perdoe-me por não fazer o certo por você. Perdoe-me por não escolher você. Eu estava assustada demais, mas isso não justifica, então eu gostaria que você soubesse...  

Seu coração estava acelerado como nunca antes. Sua visão estava turva, embargada com o sal das lágrimas. A respiração era incapaz de decidir entre falhar ou ofegar. Juno estava diante de seus olhos. E ela sorria, dessa vez, ela sorria.  

— Eu queria você também. Eu desejava você também. Eu estava apaixonada por você.  

E, no fundo, Nirav sempre soube.   

Sete anos atrás, quando ela dançava ao seu lado, entre todas as pessoas na casa da amiga que tinham em comum. Quando ela murmurou seu nome, de repente, olhando em seus olhos, ele já sabia o que ela diria. Agora, ela dizia o que sempre quis escutar. Só demorou sete anos para acontecer.  

— Por que nunca voltou antes?  

— Porque não sabia como voltar.  

— E por que voltou agora?  

Juno ponderou, em silêncio, por um instante.  

— Por muitas coisas. Porque eu precisava, porque era tudo que me restava. E, principalmente, por você. E se você quer que eu vá embora, me diga. Apenas fale e eu irei sumir. Se é o que você realmente quer, porque eu não quero mais magoar você.  

Junto com suas palavras, uma fina chuva começou a cair sobre os dois. Através dos trovões e relâmpagos, derramou-se gelada, fina e dolorida. Soava quase como um acalento, ao lavar suas faces e limpar as manchas de suas feridas implícitas.  

Sob a chuva fria, Nirav contemplava os fatos dilacerados, estampados em um rosto manchado de maquiagem, chuva e lágrimas. Um sorriso trêmulo e incerto. Um par de olhos avelãs que brilhavam.  

Era fácil se render a ela. Parte sua queria aceitar o desejo que, por tanto tempo, continuou a arder em seu peito. Porém, quando contemplava a face de Juno diante da sua, não sabia como reagir. A raiva ainda pulsava dentro de si. A revolta o consumia. E ele não sabia o que dizer a ela.  

Quando olhava para Juno, tinha noção do seu passado. E era assustador. Era violento, silencioso, proibitivo e agressivo. E ele também fazia parte. Quando olhava para Juno percebia que havia falhado com ela. Deveria ter lutado, resistido, feito mais por ela. E, no entanto, não era tão diferente dos homens que conhecia.  

Ao desistir dela pela raiva e egoísmo do medo da rejeição, tornava-se parecido com seu próprio pai. Transformava-se também em Nicholas.  

— Não, não quero que se vá. Não se vá, não de novo. — embora as palavras despejassem automaticamente de sua boca, não conseguia dizer nada a ela. — Mas eu não sei se eu consigo...  

Encarava ali a pior parte de si. E não era capaz de suportá-la. Então, como o covarde que sentia ser, deixou Juno sozinha sob a chuva.  


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Notas finais do capítulo

É isso, meus amigos, finalmente a verdade aí, nua e crua! O que será que vem depois?

Pois bem, que venha a primavera!



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