O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 18
∾ Continuamos tentando descobrir quem deveríamos ser.


Notas iniciais do capítulo

Olá, mais uma vez, sejam bem-vindos. E olhem só quem está de volta! Sentiram saudades do nosso menino (já crescido) Nirav? Pois bem, Nirav está entre nós.



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A tela do celular piscava. Acendia por um momento, revelando a chamada que fazia o aparelho vibrar sobre o braço do sofá. Tornava a apagar, dando um segundo de alívio. E continuava piscando, acendendo e apagando, até a chamada se perder. Então, havia o silêncio que preenchia toda a casa ao redor. Um silêncio que durava pouco. 

A casa estava imersa em um escuro aconchegante, quebrado apenas pela luz do dia, pálida como um fantasma. Entrava pela janela aberta, junto com o vento, sendo projetada na parede de forma opaca. Também havia o silêncio, se ignorasse o celular tocando sem parar. Cada cômodo parecia adormecido, esquecidos atrás de cada porta. Nem a televisão velha da sala emitia algum ruído, jazia desligada sobre um cômodo, quase como um objeto de decoração. 

Do lado de fora, a manhã ainda se arrastava, embora já avançasse para o meio do dia. O clima frio podia ser um tanto traiçoeiro, pois fazia todas as horas parecerem a mesma. O dia era sempre cinza, com um traço pálido do sol tímido, coberto de nuvens escuras e um ar gélido e imutável. Não importava o horário; nove da manhã ou duas da tarde. Tudo era igual naquela estação. 

Um suspiro cansado escapou da boca do homem junto com a fumaça grossa do cigarro, assoprada para longe. Ele observava a tela do celular acender e apagar, em um ciclo vicioso, sem intenção nenhuma de atender quem ligava, até que a chamada se perdesse e conseguisse alguns instantes de paz. 

Resquícios de preguiça permaneciam a invadir seu corpo seminu, embora estivesse acordado desde muito cedo, fazendo-o se espreguiçar no sofá, onde dormira nos últimos dias. O tronco desnudo se arrepiava com o toque do ar gelado que entrava pela janela, mas ele não parecia se importar. Gostava do frio, do seu toque hostil e agressivo, de como doía até os ossos. 

Os cabelos escuros e cacheados, já não tão compridos quanto antes, balançavam de acordo com o vento, bagunçados pela noite anterior. A barba espessa, ainda que bem aparada, contornavam seu rosto mais velho e mais sério. Já não havia mais um semblante de rapaz em nenhuma parte daquela face. Mesmo seus olhos tinham um brilho mais sóbrio. Apesar disso, Nirav não estava tão diferente do que sempre foi. 

Ele tomou mais um trago do cigarro, impaciente. Não era um hábito do qual se orgulhava, que adquiriu há alguns anos e tentava se convencer de que não era tão frequente, apenas quando estava perdido demais em pensamentos, sem capacidade própria para retornar. E esse era um desses momentos.  

Quando o telefone tornou a vibrar, revelando o nome de uma figura há muito desaparecida, Nirav não teve escolha, senão ignorar mais uma vez. Era seu pai quem ligava. 

As ligações começaram há um bom tempo, não se recordava bem quando, e estavam cada vez mais recorrentes. Em nenhuma dessas vezes, Nirav foi capaz de atender e descobrir do que se tratava, embora suspeitasse. Imaginou que isso seria o suficiente para fazê-lo desistir, porém August continuava a tentar, ligando uma vez atrás da outra, implorando pela atenção do filho, que continuava a ignorá-lo. 

Nirav desconfiava que havia o encorajamento de sua própria mãe por trás daquelas tentativas. Sempre soube que era do desejo dela reunir os dois de alguma forma, ela nunca escondeu o descontentamento em ver pai e filho brigados e separados. Nirav entendia suas razões e as respeitava, só não conseguia corresponder, pois as memórias que o nome de August tinha atreladas a si, pareciam difíceis demais para superar. 

Nunca se tratou apenas de uma briga entre um pai e um filho, como era de costume em toda e qualquer família. Quando se tratava de August, as situações eram mais complicadas por conta da pessoa que ele era. Não era uma pessoa fácil e dificilmente estaria diferente. 

Desde pequeno, Nirav se lembrava, eram extremos opostos. Simplesmente não conseguiam se entender por serem tão diferentes um do outro. O que August esperava do filho, Nirav não respeitava no pai. Os embates começaram ainda muito cedo e tornaram-se cada vez piores, cada vez mais rápido. O que antes era um conflito de interesses e diferenças, acabou por se tornar quase uma disputa de território. 

Não se importava em ser o alvo de August, pois não demorou a perceber que podia competir de igual para igual. No entanto, o pior era com sua mãe. E o alvo favorito de seu pai sempre foi sua mãe. Não só de um jeito físico, não apenas para se impor, também por saber que afetava Nirav. 

Além de tudo, August era como um fardo para Adhira. Incapaz de arrumar um serviço duradouro, sempre demitido por seu comportamento agressivo e improdutivo, estava sempre às custas do esforço da esposa, consumindo os frutos de seu árduo trabalho tal qual um parasita. Prometia-lhe o mundo em novas propostas onde gastava todo o dinheiro e retornava sempre sem nada e, pior, bêbado. 

Então, as situações escalavam rápidas demais. Adhira se chateava, cansada demais por ser o único alicerce de uma família desestruturada. Samar, seu avô, tentava ajudar a voz silenciada de sua filha. E August se estressava, tornava-se agressivo. Era quando Nirav precisava se impor, tendo de amadurecer muito antes do seu tempo. 

Nirav perdeu o medo de enfrentar o pai, mesmo quando bebia. Já não acreditava mais em suas ameaças e não temia mais o peso de sua mão. Nunca foi um rapaz agressivo, sempre odiou levantar o tom de voz, mas o faria se fosse preciso para proteger quem amava. E com seu pai sempre foi preciso, até o dia o em que August decidiu abandoná-los. 

Pouco se lembrava daquela fatídica madrugada. Algumas vezes se recordava de seu pai fugindo na escuridão, sem querer ser visto como o covarde que era. Outras, lembrava-se de discussões antes de sua partida. Nenhuma dessas memórias pareciam confiáveis, Nirav era jovem demais na época e já fazia anos. No entanto, havia uma única, real lembrança, que jamais esqueceria. A última coisa que seu pai lhe disse antes de partir. “Você não é meu filho”. E Nirav até gostaria que fosse verdade. 

O cigarro se apagou entre seus dedos, extinguindo-se em miseráveis cinzas ainda quentes. Ele pareceu não notar, pois permanecia com a atenção presa ao celular, encarando-o como se o desafiasse, esperando seu próximo movimento como em uma disputa. Parecia apostar consigo mesmo quando a ligação seria perdida, juntando-se a inúmeras outras em seu registro, apenas como lixo eletrônico. Pareceu levar uma eternidade até que o silêncio retornasse. Então, o celular acendeu uma última vez para a surpresa dele. A caixa postal havia sido acionada. 

Com o celular em mãos, Nirav percebeu-se ansioso. Era a primeira vez que acontecia. Estava intrigado com a notificação, sem saber o que esperar do recado que havia sido deixado. Até tentou adivinhar as palavras de seu pai, montadas em algum tipo de remorso atuado, mas não conseguia ouvi-las dentro de sua cabeça, como se fossem impossíveis demais para serem sequer cogitadas. Logo, o que restou foi ouvi-las, matar a dúvida que estava o matando. E não havia nada. Tudo o que escutou foi a respiração pesada de seu pai. Não havia uma palavra, uma insistência que fosse. Nem mesmo o som de sua voz. Não havia nada. 

Sentiu-se um completo tolo por esperar qualquer coisa. Sentiu-se pior por pensar ter tido alguma vã esperança. Era inútil ter qualquer expectativa sobre aquele homem. Era August, seu pai abusivo e covarde. O que poderia esperar dele? No fim, seria capaz de cobrar um perdão de Nirav como uma obrigação de filho para com pai e ainda se revoltaria por não o obter. 

Ele meneou a cabeça, aborrecido, olhando para o celular. Não precisava mais se irritar com coisas de outra época, longes demais para serem tocadas, irreparáveis demais para serem remoídas. Já tinha trinta anos, era crescido e velho o suficiente para saber que o passado estava além do seu controle. E o presente requeria mais atenção. Havias outras coisas e muito mais com o que se preocupar para se deixar assombrar pelos fantasmas antigos de outrora. 

Agora, era um homem mais velho, com responsabilidades o suficiente para tentar impedir que sua mente continuasse a se perder em nostalgias e memórias desnecessárias. E era cansativo, ele só nunca reclamava. Desde mais novo, descobriu que gostava de se manter ocupado. E foi seu trabalho árduo, quase excessivo, que o fez chegar no ponto em que estava. 

Após a faculdade, a situação não foi das mais fáceis e o receio de desemprego era como um constante vilão em sua jornada. Mesmo tendo experiência e boas recomendações em sua área, sempre teve de se provar duas vezes mais que seus antigos colegas de classe para conquistar seu espaço. E quando a chance apareceu, prometeu não a deixar escapar. E com toda sua força de vontade, lutou para que valesse a pena. 

Era um emprego exaustivo e um tanto repetitivo. Ocupava boa parte da sua semana e ainda consumia horas extras. Exigia um certo nível de concentração que cansava sua vista. Precisava ser sempre perfeccionista e detalhista. E apesar de todos os contras, a programação era uma de suas melhores amigas.  

No início, precisava apenas manter algumas plataformas funcionais, servindo manutenção sempre que necessário. Depois, expandiu para os bancos de dados que sempre gostou. Agora, também vendia serviços independentes para outras empresas. 

Demorou até que pudesse ver os frutos de seu trabalho serem colhidos, mas, quando deu por si, não estava apenas se mantendo, também estava criando uma carreira estável, garantindo uma renda além de estável, podendo bancar a si e a sua mãe, que conseguiu aposentar-se. Já não havia mais empréstimos, mensalidades ou financiamentos a serem quitados. Não precisavam se preocupar tanto com o fim do mês. Era uma vida estável, ainda que trabalhosa. 

E entre toda a ocupação, trabalho e responsabilidade, Nirav encontrou tempo para consertar a si próprio. Sua vida pessoal continuava agitada pelos mesmos amigos de sempre, cujo quais podia recorrer quando necessário, tanto em momentos bons quanto ruins. E não precisou de muito tempo para que a vida amorosa começasse a despertar de novo e encontrar novos caminhos. 

Era um homem feito, com uma carreira sólida e uma vida estável. E, pelo que se lembrava, não precisou de seu pai para atingir nenhum de seus objetivos. E não precisaria agora também. Ele era apenas um fantasma, que havia deixado de perturbar o sono quando Nirav ainda era um garoto. Não iria tornar a assombrá-lo. E, se dependesse de Nirav, seu pai continuaria sendo apenas um fantasma. 

O estrondo da porta sendo aberta o puxou para a realidade, longe do celular que, agora, jazia apagado sobre o sofá. Do vão claro, surgiu uma mulher com diversas sacolas na mão, falando sem parar. Ele não tardou em ir ao encontro dela, com um sorriso no rosto, para ajudá-la com o peso. Porém, antes precisou se livrar do cinzeiro e dos traços de seu cigarro para evitar o esporro. Afinal, era sua mãe que acabava de chegar. 

Era mais baixa, tinha o corpo redondo e pele tão marrom quanto a dele. Seus belos cabelos pretos estavam presos em uma trança comprida, que percorria seus ombros pequenos. Seu rosto oval trazia marcas da idade, mas não escondia a bela mulher que era. Os olhos grandes e marcantes tinham tom de castanho, o nariz longo e grosso junto com a boca pequena e os lábios delineados. Eram até bem parecidos, principalmente os sorrisos, convidativos e radiantes. 

— As ruas estão lotadas! Nem parece a mesma cidade de antes. — ela disse, aceitando a ajuda do filho para carregar as sacolas. — Sabe, sinto falta de quando Florencia era apenas uma roça grande. 

Ele riu do exagero dela, sem responder. Gostava de ouvi-la falar, sem interromper, pois, era o que ela adorava fazer. A casa se enchia com o som de sua voz, quase criando vida. 

As visitas de Adhira tornaram-se cada vez mais frequentes, para a satisfação de Nirav, que não gostava de ficar muito tempo sem vê-la. Entretanto, visitá-la em outra cidade podia ser complicado, por conta do seu emprego. Agora, já fazia uma semana que ela estava em sua casa, apesar de desconfiar que ela já se preparava parar partir. 

Suas visitas nunca demoraram muito. Na maior parte das vezes, Adhira ficava apenas por um fim de semana. Continuava a ter responsabilidades com seu avô, que parecia resistir com teimosia ao tempo. E, não obstante, também arrumou um novo namorado. 

— Onde estava? — ele perguntou, apoiando as sacolas sobre a bancada da cozinha, inspecionando uma por uma. 

— Comprando comida para o almoço. Devo ter ficado mais de hora na fila do mercado. — ela começou a desempacotar as compras, separando o que usaria e o que guardaria. 

— Se não gosta da minha comida, é só falar. 

Adhira deu um riso nasal, meneando com a cabeça. 

— Sua comida é melhor do que eu esperava, devo admitir. — ela respondeu, embora ele não soubesse se era um elogio ou uma brincadeira. Mesmo assim, riu. — Você só precisa parar de comer fora. É mais prático, eu sei, mas é menos saudável. 

Ela começou a se preparar para começar a cozinhar, sem aceitar ajuda do filho, que apenas permaneceu debruçado sobre a bancada, escutando o que tinha para contar. Comentou desde os preços dos produtos até as pessoas que conheceu na fila do caixa. Nirav manteve o sorriso no rosto, apreciando. Ela só gostava de falar, passando de um assunto ao outro, sem intervalo. Era um contraste que adorava. Ele havia se tornado mais reservado, preferia ouvir enquanto ela preferia falar. 

— Não sabe como sinto falta do calor. Essa cidade não é a mesma sem um dia ensolarado, mas o máximo que fica é abafado. — reclamou, lavando os legumes que havia comprado. — Vou ser sincera com você, não vejo a hora de ir embora para minha casa. 

— Não precisa usar o clima como desculpa. — implicou, olhando para ela com desconfiança. — Pode dizer que está com saudades de Juan. 

Ela riu, envergonhada, balançando a mão no ar, depois levando ao rosto para cobrir o rubor. O mínimo comentário ou insinuação sobre seu namoro era o suficiente para fazê-la corar como uma jovem moça ingênua. E Nirav adorava provocá-la, só para vê-la daquele jeito tão descontraído. 

— Não está velho para ter ciúmes de sua mãe? — ela devolveu, fazendo-o rir desconcertado. 

— E quando vai trazê-lo para cá? 

Nirav teve a chance de conhecê-lo em uma de suas visitas à casa de sua mãe. Era um homem simples, com a idade que equiparava a de Adhira, e também ocupado com o trabalho. No início, teve certo receio por conta de tudo o que ela sofreu, mas não tardou a simpatizar com o homem. Estava satisfeito com ele desde que cuidasse bem de sua mãe. 

— Estávamos planejando vir para o casamento de seus amigos. — contou ao cortar os legumes. — O problema é que eles nunca definem a data. Começo a desconfiar que não vão se casar coisa alguma. Quem muito enrola, nada faz! 

— Não vai fazer diferença, eles já são praticamente casados. 

— A vida inteira! — ela se admirou com um suspiro, parando por um instante, concordando com as palavras de seu filho, parando para analisá-las. — Lembro desses dois tão novinhos e já tão apaixonados. Antes eu ficava preocupada, sabe, estarem tão investidos desde tão cedo... Agora, não consigo imaginar um sem o outro. Já estava na hora de se casar mesmo. Eles já moram juntos há quanto tempo? Nossa, parece que eles estão juntos desde sempre! 

Ele apenas concordou com a cabeça, sem nada dizer. Era estranho pensar que seus amigos iriam se casar, por mais óbvio que soasse quando se tratava de Hester e Theo. Porém, era como uma confirmação da vida adulta. Como sentir os anos que se passaram de forma quase palpável. Por um instante, sentiu-se mais velho do que deveria. 

— E quanto a você? — Adhira questionou, levantando o olhar da comida para o próprio filho, que se fez de desentendido. — Quando vai se casar? E me dar netos? 

Ele se recusou, meneando a cabeça com avidez, olhando para a mãe com reprovação. Odiava aquele assunto. 

— Você sempre tem que fazer isso ser sobre mim? — ele ergueu os braços em confusão, além de chateação. 

— Talvez porque já esteja na hora, meu filho. 

— Mãe... 

— Você já tem trinta anos, Nirav. — ela o alertou com tom sério. — Tem uma casa própria, um emprego fixo e uma vida estável. E melhor, tem uma namorada perfeita. O que falta? 

Ele suspirou, aborrecido, se recusando a insistir no assunto. Por isso, se afastou do balcão e voltou para a sala para fugir do assunto. No entanto, foi seguido pela sua mãe, que deixou a comida cozinhando sem supervisão por um instante. 

— Você não vai ser jovem para sempre, meu filho. Precisa ter alguém com quem viver, para amenizar o peso do tempo. Digo por experiência própria. 

— E eu preciso me casar para ter isso? — ele coçou a barba e depois bateu a mão sobre a coxa direita, em sinal de aborrecimento. — Olha, eu não estou preocupado com isso. Você também não deveria estar. 

— Mas eu tenho certeza de que Alice está! — respondeu, insistindo com teimosia, sem recuar diante da esquiva do filho. 

Ele a olhou com reprovação por tocar em um assunto que sequer perdia tempo de discutir com sua própria namorada. Se ele não tinha coragem de fazer tais cobranças, então não concordava que ela se sentisse nesse direito, ainda que fosse sua mãe. 

Alice era alguém recente em sua vida. Embora a conhecesse por anos, através do trabalho, o relacionamento estava desabrochando. Demorou até conseguisse aceitar um relacionamento fixo, portanto, a última coisa que queria, eram cobranças criando conflitos desnecessários. 

Antes que pudesse tentar explicar qualquer coisa que Adhira não iria dar ouvidos, a conversa foi interrompida pelo toque de seu celular. O som irrompeu por todo o ambiente com uma vibração agressiva, obrigando os dois a se calarem para dar atenção ao aparelho.  

Ao ler o nome de August na tela, mais uma vez, Nirav não resistiu em trazer o assunto à tona. Se ele tinha seu número, era por conta de Adhira. Não gostava de confrontá-la, só não conseguiu evitar. 

— Deveria mandar ele desistir. — sugeriu, estendendo o celular até ela, para que pudesse ver quem ligava. 

Adhira suspirou, recuando na postura autoritária para uma mais flexível, reconhecendo a sensibilidade do assunto. Nirav se ergueu, indo em direção a janela, sem esperar por resposta dela. 

Por um momento, teve vontade de fumar outra vez, sentindo a mente se esvaziar ao contemplar o ambiente externo. As ruas estavam, de fato, lotadas, nem o tempo frio parecia fazer as pessoas desistirem. Sob um céu nublado, com um vento insistente, elas continuavam a caminhar de um lado para o outro, imersas em seus próprios pensamentos ou em conversas.  

— Você deveria atendê-lo. — Adhira aconselhou, colocando um fim precoce em seu momento de contemplação. — Escutar o que ele tem para falar. 

Nirav retornou da janela, devolvendo a atenção para sua mãe, demonstrando em seu semblante o quão infeliz estava com a situação. 

— Ele nunca quis escutar o que eu tinha para falar, por que eu preciso fazer isso por ele? — embora estivesse irritado, sua voz permanecia baixa e calma, mesmo assim, conseguia expressar a insatisfação, que não agradou sua mãe. 

— Porque, apesar de tudo, ele ainda é seu pai! 

— Engraçado, por anos ele simplesmente tomou a decisão de não ser meu pai. — retrucou, impondo sua discordância. — As coisas não funcionam assim! Ele não pode desistir da gente e depois voltar atrás como se nada tivesse acontecido! 

Adhira respirou fundo, acenando para o filho, de certa forma concordando com ele, entretanto, sem desistir de continuar o assunto. Nirav gostaria que ela tivesse desistido de convencê-lo. 

— Eu entendo que você tenha raiva dele, mas já passou da hora de vocês se entenderem. Vocês dois são adultos, crescidos o suficiente para pôr as diferenças de lado! — ela argumentou insistindo, contudo, ele estava irredutível, negando veemente qualquer possibilidade. — Nirav, dê uma chance! Ele já está velho, daqui a pouco pode ser tarde demais. 

— Só porque ele quer perdão na beira da morte, não significa que tenha se redimido. — declarou, já desgastado pelo assunto. 

Contudo, sua mãe não desistiu. Aproximando-se, ela tocou seus braços com afeto, passando as mãos por sua pele de um jeito maternal. Em seus olhos, Nirav notou o peso daquele assunto, fazendo-o se sentir culpado.  

Não queria discutir sobre seu pai, principalmente com sua mãe. Não deveria ser fácil para ela também, imaginava. Entretanto, era algo que Adhira sempre insistia e ele sempre discordava. Para ela, a separação entre o pai e um filho parecia intolerável. Já Nirav, que havia aprendido a conviver com a ausência do pai, não fazia questão alguma de tê-lo por perto. 

— Meu filho, pense bem, pode ser a última chance. Depois que ele falecer, não haverá outra oportunidade, então vai ser tarde demais para se arrepender. — aconselhou, passando a mão por seu rosto com carinho. — Eu sei que é difícil para você, também foi para mim, mas perdoar é tirar o peso das costas. 

Nirav abaixou a cabeça, sentindo o afago materno. Entretanto, sua resposta não foi outra. Ele continuou a recusar. 

— Eu te admiro muito por ter sido capaz de perdoá-lo, mesmo depois de tudo o que ele fez, mas não sei se eu consigo. 

— Eu sei que consegue, meu amor. É só tentar. 

— E se eu não quiser tentar? 

Ela suspirou, dando-se por vencida. Então, beijou seu rosto como um último apelo. 

— Só me prometa que vai pensar sobre o assunto. 

— Tudo bem. Isso eu posso prometer. 

Aliviado pelo fim da discussão, Nirav a recebeu em seus braços, abraçando-a com força, agradecido pela compreensão dela. Não importava quantas vezes discutissem, pois eram mãe e filho, no fim, estavam sempre dispostos a entender um ao outro. 

No fundo, era bom tê-la ali quando se tratava de assuntos assim. Afinal, era a sua mãe. E o entendia melhor do a maioria das pessoas, às vezes, até melhor do que si mesmo. Era ela a redentora de seus sentimentos. Sua mãe, que guardava suas alegrias e angústias, receios e conquistas. E também conhecia seus segredos, até aqueles complicados demais. 

Segredos que ainda retornavam e quando o faziam, não estavam sozinhos. Neles, estavam atrelados memórias fortes o suficiente para deixar Nirav aturdido. A única parte de Nirav que mais ninguém tinha acesso, nem sua própria mãe, Adhira. 

Eram memórias que, de quando em quando, retornavam a superfície. Memórias intactas, que queria ter enterrado. Entretanto, nem sequer o tempo parecia tê-las tocado. Não estavam embaçadas ou arranhadas, na verdade, estavam tão vívidas que quase podiam ser tocadas. E, várias vezes, ele quis tocá-las, revivê-las. Porém, quando o fazia, encontrava-se longe demais da realidade. Então, só restava a sensação da perdição. Como se ainda houvesse uma parte de si mesmo perdida. 


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Notas finais do capítulo

Estava com saudades dele, não vou mentir.

E nossa, o que dizer de dona Adhira, apareceu tão pouco e já conquistou tanto?

Bem, podemos traçar um paralelo entre o relacionamento dos pais de Nirav com o relacionamento que a Juno teve. Como será que a balança iria pesar para ele ao ter essa noção?



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