O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 19
∾ Entre tantos outros sorrisos, eu permaneço assombrado pelo seu.


Notas iniciais do capítulo

Olá, mais uma vez!

Bem, como dizem que quem é vivo, sempre aparece, esse reencontro está quase iminente. Quase como se nossos personagens estivessem pressentindo...



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Nirav olhou o relógio prateado de pulso, checando as horas. Já estava perto de anoitecer. O céu também entregava o horário, transformando, aos poucos, a tonalidade pálida em tons de roxo e azul. O sol tímido já se escondia atrás dos morros e pouco se via do seu brilho desbotado de inverno. E, por isso, o ar gélido do fim da tarde começava a doer na ponta dos dedos desnudos das mãos. Não havia vento, as copas das árvores, os cabelos dos transeuntes, a poeira do chão, tudo estava intacto, imóvel. Entretanto, havia a presença gelada do clima, com um toque tão gentil quanto impiedoso. 

Ele respirou fundo, fechando os olhos, apreciando o ar refrescando seu rosto. Era agradável, por mais frio que fosse. O toque gelado espalhava por sua face, entranhando em sua barba e deslizando por seus cabelos, fazendo alguns cachos balançarem suaves. Era como mergulhar o rosto em água gelada e também como respirar um ar mais puro. 

O corpo ressentido reclamou diante do breve momento de meditação. Estava cansado, a noite mal dormida dava sinais, embaçando seus pensamentos, desfocando sua atenção e causando bocejos frequentes. Tinha tido sonhos esquisitos em seu sono conturbado. Encontrou rostos familiares, que há muito não os via. Faces com olhos brilhantes e sorrisos exuberantes. Semblantes de fantasmas antigos que assombravam seu presente. Não obstante, outra de suas assombrações continuava insistindo, sem parar, ligando uma vez atrás da outra, sem se importar em ser ignorado, tentando vencê-lo pelo cansaço. Porém, quanto mais seu pai ligava, mais Nirav encontrava motivos para não o atender. Em razão disso, manteve seu celular estava desligado, tentando fugir de qualquer emboscada, por estar cansado demais para lutar contra e ainda mais irritado para encará-la. 

Ao seu redor, pessoas pareciam tão introspectivas quanto ele. As ruas estavam movimentadas, embora tão silenciosas quanto estaria um quarto vazio. Quase estranho, considerando a quantidade de pessoas que passavam por ele, de um lado para o outro. A maior parte tinha o rosto enfiado em cachecóis ou gorros, com as mãos encobertas por seus bolsos, escondidos em suas próprias mentes e pensamentos, como se fosse difícil demais ser expressivo em um clima tão inóspito. E por isso, o silêncio. Fora os veículos incessantes, as pessoas estavam quase em total silêncio. 

Ele não estava tão diferente. O casaco grosso, de lona preta e gorro de camurça, com a calça verde escura e sapatos fechados, o fazia se encaixar bem no cenário urbano de Florencia. No entanto, recusava-se a ficar escondido em seus pensamentos, uma vez que eram traiçoeiros demais. Não queria lembrar de seu pai. E não queria lembrar do sonho. Então, tentando fugir de si mesmo, olhou ao redor, procurando a mulher que, até então, estava ao seu lado, ansiando pelo seu retorno para que pudesse escutar sua voz e esquecer-se de todo o resto. 

E lá estava Alice, retornando em sua direção enquanto carregava um copo quente de café expresso entre os dedos. Tão alta quanto ele, se destacava entre os demais pedestres, vestindo um sobretudo escuro e botas marrons, que combinavam com a calça. Seus cabelos tingidos de vermelho acobreado estavam disfarçados por uma touca de crochê, apenas sua franja reta era visível, cobrindo sua testa. O rosto pálido, avermelhado pelo frio, exibia um semblante amigável, porém, tímido. Tinha olhos pequenos e claros, nariz arrebitado e boca pequena, que se abriu em um sorriso encantador ao encontrar Nirav a esperando. 

— Tem certeza de que não quer um? — ela perguntou, com sua voz rouca, mostrando o copo fumegante. — Está tão gostoso. E tão quente. 

Ele agradeceu, mas recusou com a cabeça. Aceitou o braço dela no seu, aconchegando o corpo dela bem próximo para então retomarem a caminhada. Embora não fosse um dia agradável para um passeio, era bom estar na companhia dela para espairecer a mente. 

Observando-a a assoprar o líquido inúmeras vezes antes de tomar um pequeno gole e, ainda assim, reclamar de queimar a língua, Nirav não controlou um riso. 

— Por que pedir um café tão quente se não consegue beber? — implicou, só para vê-la revirar os olhos e ignorá-lo de propósito. Quase nunca cedia às suas implicâncias por não conseguir retrucar a altura, contudo, suas feições irritadiças eram impagáveis. 

Estavam caminhando desde o início da tarde, quando Nirav ligou para que pudessem se encontrar. Queria um momento para distrair a cabeça de pensamentos que continuavam retornando à superfície, insistentes. Ainda assim, ao lado dela, não era capaz de ignorá-los e, de quando em quando, sentia que estava perdendo a si mesmo outra vez. Então, precisava se esforçar para voltar, sem que ela percebesse. 

— E a sua mãe? — Alice perguntou após tomar mais um gole generoso do café. — Poderíamos fazer algo juntos mais uma vez. 

— Você sabe, já está querendo ir embora. — disse, passando a mão esquerda sobre o rosto, coçando a barba. — Agora que está namorando não quer saber de outra coisa. 

Alice riu, olhando para seu rosto com uma expressão atrevida. 

— Ela não está errada. — arqueou as sobrancelhas. — Filhos só dão preocupação e dor de cabeça. Namorados dão outras coisas mais interessantes... 

— Sabe que estamos falando da minha mãe, não é? — ele devolveu o olhar, franzindo o cenho, fazendo-a rir. 

A antiga estação ergueu-se diante deles, resistindo ao tempo. Na verdade, estava reformada, há alguns anos transformada em um bar com uma temática vintage, que a modernizou, preservando a essência do lugar. Seus tijolos continuavam vermelhos, agora reconstruídos e pintados. E os bancos permaneciam no mesmo lugar, de frente aos trilhos que continuavam a brilhar entre os cascalhos, embora não houvesse trem algum para trilhá-los. 

 A praça, entre eles e a velha construção, continuava a mesma, ao contrário. Os postes antigos dividindo espaço com árvores ainda mais velhas. O pavimento carcomido tinha seu charme, entregando a anosidade de Florencia. E, naqueles bancos desbotados, ambos se sentaram juntos, aproveitando a vista e a companhia de alguns pássaros que sobrevoavam ao redor. 

Olhando em volta, Nirav percebeu uma estranha sensação de grande familiaridade. Como se estivesse vivendo um dia igual a outro, já vivido antes, mas não conseguia recordar. E estranho demais para tentar entender a sensação que já tomava proporções grandes o suficiente, sendo capaz de sufocar sua respiração por um momento. 

— E como vocês dois estão? — a voz de Alice o trouxe de volta, deixando-o aliviado. Ela terminava de beber o café. — Disse que tinham discutido, está tudo bem? 

Nirav suspirou, balançando a cabeça. Por um instante, não respondeu. Somente quando sentiu a mão dela na sua, entrelaçando os dedos nos seus, sentiu a necessidade de dizer qualquer coisa. Assim, disse a verdade: 

— Ela ainda insiste que eu dê uma chance ao meu pai. 

Não era a primeira vez que conversam sobre aquele assunto. E por mais que Nirav tentasse evitá-lo, continuava a voltar contra a sua própria vontade e ele parecia fraco demais para evitar. O que o irritava profundamente. 

Sentiu o olhar de Alice sobre si, já entendendo o que queria dizer. Gostaria de que não fosse ela a insistir assim como sua mãe, porém era tarde demais. 

— Acho que ela está certa. 

— Não é assim tão fácil, Alice. 

— Só acho que não custa nada tentar. — ela disse, balançando os ombros, com o olhar fixo em seu rosto enquanto ele olhava para frente. — Ele também está tentando. Deveria considerar isso. 

Impaciente, ele ergueu-se do banco, se desvencilhando dos toques dela, sentindo-se preso em uma constante de incompreensões. Odiava como continuavam a tratar do conflito como se fosse ele, o insensível. Não era apenas uma questão de tentar perdoar alguém por uma adversidade. O que seu pai havia feito por anos talvez não tivesse perdão. Isso não deveria fazer dele uma pessoa ruim. 

— Ele está tentando? Agora? — Nirav passou as mãos pelos cabelos, sem coragem de olhá-la. — Ele não parecia preocupado em tentar quando fez tudo o que fez, muito menos depois que nos abandonou. 

Dessa vez, Alice pareceu considerar o peso de sua decisão. Conhecia os conflitos com seu pai e os motivos da hesitação de Nirav. Ainda assim, sua resposta não pareceu tão empática para com a sua dor. 

— Tente para, pelo menos, tirar isso do caminho. Precisamos nos livrar de alguns assuntos o quanto antes ou nos assombram para sempre, como fantasmas. 

Ele estalou os lábios, fugindo do assunto que sequer queria ter começado. 

— Como se já não houvesse fantasmas o suficiente para me assombrar, ultimamente. — murmurou, mais para si do que para ela, pensando em um rosto diferente do seu pai. O rosto de seu sonho. 

— Desculpe, eu não entendi. — ela se levantou, indo em sua direção. 

— Nada, não disse nada. — ele tentou esboçar um sorriso ao tomar a mão dela, para continuarem a andar. 

Apesar do silêncio um tanto estranho, Alice não se deixou afetar, mantendo um clima agradável ao passeio. Não era do tipo que insistia em brigas ou conflitos. Ele sequer se lembrava de qualquer discussão de relação entre eles. Não só por ser um relacionamento recente, mas por simplesmente não terem motivo. 

Alice havia acabado de ser contratada como técnica de informática em uma das empresas que trabalhava, quando se conheceram. Era tímida, bem fechada, o que tornava difícil conquistar um meio tão predominado por outros homens. Foi tentando ajudá-la a se destacar, que se tornaram amigos. Pouco a pouco, a relação entre eles estava se intensificando, construindo-se em algo além.  

Alice era como um refúgio, quando tudo parecia desmoronar ao seu redor, podia estar com ela, então sabia que estava a salvo. Encontrou nela partes suas que se completaram de imediato. Identificou-se com seu silêncio íntegro, sua serenidade inabalável e sua personalidade distante, ainda que afetuosa. Encontrou na garota tímida e reclusa, uma mulher íntegra e séria, com princípios sólidos e postura admirável. Então, apaixonou-se por ela. 

Depois de tantas tentativas fracassadas de reencontrar o amor, colidindo de peito em peito, contentando-se com migalhas e recolhendo seus próprios pedaços, Nirav encontrou um espaço entre os braços de Alice, que podiam ser bem receptivos e calorosos às vezes. E estava grato por tê-la entre os seus também. 

Caminhando ao seu lado, ela fazia comentários esporádicos, observações sobre o cotidiano. E, por mais que estivesse injustamente alheio naquele dia, Nirav não conseguia ignorar sua voz, escutando sempre o que tinha para falar, esforçando-se em dar respostas interessantes. Em determinado momento, ela soltou de sua mão e adiantou-se até uma vitrine qualquer, apontando para um conjunto de faqueiro ao lado de outro de panelas. 

— O que acha? Seria um bom presente para a nova casa de Theo e Hester? — ela perguntou, alternando o olhar entre ele e a vitrine. 

— Ainda está cedo para pensar em presentes. — ele disse, observando pelo vidro. Havia se esquecido de que seus amigos, além de se casarem, iriam se mudar. Sentiria falta do antigo apartamento de Theo, embora talvez já estivesse mesmo na hora de abandonar os gostos juvenis para algo mais maturo. — Eles sequer começaram a empacotar as coisas. 

Alice bufou, retornando ao seu lado ao envolver o braço esquerdo em sua cintura. Nirav a recebeu com um sorriso, passando o braço por seus ombros com afeto e depositando um beijo sobre sua touca. Juntos, caminharam até o contorno do quarteirão, onde se encostaram em um muro rústico de pedras. 

— Eu sei, é que estou ansiosa! — admitiu, apertando-se contra ele de modo confortável. — Quase não consigo acreditar que vão mesmo se casar. Eles são quase a confirmação de que o amor existe. 

Nirav a encarou, esboçando uma careta divertida e desconfiada. 

— Achei que eu fosse a sua confirmação de que o amor existe. — brincou, deixando-a sem graça. Foi capaz de ver suas bochechas pálidas se tornarem avermelhadas, demonstrando a timidez tão marcante dela. 

— Eu nunca acreditei muito em coisas como amor eterno ou “felizes para sempre”, sempre pareceu só coisa de conto de fadas, até conhecer a história deles. E aí, também encontrei você e... — ela abaixou o rosto, desviando o olhar, incapaz de terminar a frase. 

— Eu sei como é. — com um sorriso, ele concordou, admirando-a. — Poucas coisas na vida fazem sentido como esses dois. 

— Bem, eu acho que nós dois também fazemos bastante sentindo, não acha? —  Alice fez uma careta divertida. 

Nirav atuou um semblante pensativo, até mesmo pousando a mão sobre o queixo. Ela deu uma risadinha. 

— Deixe-me pensar... Talvez. — respondeu, fingindo incerteza. 

Ela o empurrou de brincadeira, afastando-o para o outro lado da calçada. Quando ele retornou ao seu encontro, ela o xingou baixinho, provocando-o. 

— Posso te fazer uma pergunta? — ela indagou, assim que a brincadeira terminou, esperando por sua confirmação. — Já pensou em se casar? Formar uma família? Talvez, ter filhos? 

— Está me testando? — ele perguntou, sarcástico, arrancando outro riso dela. 

— Quem sabe? — ela balançou os ombros. 

Nirav respirou fundo, prendendo o fôlego por um momento, antes de responder. Recordou-se das constantes discussões com sua mãe por conta disso, sabendo que não teria coragem de dar respostas tão diretas a Alice sem magoá-la. E a última coisa que queria era magoá-la. 

— Nunca parei para pensar na possibilidade, mas também nunca ignorei. — respondeu esquivo, porém, sincero. 

— Nirav! — ela chamou sua atenção, encarando-o com seriedade. — Não estou perguntando as probabilidades de se casar, estou perguntando se você quer. 

Ele balançou o rosto, de um lado para o outro, tentando pensar em qualquer resposta plausível que fosse rápida, no entanto, só acabou enrolando ainda mais. 

— Eu nunca pensei muito sobre isso, se acontecer... 

Alice o cortou com um arquejo afobado. 

— Como você é esquivo! — ela deu um sorriso sarcástico, um tanto incrédula com a atitude dele. — Você pode dizer que não, sabia disso, não é? 

Ele anuiu, um tanto envergonhado, abaixando a cabeça. 

— E quanto a você? — desconversou, sem passar despercebido. Na tentativa de mudar a atenção do assunto para ela, a abraçou por trás, mantendo-a presa entre seus braços. — Tem vontade de se casar? 

— Hm. — ela deu um riso nasal, meneando com a cabeça. Por fim, acolheu os braços que envolviam sua cintura entre suas mãos e encostou-se no corpo dele, atrás do seu. — Bem, depende do meu humor. 

— Como assim? — franziu o cenho, observando o perfil do seu rosto tão próximo. O cheiro dela era agradável. 

— Algumas vezes acordo querendo me casar na igreja, com direito a véu e grinalda. — respondeu com um sorriso. — Outros dias abomino a mera ideia do casamento como algo viável no mundo moderno. 

A risada escapou de sua boca, fazendo-o fechar os olhos para rir diante da resposta. Percebendo sua diversão, Alice também participou e continuou a falar: 

— Então, se você quiser, algum dia, quem sabe, fazer o pedido... 

A voz dela pareceu sumir quando ele abriu os olhos em direção à rua. Embora continuasse a falar, Nirav já não conseguia mais escutar o que dizia. Pouco a pouco, suas palavras tornarem tão difusas e abafadas, que ele se sentiu surdo. Assim como todo o resto do mundo pareceu tornar-se opaco e mudo conforme seus olhos encaravam a calçada do outro lado da rua. 

Precisou piscar algumas vezes, embora parecesse uma tarefa quase impossível. Era como se seu corpo se recusasse a piscar e correr o risco de perder o rastro da pessoa. Ou, pelo menos, da pessoa que achava que era. 

Não conseguia ver seu rosto direito, desaparecendo entre a multidão que transitava de para todos os lados, apenas a estranha sensação de familiaridade o atingia com tanta força que o fazia quase ter certeza. O corpo esguio, os cabelos ondulados, o relance do nariz afinado... 

Não, não poderia ser. Tentou se convencer de que estava apenas fantasiando. Era só um truque de sua mente cansada e sonolenta. No máximo, alguém parecido. Afinal, não seria tão diferente de outras mulheres. 

— Nirav? Nirav! — Alice o chamou, além de cutucar seu corpo. Quando retornou a si, percebeu que ela já não estava mais entre seus braços, mas diante de si. — O que houve? Você simplesmente desligou! 

Ele piscou seguidas vezes, obrigando-se a desviar o olhar da outra calçada, tentando focalizar a figura da mulher à sua frente. De repente, ela parecia tão estranha, desfocada e diferente. 

— Eu não sei, eu... — sacudiu suavemente o rosto na tentativa de apagar os últimos segundos de sua mente. — Pensei ter visto... Não é nada. Desculpe. 

Alice olhou para trás, em direção à rua, procurando qualquer coisa. Ele desejou que não tivesse feito isso. 

— O que você viu? 

— Nada, eu só me distraí. Não foi nada demais. — disfarçou, passando a mão sobre o rosto. 

— Você me assustou. — ela se aproximou de novo, analisando-o com meticulosidade. — Está tudo bem? 

— Sim, não se preocupe. — ele respirou fundo, tentando ignorar tudo ao redor, olhando apenas para Alice. Era o melhor ponto de referência que tinha. — Desculpe, eu não ouvi o que estava falando, pode repetir? 

— Bem, eu falei muitas coisas, nem sei por onde começar. — ela deu de ombros, confusa. 

Nirav a fitou, um tanto surpreso. Sentiu ter sido apenas alguns segundos de distração, quando, na verdade, sequer sabia quanto tempo se perdeu. 

— Desculpe. 

Ela suspirou, abanando as mãos em sinal de compreensão. 

— Estava dizendo que já está ficando tarde. Eu preciso ir. — suas mãos foram até o rosto dele, tocando sua barba com as pontas dos dedos. 

— Precisa mesmo? — sua voz parecia engasgada, quase falha. — Disse que queria fazer algo junto com minha mãe outra vez, por que não vem jantar conosco? 

Alice beijou seus lábios de forma breve, apenas os encostando por um instante. 

— Ah, eu adoraria, mas marquei de jantar com meus pais. Eles estão sempre reclamando o quão distante eu estou desde que comecei a morar sozinha. Preciso passar um tempo com eles. 

— Tudo bem, então. — respondeu, um pouco desanimado. — Quer que eu te leve até em casa? 

— Não, não precisa. Você está sem carro hoje. 

— Não me importo de caminhar. 

Ela sorriu, mas terminou recusando. Nirav teve de se esforçar para retomar a postura, sem deixá-la inquieta com sua oscilação de humor. 

— Sabe como é longe. Não precisa se preocupar. 

Por fim, aceitou a despedida, tomando-a em um abraço reconfortante e beijando seus lábios. Antes que ela pudesse escapar de seus braços, Nirav a puxou de novo, enchendo sua boca de mais beijos, até fazê-la rir. 

— Mande um beijo para sua mãe por mim. — foram suas últimas palavras antes de desaparecer entre as outras pessoas. 

Mais uma vez, Nirav olhou o relógio no pulso. Depois, olhou para o céu já bem escuro. Olhou ao redor. Estava sozinho, entre todas as outras pessoas, estava só. Então, tentando encontrar seu próprio caminho entre as ruas, sua mente pregou-lhe uma peça, obrigando-o a revisitar o sonho da noite passada. 

No início, era apenas um sonho, comum e confuso. Estava em algum lugar que não conhecia, cercado de outras pessoas misteriosas. Entretanto, entre todos as incógnitas, estava entre eles um rosto que reconhecia muito bem. Não conseguia vê-lo claramente, o sonho era como uma cortina de fumaça, embaçando tudo e todos. Mesmo assim, sabia qual rosto era e a quem pertencia. Os olhos grandes e expressivos eram da cor de avelãs e, toda vez que o olhava, brilhavam. O sorriso era exagerado, exibindo todos seus belos dentes. Não precisa de mais nada, apenas esses traços foram suficientes para reconhecer a pessoa de seu sonho. A mesma pessoa que jurou ter visto minutos atrás. 

Era possível que estivesse apenas projetando o rosto. Provavelmente, misturando a realidade com os sonhos, pois já fazia tanto tempo desde a última vez. Talvez por sentir falta, afinal era humano. Talvez por ser um humano falho e ainda desejar tanto reencontrar aquele rosto. 

Estava enganado, deveria estar, pois tantos anos se passaram. Era difícil que um rosto permanecesse imutável. Seria capaz de reconhecer, sim, mas até que ponto? Estava iludindo a si mesmo para tentar suprir uma necessidade ilícita, que o deixava culpado só por imaginá-la.  

E, no entanto, quando tornou a cruzar a rua, encontrou outra vez o vulto sinuoso, entrelaçando entre as pessoas, aparecendo e desaparecendo através dos demais corpos, como uma pessoa que quisesse ser seguida. Então, foi incapaz de ignorar e perseguiu-a. 

Estava tão longe e tão perto ao mesmo tempo. Atravessando os que estavam em seu caminho, tirando-os de sua frente como um obstáculo qualquer, sentia que quase podia alcançá-la. Entretanto, sempre que estendia a mão, não encontrava nada além do vácuo. Parecia estar em uma brincadeira infantil, cuja qual precisava capturar a presa que escapava do predador, sem nunca conseguir alcançá-la. Ela estava sempre dois ou mais passos à frente, deixando-o para trás, abandonando-o no meio da bagunça. Ele se sentia atrasado, lento, quase preso pelos pedestres que reclamavam de sua falta de jeito. Era puxado para trás, empurrado para longe de seu objetivo. E, ainda assim, quando olhava para frente, ali estava a figura que tanto perseguia, ao alcance de sua mão. 

Seu corpo esguio deslizava entre as demais silhuetas, alheia ao mundo, principalmente a ele. Continuava caminhando, seguindo seu rumo, traçando seu próprio curso, sem se importar com o que estava ficando para trás. Às vezes, parecia incerta ou indecisa, então a forma parecia apenas uma ilusão ótica. Até conseguir ver o relance do perfil de seu rosto, o suficiente para fazer seu coração ficar indeciso entre acelerar ou parar de vez. O nariz fino e longo com as sardas proeminentes. Os lábios delineados. Os olhos. 

Houve uma urgência que irrompeu por seu peito descompassado, engasgando-se em sua garganta até sufocá-lo com a obstrução, transformando-se em um chamado. Conseguiu sentir o gosto do nome que projetava em sua língua. Então, a pessoa dobrou a curva adiante, ganhando uma distância preocupante, obrigando-o a adiantar os passos até quase correr. No entanto, já não havia mais ninguém. Como uma miragem, a mulher que perseguia desapareceu como se nunca tivesse existido. 

Sem reconhecer seu fracasso, incapaz de se dar por vencido, ele olhou ao redor com teimosia. Procurou por qualquer vestígio da mulher que tentava encontrar, sem ver sequer um resquício de sua aparição. De rosto em rosto, buscou pela face dela, examinando cada olhar, cada sorriso, cada detalhe. E não a encontrou. Sentiu-se assombrado por um fantasma. 

Quando chegou em casa, estava tão cansado quanto decepcionado. Além de tudo, sentia-se um tolo por ter perseguido um vulto criado pela sua saudade até perceber que estava sendo enganado por sua própria mente. 

Diante dos olhos inquisidores de sua mãe, não conseguiu esconder o vazio que o consumia de dentro para fora. 

— Você voltou cedo! Achei que traria a... — ela veio em seu encontro com todas as suas conversas, porém todas se calaram ao encontrar o semblante perdido do filho. — Meu filho, está tudo bem? 

Nirav não respondeu. Enquanto ela falava, sua mente ainda tentava reconstruir a face que jurou ver, a pessoa que tentou alcançar, o nome que quis chamar. E cada vez estava mais confuso. 

— Está me ouvindo, Nirav? Estou falando com você! — ela aumentou o tom de voz para se fazer ouvida. Quando ele ergueu o olhar desorientado, ela se preocupou. — Está tudo bem? Você está pálido, querido, parece ter visto um fantasma. 

— Talvez eu tenha mesmo visto um. 

Poderia ser a realidade ou apenas uma ilusão tola? Era um fantasma ou era a Juno? 


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Notas finais do capítulo

Pois bem, a palavra do capítulo é fantasma. E, de fato, se tratam de fantasmas. A questão é querer ser assombrado por eles ou não. E quanto ao Nirav, isso tá um tanto conflituoso, nem ele mesmo sabe bem o que sentir em relação a alguns fantasmas.



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