O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 30
∾ Eu quero te contar a verdade, mas toda minha voz foi desperdiçada.


Notas iniciais do capítulo

Olá! Sentiram minha falta?

Peço perdão pela ausência de semana passada. Tive alguns problemas com sono, problemas pessoais e afins. Nesse vai e vem acabou não dando tempo para escrever. Porém, contudo, todavia, eu não falho! Aqui estou de volta, com um capítulo novo em folha, para prosseguirmos com a história.



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O vento soprou forte, balançando a longa saia de seu vestido, embolando-a entre suas pernas. Assim como agitou seus cabelos ao redor de seu rosto, fazendo suas ondulações dançarem. Era um vento menos frio, parecendo quase abafado, mas ainda arrepiava a pele. Ou talvez fosse o seu próprio nervosismo.  

Ela olhou para os lados, sem conhecer muito aquela parte da cidade. As ruas estavam vazias, repletas de grandes e chiques casas escondidas atrás de massivos muros ornamentados. Um tremendo silêncio preenchia as calçadas, nem o vento parecia sibilar ao atravessar pelas curvas. Quando olhava em qualquer direção, tudo o que enxergava era um grande vazio.  

Um tímido sol estendia-se por trás das belas casas, revelando o pôr-do-sol que espreitava nos próximos minutos. Pouco a pouco, nuvens começaram a se aproximar, cobrindo seus raios sem pressa. Outra vez, o vento soprou forte, de trás para frente, bagunçando seus cabelos e agitando seu vestido lilás. A fina alça da direita se afrouxou, escorrendo por seu ombro nu. Ela não reparou.  

Em suas mãos, o presente comprado de última hora. Escondido dentro de uma simpática caixa artesanal, guardava-se um relógio tradicional, com tiras de couro tingidas de amarelo e um grande visor com números romanos. Deveria pertencer ao pulso de Hester, em breve, que estava completando seus vinte e nove anos. Estava a caminho da casa das irmãs, onde estariam comemorando seu aniversário. Porém, Juno não tinha tanta certeza se deveria comparecer.  

Nunca pensou que estaria nervosa para encontrar amigos que tanto apreciava. Jamais imaginou ter um agito nada agradável no fundo do estômago. Em momento algum havia passado por sua mente que já não se encaixava mais ali. No entanto, era assim que começava a se sentir.  

“Você nunca vai ter ninguém ao seu lado”, disse o eco de uma voz velha, que ressurgia no fundo de sua mente.  

Na curva, ela parou de novo. Com olhos incertos, procurou algo nas vielas ao seu redor. Somente encontrou residências ostentosas, muros altos e alguns carros estacionados. Não estava perdida, sabia bem onde ir, só não sabia se queria ir. Havia fugido na outra noite e agora já não sabia se tinha coragem de retornar.  

Mesmo assim, suas pernas continuaram a caminhar. A sandália aberta continuou a raspar no concreto da calçada. Como se seu corpo decidisse se mexer sozinho, apesar de sua relutância. E quando deu por si, estava diante do grande portão de madeira, já aberto, esperando sua entrada.  

Diante de seus olhos, surgiu o belo casarão que pertencia a família de Hester e Helena. Logo na entrada, um imenso gramado ornado com um colorido jardim. Uma piscina larga jazia esvaziada, escondida por conta do péssimo clima frio dos últimos meses. A casa em si era imponente, com dois andares, suas paredes eram coloridas em tons vibrantes, tendo janelas e portas com vidros emoldurados em madeira, que refletiam a claridade da tarde que se despedia.  

Como era sua primeira vez visitando, era difícil não se perder ao admirar o entorno. Estava encantada com a grandiosidade e elegância da residência. Não só aquela, também de todas as outras do bairro em que se encontrava. Soava contraditório que uma cidade pequena tivesse casas tão grandes e luxuosas enquanto em uma cidade grande, como a sua antes, dispusesse lares tão pequenos e precários para se viver.  

Conforme se aproximava, foi recebida por a melodia de uma música, perdida entre o som de conversa e riso das pessoas próximas. Não eram muitas, até tinham semblantes familiares, embora não conseguisse recordar de nome algum. Entravam e saiam da casa, passeando pelo gramado, brincando e se divertindo com bebidas nas mãos.  

Seus amigos estavam por ali, em algum lugar. Conseguia escutar suas vozes, embora incapaz de identificar onde. Olhando de um lado para o outro, continuou sem encontrar nenhuma feição conhecida. Não eram tantas pessoas, apesar de se notar perdida entre elas.  

Sentiu-se como no almoço, algumas semanas atrás, na casa de Louise. No dia em que reencontrou Nirav. Um sentimento contraditório. Estava feliz por estar ali ao reencontrá-los, mas temia não pertencer mais entre eles. E quanto mais tentava se encaixar, mais deslocada se encontrava.  

Entre os demais, caminhou em direção a entrada. Esbarrou em uma ou outra pessoa, cumprimentando com um sorriso tímido. Até que Helena apareceu para resgatá-la.  

— Fico feliz que tenha vindo! — o sorriso caloroso era tão largo quanto o espaço entre seus braços, abrindo para envolverem Juno em um aperto quente. — Por um momento, temi que não viesse. Você foi embora tão rápido na outra noite, pensei que...  

Juno soltou-se do abraço, sem se afastar de seus braços. Olhou para seu rosto confuso. Não tinha o que dizer a ela. E, por isso, sentia-se tão mesquinha e egoísta.  

— Desculpe. — respondeu, comprimindo os lábios. — Eu não deveria ter saído daquele jeito, eu só...  

Para sua surpresa, ela dispensou suas explicações com um aceno e um sorriso.  

— Não precisa se desculpar, muito menos para mim. Não quero que se sinta pressionada. — seu jeito era suave, assim como o olhar em seu rosto. — Tome o tempo que precisar para acertar as coisas. Você sabe que vamos estar aqui com você.  

Juno concordou, apesar de não ter tanta certeza. Uma outra vez, a voz em sua memória continuava a reafirmar o que tanto temia. Quando olhava ao redor, sentia não encontrar mais ninguém, como se estivesse tentando se encaixar entre desconhecidos. Pois, afinal, era assim que se sentia depois de tanto tempo. Ou, talvez, fosse ela a desconhecida.  

— Eu trouxe um presente. — lembrou-se, então, do pequeno embrulho que trazia nas mãos. — Não é grande coisa, mas espero que Hester goste.  

— Claro que vai! — garantiu com um sorriso. — Daqui a pouco ela está por aí, vamos poder fazê-la adivinhar os presentes.  

Juno permitiu-se a um sorriso mais genuíno. Então, Helena indicou a entrada da casa com os dedos, conduzindo-a para mais perto. Seu nome foi chamado por alguém, obrigando-a a se afastar de Juno, por um momento.  

— Sarah e Lou estão lá dentro! — comentou, virando as costas. — Aproveite um pouco, sinta-se em casa.  

Seu olhar perdido acompanhou a silhueta da amiga, passeando entre os convidados. Ela parecia tão leve, conversando com quem encontrava no caminho, distribuindo brincadeiras e piadas. Em seu semblante estava a diversão estampada. O olhar caloroso e o sorriso cativante. Só assim, Juno sentiu-se em casa.  

Logo quando decidiu ir para dentro, alguém gritou um nome aleatório, ao seu lado. Uma risada ecoou e, numa pressa repentina, teve seu tronco acertado por um esbarrão, que quase a fez perder o equilíbrio. Um rapaz de cabelos escuros passava por ela, como se não estivesse no caminho. Por muito pouco, um xingamento não escapou de seus lábios ao quase ter cerveja derramada em sua roupa. Quando adentrou para a cozinha, percebeu mais pessoas acabando de chegar.  

A cozinha era ampla, porém tão abarrotada de coisas que parecia pequena. Uma grandiosa mesa de madeira ocupava o centro, dispondo vários pratos com petiscos salgados e doces. Em volta, balcões escuros rodeavam, acoplados com o fogão e a cozinha. Ali, encontrou Lou e Sarah, escorada nos balcões. Louise parecia ter as mãos ocupadas enquanto Sarah saboreava um petisco ou dois. Ainda sem ser notada, Juno se aproximou aos poucos. O cheiro que vinha dali era delicioso, fazendo sua boca começar a salivar.  

— Oh, o cheiro está divino! — Juno brincou, chamando a atenção das duas, que sorriram em sua direção.  

— Apareceu a margarida! — Sarah exclamou, inclinando-se para cumprimentá-la.  

— Eu achei que você não viesse. — Lou disse, terminando de lavar um dos pratos. — Poderia ter vindo junto comigo.  

— Eu ainda não tinha comprado o presente. — desconversou com uma careta. — Vocês precisam de ajuda?  

— Eu adoraria! — Lou disse, apoiando as mãos na bancada, olhando para Sarah e bufando. — A moça aqui só faz comer. E Helena... ninguém segura.  

Juno deu um riso, observando Sarah desviar o olhar culpado antes de surrupiar outro salgado.  

Do lado de fora, o tom de voz pareceu aumentar, de repente. Curiosas, Sarah e Juno se entreolharam e Louise garantiu que deveria haver mais pessoas chegando. De todo jeito, Juno decidiu deslocar o corpo de volta até a porta, espiando por um momento. E sim, Louise estava certa.  

Talvez, já soubesse. Talvez, por isso, tenha feito questão de espiar. Para que, mesmo por um segundo, pudesse ter um pequeno vislumbre de quem chegava. E não precisava nem dizer quem era. O coração acelerado entregava. O maldito coração acelerado.  

Caminhando pelo gramado, com o braço direito em torno dos ombros da namorada e a mão direita ajeitando os cabelos, Nirav se aproximava. Um sorriso alargava os seus lábios ao ser recebido pelos amigos. Agora, soltava-se da mulher ao seu lado, dando atenção àqueles que se aproximavam.   

Por um momento, desejou ter coragem de fazer o mesmo. Só ir até lá e apertar sua mão. Dizer um cumprimento qualquer, saber se estava bem. Só por estar perto dele. No entanto, já havia alguém ao seu lado. E não havia mais espaço.  

— Eu já volto para ajudar vocês. — disse, num fio de voz. — Um minuto.  

E, em vez de sair pela porta, adentrou mais a casa.  

O lado de dentro era ainda maior do que o exterior aparentava. Atravessando um curto corredor, decorado com alguns vasos de plantas, alcançou o que seria a sala de entrada. Dali, pelas janelas, conseguia ver o movimento de pessoas ao lado de fora. Olhando ao redor, após uns longos instantes, conseguiu encontrar o que procurava: um banheiro.  

Com a porta entreaberta, refugiou-se no cômodo, sem sequer acender a luz. Apoiou o pequeno presente na pia, onde lavou as mãos e esfregou o rosto. Permaneceu dentro da comodidade da escuridão, desejando só desaparecer. No fundo, sentia que não deveria estar ali. Não merecia estar ali, tentando competir a atenção dele. Era o que tanto desejava, ser notada por ele. E, agora, queria desaparecer.  

Entretanto, só bastou olhar para frente e perceber que escuridão alguma iria fazê-la desaparecer. No reflexo do espelho, a sua imagem refletida afirmava o contrário. E não era uma visão lamentável como achava que seria. Era só Juno, com seus cabelos ondulados, sardas salpicando sua face e olhos cor de avelã. Era só ela, mas também eram seus segredos.  

Não era difícil saber que seus segredos estavam engolindo-a, pouco a pouco consumindo seu cerne. Eram seus segredos, a razão de sua própria reclusão. Os culpados por dizê-la que não deveria estar ali. Eram a voz que dizia não merecer uma outra chance. E, no fundo, sabia que só precisava falar. Queria tanto falar, então por que não conseguia?  

“Porque você é incompetente o suficiente...”  

Por um instante, tornou a contemplar o reflexo de sua imagem no espelho. E, agora, já não era só Juno. Através do reflexo, seu olhar encontrou o de Nirav. Na pequena brecha da porta entreaberta, mesmo no escuro, seus olhares se encontraram. Ele estava parado, próximo da porta onde estava. Apenas a observava, com os olhos fixos em sua direção. Apenas um olhar e era capaz de afugentar seus pensamentos mais terríveis. E como ela gostava daquele olhar. Sentia-se tão confortável sob seus olhos, que se esquecia do caos ao redor.   

Suas mãos tocaram a própria nuca, entrelaçando os dedos nos próprios cabelos. Devagar, ajeitou os fios para longe, revelando a pele de seus ombros. Então, manteve o olhar preso ao dele, através do reflexo. Diante de seus olhos intensos, sentiu a pele se arrepiar por todo o corpo. E ele pareceu perceber. Quando ele piscou, tentando desviar a atenção, Juno percebeu que a respiração dele parecia falhar.  

Por fim, a contragosto, desistiu do momento em que compartilharam, sentindo-se culpada por tirar algum proveito. Retomando o pequeno embrulho entre as mãos, ela saiu do banheiro.   

Bem à sua frente, como se esperasse o confronto direto, Nirav permanecia. Sob o tom das luzes apagadas, apenas com os raios pálidos de sol atravessando as janelas, ele parecia ainda mais bonito. Havia um ar íntimo que os rodeava, como se nada precisasse ser dito. Estar ali, diante um do outro, por um momento, pareceu o suficiente.  

 Juno o admirou, em silêncio. Sua pele escura contrastava com a blusa verde, com as mangas curtas revelando seus braços mais torneados. E, como se tivesse esticado alguns bons centímetros, de propósito, para tirar vantagem da altura, deixando-a desconcertada de olhar para cima. Afinal, encontraria seu par de olhos, tão escuros, capazes de fazê-la se perder.  

Ele não parecia ter se recuperado do contato, assim como ela. Estavam separados por poucos metros que, aos poucos, parecia diminuir mais. E ela precisava resistir à vontade de se aproximar mais. Ou então, só estaria correspondendo ao que temia tanto ser.  

Sua garganta ressecou, obrigando-a a engolir a seco. O pensamento a obrigou seguir em frente. Só precisava tomar o primeiro passo para longe dele. E então...  

— Seu vestido. — a voz dele a alcançou como uma descarga elétrica disparada por todo o seu corpo. — Está desamarrando.  

Eles se entreolharam, mais uma vez, antes de Juno levar uma das mãos até as costas. Não conseguiu alcançar, só foi capaz de sentir o fino cadarço, que sustentava as alças, entre os dedos. O nó deveria estar se desfazendo.  

Com a mão trêmula, tentou descobrir o que poderia fazer, até percebê-lo mais próximo. Seus olhos a acompanhavam com expectativa, fazendo-a desistir com um suspiro.  

— Pode me ajudar a amarrar?  

E, como se estivesse esperando por aquele pedido, não precisou responder. Apenas se aproximou, extinguindo os poucos metros que os afastavam. O calor do corpo dele veio de encontro ao seu, sem que sequer precisassem se encostar. E ela precisou respirar fundo para manter a concentração.  

Assim como antes, levou as mãos até os cabelos, afastando-os do caminho dele, apesar de não serem longos. Alguma mecha pareceu ficar para trás, pois sentiu os dedos dele quase encostarem nos seus. Dessa vez, teve certeza de que ele escutou o tumulto do seu coração agitado.  

Juno fechou os olhos, respirando fundo, uma outra vez.  

— Desculpe pela outra noite, eu não queria ter...  

— Fugido de novo? — ele completou, roubando suas palavras.  

Em silêncio, sentiu as mãos dele apertarem os cadarços, antes de criarem o laço em suas costas. Era capaz de sentir a firmeza de seu tato, que raspava na pele de seu dorso. Estava arrepiada, sem saber ser por suas mãos geladas ou pelo simples vestígio de seu toque.  

Não pareceu durar menos de alguns segundos, mas era o suficiente para fazê-la desejar ficar presa no momento. Quando ele pareceu terminar, sentiu hesitação em se afastar. E, com surpresa, sentiu a mão dele tocar seu braço direito.  

Com a ponta dos dedos, Nirav agarrou a alça fina de seu vestido. Estava afrouxada, caindo por seu braço direito. Com cuidado, ele a conduziu até seu devido lugar com dois dedos. E quando a soltou, deixou sua mão deslizar por toda a extensão do braço dela. Conforme tocava sua pele, o traço de arrepio ficava, inevitável de ser percebido por ele. As pontas dos dedos escorregaram por sua pele, passando por seu cotovelo até seu antebraço e, por fim, seu pulso.  

— Juno. — ele murmurou, chamando seu nome. Ela conseguia sentir o ar de seu hálito alcançá-la de tão próximo que estavam. — O que nós tivemos significou alguma coisa para você?  

Sua mão, de imediato, encontrou a dele. Como uma reação impulsiva, estando tão perto dele, agarrou-se aos seus dedos. Não só para procurar um apoio diante de um questionamento tão forte, como para respondê-lo, de certa forma.  

Nirav não soltou sua mão. Talvez até entendesse, só precisava escutar de sua própria boca, com suas palavras, uma a uma. Por mais acolhedor que seu toque pudesse ser, ela sabia que ainda precisava dizer.  

E a resposta estava tão na ponta da língua, que doeu fisicamente quando não pode dá-la a ele. Quando seus lábios se entreabriam para dizer o que tanto queria, a verdade que sempre guardou, o momento se ruiu diante de seus olhos. Em questão de instantes, sua mão já estava distante da de Nirav.  

A sala onde estavam foi invadida por algumas pessoas, que trouxeram o tumulto de fora para dentro. As gargalhadas, vozes altas e música atropelaram o momento, obrigando-os a se afastarem de supetão. Entre o tumulto, estava Theo e Hester. Conforme avançavam para dentro da casa, Nirav foi resgatado por Theo e os outros rapazes, envolvendo-o dentro da bagunça. 

Uma última vez, Juno buscou o olhar dele, tentando encontrar algum resquício do homem que estivera ali, tão próximo. Nada encontrou, sequer o som de sua voz ao se afastar. Assim como entraram, também saíram. Lentamente, a sala tornou a esvaziar e toda a casa pareceu afundar em absoluto silêncio. No fim, apenas Hester permaneceu.  

Agora, restando as duas as sós, Juno sentiu um certo receio. Por algum motivo, seu rosto parecia arder. A casa parecia habitada somente por elas. Todo o tumulto já estava longe o suficiente.  

Encontrando os olhos analisadores de Hester em sua direção, notou um semblante não tão amigável assim. Apesar disso, buscou recuperar a postura para cumprimentá-la.  

— Hester! — tentando se recompor, vestiu um sorriso educado. — Queria te dar os parabéns, eu trouxe um...  

— Não precisa se explicar para mim. — cortou-a sem rodeios.  

Com um ruído nasal, Juno balançou a cabeça, franzindo o cenho.  

— Sobre o que? — perguntou genuinamente.  

— Esses encontrões propícios. — ela piscou em sua direção, se aproximando mais.  

Sem entender, Juno deixou os lábios entreabertos, procurando o que dizer. Sua expressão deve tê-la irritado, pois ela bufou com violência, antes de prosseguir.  

— Esbarra aqui, desencontra ali... Imagino o quão tentador seja. — o tom sugestivo, as sobrancelhas arqueadas e o olhar inquisidor. — Eu sei que não deve ser fácil e juro que entendo o que está sentindo, mas não acho certo o que está tentando fazer.  

— E o que estou tentando fazer? — perguntou, com nervosismo, já deduzindo a resposta.  

Com um riso nasal de escárnio, Hester respondeu:  

— Se reaproximar de Nirav.  

Por mais óbvio que pudesse ser, o peso da resposta atingiu seu peito com força. Estava, agora, encarando o que a tornava tão invasiva. O motivo de suas fugas. A razão do seu silêncio. O seu maior medo.  

De alguma forma, já esperava isso. Não era atoa a sua hesitação, embora, tantas vezes, quis acreditar que só estava sendo insegura. Só precisava olhar para o rosto de Hester para decifrar o que estava estampado. E ainda assim, ela fez questão de falar em voz alta para não gerar dúvidas.  

— Você pode não achar, mas está prejudicando ele. Acredito que ele esteja tentado a querer entender. Não posso julgá-lo, afinal quem não estaria? Só que nada de bom tem vindo disso. Alice me conta como ele parece perdido desde que você chegou. E você não consegue ver como está deixando-o confuso e acuado.  

— Eu não queria causar isso, eu só...  

— Eu sei que não é a sua intenção, mas você não tem o direito de bagunçar a vida dele, de novo. — pontuou, ignorando sua tentativa de se defender. — Talvez, esteja na hora de se afastar.  

Com alguma força que resistia dentro de si, Juno foi capaz de controlar as lágrimas que ardiam em seus olhos. Precisou respirar fundo e engolir seus próprios medos.  

— Eu só estou tentando consertar meus erros. — disse, tentando criar algum tipo de coragem daquela pouca força.  

— Oh, você está tentando? —  mesmo sua pergunta soando irônica, Juno assentiu. — Agora?  

Com um aceno cansado de cabeça, suspirou.  

— Eu só quero uma chance.  

O semblante de Hester era inflexível. E ela parecia ter se irritado com sua insistência.  

— Você teve uma vida inteira para isso, mas você preferiu fugir e sumir por anos! — a voz, apesar de baixa, era incisiva e parecia uma lâmina, prestes a marcar na pele de Juno todos os seus pecados. — Como uma covarde!  

— Eu queria ter voltado! Eu nunca quis... — argumentou, tentando defender a si mesma de alguma forma, entretanto, Hester não estava ouvindo. Ou não queria ouvir. 

— Você o usou para sua diversão e, quando deu errado, achou mais fácil fugir! Por sua causa, ele foi agredido! — com violência, relembrou-a da noite que tentou por tanto tempo esquecer. Não podia julgá-la por estar tão decepcionada, afinal de contas. — E agora, como se não fosse suficiente, continua a bagunçar a vida dele.  

Juno poderia ter se dado como vencida, era o que deveria fazer. Contudo, ao se lembrar do passado, tudo o que o conseguia fazer era relutar, por mais que estivesse derrotada.  

— Se é minha culpa, por que não posso tentar me desculpar? — suplicou, porque era só o que restava. — Eu não tenho o direito de tentar ser perdoada?  

— É difícil acreditar que você esteja procurando por perdão. — declarou como uma sentença. — Parece que está mais preocupada em conseguir alguma coisa a mais.  

A acusação feriu mais do que gostaria. Quase fez com que as lágrimas contidas se derramassem por seu rosto avermelhado. E apesar de doer, a fez encarar a verdade que tentava evitar. Era o que todos pensavam dela. Mesmo Helena. Talvez, até Nirav.  

Com um último resquício de força, procurou tentar lutar pela sua dignidade.  

— Eu juro, não é o que parece, eu...  

— Eu vou te dizer bem o que parece. — Hester deu outro passo em sua, mantendo a conversa bem segredada. — Você só está tentando preencher o vazio que se tornou. Eu sinto muito que tenha perdido tudo e esteja sozinha, mas você não pode usá-lo para tapar esse buraco. Ele não tem mais nada a oferecer para você! Sete anos se passaram, a vida continuou sem você e ele seguiu em frente. Não acho que há mais algum lugar para você ao lado dele!  

Com um suspiro, Juno desistiu. Apenas desistiu. Não havia mais o que pudesse dizer e não queria dizer mais nada. Só restava ir embora.  

Então, sem sequer olhar a antiga amiga nos olhos, estendeu o pequeno embrulho que carregou o dia inteiro.  

— Só queria te dar isso. — sussurrou, controlando o pranto engasgado. — Espero que goste. Feliz aniversário.  

Com as mãos vazias e o rosto marcado por lágrimas teimosas, Juno deixou a sala, saindo pela primeira porta que sua visão embaçada encontrou.  

Do lado de fora, o mundo parecia diferente. A festa prosseguia, com todas as risadas, brincadeiras e música alta. As pessoas dançavam, bebiam e conversaram, completamente alheias a qualquer outra coisa. Estavam ocupados demais se divertindo para prestar atenção na mulher que se afastava, escondendo o rosto entre as mãos.  

Estava na hora de ir. E sabia que essa hora, em algum momento, chegaria. Por mais que cada parte de seu ser implorasse, mesmo com todos os seus sentimentos relutando, exigindo que ainda tentasse insistir, ela aceitou que deveria ir.  

Juno não olhou para trás. Recusou a se virar, uma última vez, para procurar por Nirav. Dele, não teria mais nada, nem a despedida. Era mais fácil assim. Estava disposta a desistir dele, se era o melhor a se fazer. Afinal, já havia desistido uma vez, então não teria problemas em desistir de novo.  

Como um acalento, o vento a recebeu. A saia de seu vestido rodopiou, agarrando em suas pernas, como antes também fizera. E seus cabelos se bagunçaram, mais uma vez. Ela não se importou. O toque daquele sopro secava as lágrimas de seu rosto, parecia quase como um carinho.  

No entanto, o que parecia um afagou, tornou-se grosseiro. O sopro do vento tornou-se rude, quase como uma ventania. Quando olhou para o céu, não encontrou vestígios de chuva. Era só uma ventania qualquer, que correspondia a angústia dentro de seu ser. E com a ventania, veio uma voz. Uma voz distante, antiga, quase apagada.  

“Juno”, um homem chamou seu nome. Uma voz grossa, porém, falha. Não era de ninguém que conhecesse atualmente. Era a voz da sua memória.  

Ela não olhou para trás, continuou a andar, tentando ignorar quem a chamava. Só queria chegar em casa, mas quando deu por si, parecia não estar mais no lugar de antes. Não era mais o bairro tradicional e sofisticado da cidade pequena, era uma viela qualquer em uma cidade grande. Agora, as ruas estavam escuras, presas no tom cinza dos prédios ao redor, o chão estava mais úmido.  

Era estranho que ainda se recordasse daquela noite de forma tão vívida. De tantas memórias, era assombrada logo por aquela.  

“Juno, por favor”, o homem insistiu. Estava mais próximo. Era a voz de Nicholas. “Por favor, me perdoe.”  

Como uma tatuagem, o rosto dele permanecia marcado no fundo de sua mente. Uma figura lamentável que gostaria tanto de esquecer. E lá estava seu rosto estreito, os olhos azuis, a barba falhada e os cabelos desgrenhados. Naquela noite de outrora, em especial, parecia mais velho. Seu semblante era desesperado, marcado por algumas lágrimas. Juno nunca pensou que Nicholas fosse capaz de chorar.  

Ele havia se aproximado sorrateiro como um rato. Escondido nos becos escuros, armando o bote para abocanhá-la. Era algo que gostava de fazer. Somente quando conseguiu medidas protetivas, se viu livre do terror de estar vigiando todos os lados. E, mesmo assim, ele ousou reaparecer como antes.  

“Está me pedindo perdão?” lembrava de perguntar, tentando manter distância do homem. Não estava com medo, só estava com raiva. Raiva por ele ter insistido em se reaproximar, teimando em procurá-la de novo, ousando pedir perdão. Uma ira tão grande que sentia não ser capaz de se controlar.  

“Eu sei que é o mínimo que posso...”  

Como era falso. E ela sabia. Não foi à toa a cusparada que deu no chão, desprezando suas palavras. Algo que nunca tinha feito. Poderia xingar, gritar, quase espernear. Cuspir perante as palavras de alguém era um ato que havia guardado somente para Nicholas.  

Mesmo agora, ainda conseguia saborear o gosto da ira em sua boca. Como tornou-se cada vez mais palatável, abrindo espaço por sua garganta, exigindo ser escarrada contra a face dele. Se não o fizesse, morreria engasgada.  

“Eu não tenho perdão para você. Eu até poderia dizer que sim, mas seria uma mentira. Para você, eu não tenho sequer minha pena para oferecer. Eu só desejo o pior. Eu gostaria que você morresse, para que sua existência fosse extinguida de uma vez por todas. E que isso doesse. Não ia me importar de ver você sofrendo, depois de tudo o que você fez para mim. Seria o mínimo.”  

E falso como era, ele ria. Ele não se contentava e ria. Lembrava de encarar a farsa daquele pedido de perdão se reduzindo a cinzas, bem em sua frente. Ele ria de suas palavras. E o riso escarnecedor ainda corroía cada parte de seu corpo, apesar de ser nada além de uma lembrança de anos atrás.  

“Sabe o que me conforta? O que me conforta é saber que vai morrer sozinha. Você nunca vai ter ninguém ao seu lado, porque você é incompetente o suficiente para merecer o amor de alguém.”  


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Notas finais do capítulo

Ah, Hester... )=

Agora dá pra entender os receios da Juno. O que ela tanto temia aconteceu.

Não diria que dá para julgar tanto a reação da Hester, afinal não tem como ela adivinhar. Algumas coisas poderiam ter sido evitadas antes, mas o receio que ainda persegue a Juno acaba impedindo ela de consertar as coisas. E nisso também não dá para julgá-la.



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