O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 31
∾ Você não será mais o meu último pensamento antes de partir.


Notas iniciais do capítulo

Olá, mais uma vez. Como estão?

Bem, esse é um capítulo mais contemplativo, introspectivo, considerando os últimos tão intensos. Porém, é antes da tormenta que vem a calmaria. Algo grande nos aguarda num futuro bem próximo. Eu diria até que próximo demais, menos de dois capítulos... heheh



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O bairro estava silencioso pelo alvorecer, como sempre era. Quase não se escutava os sons dos vizinhos e o único barulho predominante era o dos animais. O assobiar dos pássaros e os eventuais latidos de um cão ou outro. Caso se concentrasse o suficiente, era possível escutar o farfalhar dos galhos nas copas das árvores sob o vento da manhã fresca.  

Um pálido sol brilhava, esparramando sua luz pela varanda, onde a tia se sentava no antigo banco. Com as pernas cruzadas, recebendo o calor do sol em sua pele pálida, Octavia tomava uma xícara do café preparado pela sobrinha.  

Juno observou a tia, por um instante. Estava particularmente quieta naquela manhã. Em seu semblante, um grande vazio. Ela encarava o céu, com os olhos apertados, absorvendo a claridade do dia. Aos poucos, bebericava o café que tinha nas mãos. E não falava nada. Tinha o costume de elogiar o doce do seu café. Sempre gostou de café forte e açucarado, embora sua esposa não achasse adequado para a saúde. Por vezes, Juno sentia-se tentada a não ceder os pedidos de sua tia, mas se havia aprendido algo em relação a saúde seria que, algumas vezes, a forma mais saudável de se viver era se permitir.  

Gostaria de ouvi-la falar. Qualquer coisa. Só para não ter o barulho de seus próprios pensamentos a acompanhando. Sua mente ainda estava inundada com o sonho que teve durante a noite passada. E a atormentava com gosto.  

Em seu sonho, permanecia presa na fatídica noite de sete anos atrás. Estava na casa de Louise, entre todas as pessoas sem rostos, contemplando o caos acontecer. Diante de seus olhos, a tragédia anunciada se armava, como uma vez antes já havia acontecido. Então, decidia não fugir. Em seu sonho, não teria partido. E quando dava as costas, havia alguém a esperando, com a mão aberta, estendida. Alguém que estava disposto a enfrentar a situação ao seu lado. Entretanto, não se lembrava do resto. Não sabia o que acontecia a seguir.  

Um suspiro escapou de seus lábios. Uma tentativa falha de afugentar os fantasmas. Porém, teimosos como eram, continuavam a assombrá-la. O sonho reacendeu sentimentos que tentava superar. Gostaria tanto de saber o que aconteceria se tivesse ficado, embora sentisse que seria pior. Queria, mais do que tudo, ter tido a coragem de ficar. No fundo, sentia que só tinha permanecido ao lado de Nicholas para se poupar. E havia falhado até nisso.  

O barulho dos passos leves de sua tia se aproximando, puxaram-na de volta ao presente. Octavia sorriu, com os olhos fixos em sua direção, como se pudesse ler os segredos de sua alma. E continuou sem falar nada. Apenas quando se desfez da xícara vazia, depois de um sonoro bocejo, sua voz preencheu o vazio da varanda.  

 — Está uma bela manhã. — disse, então. — Vamos?  

Juno piscou algumas vezes. Mesmo relutante, acenou positivo com a cabeça. Não sabia se seria uma boa companhia para sua tia em um momento como aquele, só não queria ficar sozinha. E desconfiava que Octavia também não.  

Apesar do sol estar se revelando, ainda era uma manhã de inverno e a brisa fresca exigia roupas mais adequadas. Sua tia usava uma manta marrom de crochê sobre a blusa branca e a calça larga escura. Já Juno, usava uma camiseta velha, com a estampa desbotada de alguma banda antiga, enfiada para dentro de uma calça justa. Ambas tinham os cabelos soltos, tornando-se mais semelhantes uma com a outra. Juno gostava dessa semelhança.  

Era até bem cedo quando deixaram a casa. As ruas continuavam quietas, permanecendo silenciosas. Como era um bairro mais distante do centro, poucos carros passavam por ali e, os que existiam, estavam apenas estacionados próximos às calçadas. Às vezes, era possível encontrar uma pessoa ou outra caminhando, apesar de as calçadas estarem livres.  

Em cada calçada, as árvores plantadas e crescidas balançavam com o vento, seus galhos ressecados resistiam, esperando ansiosos pela primavera. As raízes retorciam o chão, estourando o concreto. Era preciso ter cuidado em alguns trechos, uma breve desatenção era o suficiente para causar uma queda.  

Um cachorro de rua passou pelas duas mulheres ao longo da calçada, com patinhas velozes, repleto de energia e ansiedade. O que gerou um agito nos cachorros presos atrás dos portões. Por toda a parte que o pequeno cão abandonado passava, os outros latiam, recebendo-o antes de chegar. Juno sorriu, contemplando.  

De repente, sua tia tomou seu braço com a mão magra. Estava a indicar o caminho que deveriam seguir, decidindo apoiar-se na sobrinha, que acolheu o toque. Com a outra mão, Juno amparou a de Octavia, mantendo uma unida a outra. E, de braços dados, continuaram a caminhar lado a lado. O que poderia ser tão comum para outras pessoas, era tão importante para Juno, considerando que quase nunca tivera a chance de fazê-lo com sua própria mãe.  

Não tinham pressa, portanto caminhavam a passos lentos, aproveitando o curto passeio. Assim, tiveram a oportunidade de observar as ruas, tornando-se movimentadas aos poucos. Agora, já não era incomum esbarrar em pessoas indo e vindo. Algumas tinham o rosto abaixado, presas em seus próprios mundos. Outras, tinham sorrisos abertos para cumprimentar as duas que passavam. De quando em quando, os cumprimentos tornavam-se breves conversas sobre o dia ou como estavam se sentindo naquela manhã. Octavia sempre tinha uma resposta amigável para dar.  

Em determinado momento, quando chegavam em outro bairro, encontraram várias cadeiras postas ao lado de fora. Nessas, diversas pessoas sentavam para tomar um pouco da luz do sol fraco. A maior parte pessoas com idade avançada. E algumas, conhecidas de sua tia. Enquanto parava para conversar, Juno pegava-se imaginando quais situações trouxeram essas pessoas a se conhecerem. O que não era difícil imaginar, considerando a cidade pequena e interiorana em que viviam. Estranho seria se não se conhecessem com facilidade.  

— E essa bela moça. — uma das senhoras pontuou, estendendo a mão para Juno, que retribuiu o firme aperto. — É a sua filha?  

Octavia agradeceu, rindo e abanando as mãos, sem perceber que a surpresa no rosto de Juno transformava-se em alegria genuína. Por algum motivo, aquela mínima pergunta, ainda que equivocada e errônea, trouxe um sentimento tão bom. Por alguma razão, Juno gostaria que sua tia tivesse respondido que sim. Que era mesmo a sua filha.  

— Como se fosse. — respondeu ao invés. O suficiente para manter o sorriso nos lábios de Juno. — É a minha sobrinha, na verdade.  

— Oh, vocês se parecem tanto.  

Dessa vez, foi Juno a agradecer, concordando avidamente com a colocação. O repentino entusiasmo trouxe um amplo sorriso ao rosto de Octavia, antes de prosseguir a caminhada.  

Por um instante, quis ter contado a ela que, parte sua, gostaria de ser a sua filha, de fato. Sem saber porque sentia-se assim, apenas gostaria que ela soubesse. Não sabia como iria reagir, no entanto. E antes que pudesse pensar em alguma forma de dizê-lo, o grande cemitério ergueu-se diante de suas vistas, remoldando os humores ao redor, só por existir.  

Não era tão longe. Apenas duas ruas acima do bairro em que moravam. Era assustador que o local estivesse sempre tão perto de Octavia. Juno não conseguia imaginar como era a sensação, porém, se pudesse deduzir, diria ser quase como uma presença opressora. Afinal, ali jazia a mulher que amou, duas ruas acima de onde moravam juntas, por uma vida inteira.  

Um suspiro trêmulo fugiu de seus lábios, assim como um calafrio percorria por suas costas até a nuca. Ela olhou para a tia, que mantinha o semblante nulo, como antes. Não encontrou vestígio algum de sentimentos. Parecia estar anestesiada.  

Continuaram a caminhar juntas em direção ao grande portão de ferro, com apenas um dos lados abertos. De repente, o sol pareceu sumir do horizonte brevemente. A brisa fria da manhã transformou-se em uma ventania intensa, que durou alguns poucos segundos. Ambas olharam em direção ao céu, contemplando as nuvens cinzas que manchavam a paisagem.  

— Esta vai ser uma primavera chuvosa. — Octavia comentou com casualidade, desviando o olhar do céu para o portão que se aproximava.  

Juno a observou, em silêncio. Admirou sua habilidade de permanecer isenta de dores ou temores. Como poderia ter a calma de comentar sobre o tempo logo antes de visitar o túmulo de sua falecida esposa?  

— Está soando como uma senhorinha, agora. — respondeu, forçando algum tipo de diversão, tentando ser como ela estava sendo.  

— Será que é o que me aguarda? Fazer previsões óbvias com um tom de ancestralidade?  

— E dores nas juntas quando o tempo esfriar. — Juno garantiu, obrigando-a levar a mão até a boca para rir. Pareceu uma menina com esse pequeno gesto.  

O portão surgiu imponente, mas era uma visão decadente. Sendo de ferro, suas grades estavam enferrujadas, tortas e até quebradas. A parte esquerda que permanecia fechada, assim estava por estar emperrada. A outra, bamba, vibrava com o mínimo sopro do vento, emitindo um ruído mórbido. E o lado de dentro não era tão melhor quanto.  

Era como qualquer outro cemitério, na verdade. Um lugar a ser esquecido, abandonado às memórias daqueles que vivem. Era acumulado e, ao mesmo tempo, vazio. Tão grande que era tinha um vácuo de silêncio. E esse era quase palpável de tão perturbador.  

Como imaginava, não havia mais ninguém. Além delas, somente coveiro seguia entre as cruzes envelhecidas, acenando para sua tia com a cabeça. Um aceno rígido, respeitoso e doloroso. Ele sabia o que ela estava fazendo ali. Todos eles sabiam o propósito de estar em um cemitério. E era como uma dor implícita compartilhada em sigilo.  

Era difícil não pensar em Olivia. Quase impossível não ter os traços de seu rosto estampados em suas lembranças. Assim como cada cruz plantada naquele solo arenoso, ela era só mais um fantasma em suas memórias. Ao contrário daquelas pessoas, entretanto, sua mãe não estava se deteriorando sob seus pés.  

Olhando para Octavia, perguntou-se o que pensava. Gostaria de ser capaz de ler seus pensamentos para, talvez, poder confortá-la. Ainda se sentia culpada por não ser capaz de estar ao seu lado quando tudo aconteceu, assim como ela esteve ao seu. Até nisso havia sido covarde o suficiente.  

Quando olhava para cada cruz, marcando uma fatalidade, ponderando qual seria a de Abigail, conseguia sentir o peso de seu falecimento. Era a primeira vez que visitava seu túmulo. E, talvez por isso, não tenha dado o mesmo destino a sua mãe. Era o tipo de visita que preferia evitar. Era doloroso demais, era pedir demais.  

Pela primeira vez, escutou um lamento vindo de sua tia. Agora, sua expressão estava marcada por uma ruga de cansaço. Não era fácil para ela estar ali. Com um aceno seco de cabeça, indicou para a sobrinha onde deveriam ir. Abigail estava logo à frente, tão próxima e tão distante.  

Apesar dos pesares, era um canto agradável para se descansar pela eternidade. A grama, ao redor, parecia crescer saudável, embora o inverno a hostilizasse. Era cercado de algumas estátuas antigas de anjos, que permaneceram com aparências agradáveis. Contudo, não havia placa alguma que identificasse quem descansava ali. Apenas uma cruz branca, com um pedaço quebrado, sinalizava a sepultura de concreto cinza. Era somente uma pedra retangular, larga e velha, rachando nas beiradas.  

Juno não suportou olhar por muito tempo. Seus olhos ardiam. Encontrou conforto na tia, ao seu lado. Encostou a cabeça na sua, mantendo os braços envolvidos. Percebeu que não traziam flor alguma para Abigail. Assim, fechou os olhos.  

Gostaria de saber o que dizer. Adoraria ter o que dizer. Sentia que deveria dizer algo. Porém, tudo o que tinha a oferecer era saudade. Uma saudade imensa, que se transformava em lágrimas em seus olhos. E recusava-se a olhar para o que restava daquela mulher, preferia as poucas memórias que ainda residiam no fundo de sua cabeça.  

Em sua mente, Abigail estaria esperando em casa, recebendo Octavia em um abraço acompanhado de um beijo. Elas iriam conversar sobre o que deveriam fazer para o almoço e, provavelmente, discutiriam sobre isso. Octavia estaria enjoada de macarrão com molho branco e Abigail não iria querer comer carne vermelha. No fim, entrariam em acordo para almoçar fora e, pelas ruas, sairiam de mãos dadas. Apenas as duas juntas.  

Algumas lágrimas teimosas insistiam em escorrer por suas bochechas quando Octavia se afastou. Com cuidado, ao se soltar da sobrinha, a fez abrir os olhos. Devagar, quase hesitante, Octavia se encurvou diante do túmulo, encostando a mão trêmula no concreto.  

Não foi capaz de ouvir o que foi dito. E não deveria. Era um momento íntimo, de tamanha vulnerabilidade, que ela não deveria se intrometer. Permaneceu de pé, observando a tia tomar o tempo que precisasse. E, por fim, escutou apenas uma coisa:  

— Eu sinto sua falta.  

Seu queixo tremeu, obrigando-a a morder o lábio inferior. Parecia não adiantar levar as mãos aos olhos para conter as lágrimas. Elas estavam ali, presentes, como pensava que Abigail também deveria estar. Sentia falta dela, como sentia.  

Por fim, Octavia retornou ao seu lado, buscando suas mãos como um amparo. Juno a recebeu com zelo, mantendo seu corpo próximo, transmitindo algum tipo de calor.  

O silêncio repousou entre elas. Observando o túmulo diante de seus olhos, Juno ainda não entendia a presença tão massiva através daquela lápide. Talvez, nunca fosse capaz de entender. Tudo o que restava de sua mãe era suas cinzas, há muito levadas pela correnteza de um canal de rio. Como ela própria havia pedido.  

— Por um bom tempo, me recusei a vir aqui. Era como afirmar que ela tinha ido embora. — Octavia murmurou com um suspiro cansado. — Agora, acho que é uma prisão para o espírito dela, mas é o que ela sempre quis. Estar perto do filho.  

— Leo também está aqui? — perguntou surpresa, pois não havia placa para identificação.  

Leo. Esse nome a fez olhar ao redor, procurando por qualquer sinal dele. Nada restava, talvez nem mesmo seus ossos, onde quer que estivessem, enterrados naquele solo.  

— Sim. Na época, não tínhamos dinheiro para a placa. E quando Abigail faleceu, havíamos gasto tudo com os procedimentos médicos. Espero consertar isso em breve.  

Juno contemplou o grande bloco de pedra. Então, ali estava Leo. E era o mais próximo que chegaria dele. Estavam divididos, separados por uma barreira muito além da compreensão humana. E, no entanto, unidos por uma pessoa em comum.  

Ela sorriu, abraçando o corpo de Octavia. Com carinho, envolveu o braço nos ombros da tia, acalentando-a com seu toque. Houve um breve instante de quietude, antes de Octavia prosseguir dizendo:  

— Gosto de me confortar pensando que os dois estão juntos agora, mas a verdade é que não acredito muito nessas coisas. Eles só não estão mais entre nós. Só isso.  

— Acho que é normal tentar se apegar a algum conceito. Eu também tentei procurar esse conforto em relação a minha mãe, depois percebi que só não conseguia aceitar que ela estava me deixando.  

— E nós precisamos aprender a dizer adeus. — disse, por fim, antes de começar a se afastar da lápide.  

— Acho que ainda não aprendi. — confessou tristemente.  

Por uma última vez, Juno olhou para a cruz quebrada. Nesse momento, não pensou em mais nada. Somente repousou o olhar. E só então, seguiu a tia.  

Octavia tomou a mão na sua, como uma mãe faria para auxiliar o filho. Havia, além de consolo, compreensão. Como se, no fundo, ela também não tivesse, de fato, aprendido a dizer adeus. Não era uma fraqueza. Algumas coisas só são difíceis demais para serem superadas.  

Percebeu em seu andar uma certa ansiedade. A necessidade de sair dali o mais depressa possível. Apesar disso, permaneceu de mãos dadas, com a voz calma e o conforto em suas palavras.  

— Nós duas perdemos pessoas. E nós duas estamos aqui agora. Acho que o melhor que podemos fazer por aqueles que perdemos é seguir em frente.  

Juno a observava, de soslaio. De alguma forma, tentava desvendar o seu jeito de suportar a dor da perda.  

— Nunca pensou no que poderia ter feito para impedir o pior?  

— Oh, por muito tempo. Sendo honesta, parte de mim continua a se martirizar. Poderia ter prestado mais atenção, ter sido mais solicita, escutado mais... Nada disso adianta, poderíamos ter feito das tripas um coração e ainda iríamos ter de encarar a perda.  

Agora, o grande portão tornava a aparecer. Velho, decadente, abandonado. Conforme cruzavam seu amplo arco, Juno olhou por cima do ombro. Quase como uma despedida, olhou outra vez para dentro do cemitério. Estava deixando muita coisa ali, por mais que não parecesse. Daquela distância, já não conseguia mais reconhecer a lápide de Leo e Abigail. Ainda assim, de forma silenciosa, com um olhar, se despediu deles.  

Gostaria de ter se despedido de sua mãe também. Um último abraço. Sequer um olhar. Teria dito tantas coisas, mesmo quando ela não fosse mais capaz de escutar. Talvez, esse único momento, fosse o suficiente para suprir uma vida inteira de abandono.  

— Não consigo deixar de pensar que falhei com minha mãe. Eu a perdi antes de criar um laço com ela. Eu ignorei todos os seus problemas até não ter mais o que fazer. Eu só vi a vida dela se esvaziar diante dos meus olhos e sequer tentei lutar por ela.  

De repente, Octavia parou. Com seu rosto negava o que havia dito. Em seus olhos, uma profunda dor ao ouvir suas palavras. Era difícil encará-la.  

— Escute bem, o que aconteceu com sua mãe estava fora do seu controle. Sim, você poderia ter feito mais, lutado mais... Poderia ter tentando mais uma chance e seria a última, de qualquer forma. Poderia ter dado um dia a mais para que ela morresse no próximo. É só o jeito que a vida é. Cruel e injusto, mas é o que é.  

Juno estava sempre à procura de uma última chance, nunca capaz de aproveitar a que teve um dia.  

De nada adiantava ser cruel consigo mesma. E autopiedade não combinava com a sua pessoa. Sua tia estava certa. O que poderia fazer por quem perdeu era seguir em frente. Tanto por aqueles que faleceram, quanto aqueles que ainda estavam vivos.  

E, com um passo de cada vez, estaria distante do seu caos. Assim como já estavam longe do cemitério. O grande portão era apenas um rastro no horizonte, conforme se afastava. Queria ter deixado lá todas as suas inseguranças, falhas e pecados. Porém, permaneciam ali consigo, impregnadas demais em sua alma, quase expostas em sua carne.  

Não demorou para que o vigor das ruas de Florencia as encontrassem no caminho para casa. Sem saber quanto tempo ficaram no cemitério, contemplando a fragilidade da vida, a manhã avançou despercebida. Apesar de o bairro em que moravam ser afastado, já se afetava pela movimentação do cotidiano.  

As pessoas avançavam pelas calçadas, a maior parte jovens usando uniformes escolares. A vitalidade e a energia pareciam emergir de cada um ao passar ao lado das duas mulheres. Em sua maioria, estavam sempre em grupos barulhentos. Os risos fáceis, as vozes altas e os maneirismos alterados. Conversavam sobre tudo e todos ao mesmo tempo. Era uma cacofonia.  

Juno percebeu-se distraída ao observá-los. Lembravam-na de si quando jovem. Era como cada moça e como cada rapaz, um receptáculo de agitação inesgotável. Adorava sair pelas ruas, com o uniforme da escola, e criar um caminho diferente para casa a cada dia. Acompanhada das amigas, perdia-se em cada esquina, só para fazer o assunto durar mais. E quando estava interessada em algum meninote, as voltas demoradas eram ainda mais propositais, só para ter a chance de uma troca de olhares.  

Não havia mudado tanto assim, afinal. Continuava dando voltas demoradas, criando caminhos diferentes, só para ter uma chance de esbarrar, sem querer querendo, em um certo meninote.  

Porém, nem isso restava-lhe mais. Já não era mais a garota de antes. E procurar se esbarrar, por conveniência, em determinados meninotes era um vício que deveria ser deixado para trás. Até mesmo a foto, a única que tinha, havia jogado fora. Deveria ser o suficiente. Tinha de ser.  

Então, por que não conseguia deixar de amá-lo?  

Agora, a casa já estava logo ali, a poucos passos de distância. E, por algum motivo, não queria entrar. Só queria continuar andando, sem rumo, só por andar. Quem sabe assim, talvez, não continuasse a esbarrar em um alguém ou outro. Só não queria ficar sozinha. Não queria ser o grande vazio que sua antiga amiga declarou que era.  

— O que a perturba? — sua tia a questionou, subitamente.  

Talvez, tenha percebido seu aspecto atordoado. Sequer era capaz de esconder o que estava sentindo. Como uma estampa, marcavam todo seu rosto para quem quisesse ver.  

Hesitou, um instante, antes de responder. No fundo, só não sabia como dizer, embora desconfiasse que sua tia já soubesse.  

— Alguma vez, teve medo da minha mãe não entender o seu lado? — perguntou quando estavam próximas da porta.  

— O tempo todo. — Octavia revelou, virando de frente para a sobrinha. — Na verdade, desconfio que ela não tenha entendido, de verdade. Ela aceitou, mas não entendeu.  

O coração de Juno saltou, palpitando um instante.  

— Por quê?  

— Porque eu nunca voltei.  

O rosto de Octavia transformou-se. Seus olhos trouxeram um brilho estranho, que nunca havia visto antes. Era como se estivesse contemplando, ao vivo, seu trauma. E não era difícil reconhecê-lo, pois também o tinha em si mesma.  

— Assim que meu pai me levou, eu desesperadamente tentava encontrar um jeito de voltar. Eu pensava em ligar, gritar, machucá-lo, qualquer coisa. E, apesar disso, nunca fiz nenhuma dessas coisas. Eu tive inúmeras chances, mas nunca ousei tentar. Eu apenas fui com ele, apenas fiquei com ele. Eu não resisti. — contou com uma neutralidade absurda, sua voz sequer tremeu. Seus olhos, porém, estavam baixos, escondidos. — Não deixei de resistir por me conformar ou por não querer voltar. Não resisti a ele porque era o meu pai. E nada me dava mais medo do que imaginar o que ele poderia fazer, caso soubesse que eu queria fugir. Não saber o que ele era capaz de fazer me aterrorizava, então eu paralisei. O medo nunca me deixou voltar.  

Encontrou o pranto em seus olhos, mais uma vez. Seus lábios tremiam, entreabertos, procurando alguma palavra. Jamais poderia se equiparar a violência sofrida por ela, mas reconhecia-se em seu medo. O medo que paralisava, que controlava, que oprimia.  

— Você nunca tinha dito isso antes... — observou com voz baixa, ainda incrédula.  

Octavia concordou, balançando a cabeça.  

— Assim como você. — ela se aproximou, ficando ao seu lado. — Não contou a ele, não é?  

— Não, não contei a verdade. Tenho medo do que pode acontecer.  

— E o que a verdade pode trazer de ruim? Pode ser amarga, até dolorosa, mas é inevitável. É a única opção que se tem para seguir em frente.  

Juno olhou ao redor. Observou a rua movimentada. Então, abaixou a cabeça.  

— Não sei como contar a ele.  

— Vai saber. Quando chegar o momento, vai saber. — sua tia acertou tapinhas em sua mão. — E você já suportou isso sozinha por tempo demais.  

Juno não respondeu. Mesmo quando ela se afastou, deixando-a sozinha, não insistiu que ficasse. Escutou a porta ser aberta, sem ser fechada em seguida. Seus olhos, teimosos, seguiram as calçadas. Pareciam procurar uma coisa a mais. E, sem nada a encontrar, desistiu de procurar.  

Sua tia a esperava, só precisava ir para casa. E, diante da porta, encontrou a sensação de lar. Ali, não se sentia tão sozinha assim. E não era um vazio tão grande quanto parecia. Diante da mesma porta, sua tia estendeu uma foto, amassada.  

Entre seus dedos, os dois rapazes se divertiam, eternizados em um momento que jamais retornaria. Um deles era Leo. O outro era Nirav.  

— Encontrei perto do lixo. — comentou, observando seu cuidado ao segurar a foto. — Não acredito que queira se desfazer, não de verdade.  

— E o que eu devo fazer com isso? — perguntou, olhando para a fotografia.  

— Uma hora vai descobrir. Por enquanto, guarde-a. Como estava fazendo.   

— Afinal, é tudo o que tenho dele. Tudo o que sempre vou ter.  

— Nunca é tarde para tentar de novo. Sete anos se passaram e, pelo visto, o sentimento continua vivo. — ela tocou sua mão, uma última vez. — Esse amor tem que significar alguma coisa. Não pode ser em vão.  


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Notas finais do capítulo

É sempre bom trazer os conflitos pessoais da Juno, além do próprio Nirav. Ela é uma personagem que tem uma carga pesada em vários quesitos. De alguma forma, eles sempre se entrelaçam. Pouco a pouco, a gente começa conhecer seu passado e o quão conturbado foi. E assim, a entender porque demorou tanto a voltar.



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