O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 17
∾ Poder reviver minhas lembranças e ir devagar nas partes favoritas.


Notas iniciais do capítulo

Olá!

Retorno com mais um capítulo e, agora, lembranças começam a retornar trazendo questões inevitáveis sobre possíveis reencontros e sentimentos adormecidos. Algumas coisas simplesmente não morrem, mesmo depois de tanto tempo. Algumas coisas foram feitas para durar.



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A casa permanecia a mesma. Depois de tantos anos, tendo apenas a memória como referência, era surpreendente como a casa ainda estava igual. Desde os cômodos apertados, preenchidos com móveis antigos de cores quentes, até o banco de madeira sólida que ainda resistia ao tempo na varanda. 

As cores claras das paredes pareciam continuar bebendo da luz do sol, agora já pálido pelo clima frio. Mesmo o intenso azul índigo do quarto de Leo permanecia resistindo, embora estivesse um pouco mais desbotado do que o restante da casa. 

Tudo parecia estar como sempre esteve disposto como antigamente, sem alterar um detalhe qualquer. Era como estar revisitando uma memória inalterada dentro da própria cabeça. Até as sensações de conforto e familiaridade persistiam. Só estava, no entanto, mais vazio, mais ermo, mais triste. 

A ausência de Abigail era sentida no cerne e ossos da casa, se essa pudesse tê-los. Sem a presença de sua voz, seu semblante ou sua silhueta, a ideia de a casa conservada padecia um pouco mais. Em seu lugar parecia haver um grande eco que tentava ocupar a carência deixada pela mulher. Porém, no fundo, não havia nada além do grande vácuo que sua morte havia deixado. E tudo o que restava de Abigail era o que abarrotava o quarto de seu próprio filho. 

O pequeno quarto azul estava repleto de caixas, que ocupavam todos os espaços e quase alcançavam o teto. Já não parecia mais um quarto, apenas um museu com artigos de simbolismo afetivo forte demais para serem descartados. E talvez fosse mesmo isso, pois dentro de cada caixa, conservava-se a memória daqueles que já não estavam mais ali. 

Com um suspiro triste, Juno observava a entrada do quarto enquanto remexia a chave grossa entre seus dedos. Em sua mão ainda tinha a sensação de resistência da fechadura quando tentou abri-la pela primeira vez. Talvez fizesse anos desde a última vez que aquela porta fora aberta. O cheiro de guardado e poeira confirmavam sua teoria ao coçar seu nariz e induzir um espirro violento. 

Ao seu lado, sua tia esgueirava o olhar para dentro do quarto, receosa. Carregava um semblante ferido, expressando a dor de revisitar àquelas lembranças e lidar com o peso da falta de sua esposa, fazendo-a parecer mais velha do que era. Juno pousou o olhar sobre ela, em silêncio, lendo sua expressão e se sentindo culpada por fazê-la passar por isso. 

— Eu pensei em arrumar quando soube que viria, mas... — Octavia respirou fundo, deixando de olhar para dentro do cômodo. — Ainda é difícil abrir esse quarto. 

Melhor do que ninguém, Juno compreendia a dor de sua tia. Como ela, também havia perdido alguém que amava. Ter que lidar com qualquer vestígio dessas vidas não era fácil, por isso resolveu dar um fim a todas as coisas da mãe. Era melhor se livrar desses amuletos do que insistir neles. Ainda assim, lembrava-se do quão complicado foi, na verdade. No fundo, parecia estar, mais uma vez, fugindo de algo. 

— Não queria te dar todo esse trabalho, me desculpe. Em breve devo procurar algum apartamento. Prometo não abusar muito da sua boa vontade. 

Octavia a olhou como se tivesse ofendida por suas palavras. 

— Bobagem! — estalou os lábios, meneando veementemente. — Não há necessidade em pagar aluguel tendo um teto para morar. E eu adoraria sua companhia. 

Um sorriso iluminou o rosto de Juno, mas insistiu: 

— Eu não pretendo te abandonar mais, só... — ponderou as palavras, abrindo e fechando os lábios. — Eu já tenho vinte e oito anos. Preciso dar um rumo a minha vida, não acha? 

Com um suspiro pesaroso, sua tia deu-se por vencida, concordando mesmo relutante. 

— Quase me esqueço de que é uma mulher feita. — abriu um sorriso triste, como uma mãe que vê um filho crescer. — Na minha cabeça, você ainda é aquela garotinha... 

— Uma garotinha com vinte anos na cara? — Juno ironizou, dando uma risada. 

— Você me entendeu. — Octavia acertou um tapinha em seu ombro, antes de voltar a cozinha. — Sinta-se à vontade. 

Sozinha, perante a porta aberta, sentindo o cheiro de velharia, Juno respirou fundo, preparando-se para todo o trabalho que teria adiante. Precisava de um quarto. O sofá na sala, por mais confortável que fosse, não seria bom a longo prazo. Por isso, decidiu começar pelas caixas para descobrir seus conteúdos e, quem sabe, encontrar algo ainda útil. 

Desmontando as pilhas, esparramando-as pelo chão, pouco a pouco, começou a desempacotá-las, revelando o que escondiam. Encontrou além do que esperava. Embora boa parte fosse apenas entulho como papeladas antigas e acumulações, havia uma boa variedade desde roupas até bijuterias. 

As coisas de Abigail estavam por cima da maioria dos armazenados. Ali, Juno encontrou roupas bem velhas e algumas que sequer pareciam ter sido usadas. Também se deparou com sapatos de diversos tipos, acessórios como pulseiras ou cordões, e alguns objetos de decoração. A maior parte estava em bom estado de conservação, podendo considerar ser doados, até mesmo vendidos, desde que sua tia concordasse com isso. 

Havia fotos, muitas delas, espalhadas por todas as caixas que encontrava. Algumas eram de Abigail, em diversos momentos, como festas de aniversário ou ao redor da família. Em várias delas, apesar do desbotamento e falta de saturação, era possível reconhecer o quão nova estava. Seus cabelos ainda estavam loiros, brilhando em cachos armados. O rosto rígido era algo marcante desde sua juventude, trazendo um ar bem mais sério para uma garota bem baixa. 

Por um acaso, encontrou fotos do casamento entre Octavia e Abigail, o que trouxe um sorriso grandioso ao seu rosto. Não conseguia explicar a sensação de encontrar um registro daquele momento, além de uma imensa felicidade. Era inevitável desejar estar presente, podendo presenciar um dos dias mais importantes de suas vidas. E a foto fazia jus a isso. Ambas estavam deslumbrantes, com longos vestidos brancos, cabelos com penteados extravagantes e buquês coloridos. Estavam de mãos dadas, sorrindo em direção a câmera, enquanto as pessoas ao redor aplaudiam. Era uma bela fotografia e Juno deixou-se distrair por esse registro por um longo instante. 

Apesar do sentimento revigorante de vê-las tão felizes e unidas, Juno não deixou de se sentir abatida por uma determinada tristeza, por diversas razões. Gostaria que Abigail permanecesse ali, ao lado de sua tia. Gostaria de tê-la conhecido melhor antes de perdê-la. E, principalmente, gostaria de ter estado ao lado de Octavia quando mais precisou. Era difícil não sentir culpa, ou egoísmo, por estar ocupada demais consigo mesma em vez de confortá-la em um momento tão delicado. O que era a sua dor comparada a de outros? 

Em geral e grande maioria, as fotos eram de Leo. Fotografias de várias fases de sua vida, como infância e adolescência. Juno nunca soube da existência de tantas fotos, o que despertava sua curiosidade. Embora lembrava-se de alguma ou outra, quando Abigail ainda era viva, não conseguiu ignorar os retratos. 

Leo era um rapaz bonito e um tanto charmoso, embora não fosse tão alto quanto imaginava. A pele pálida em contraste com seus cabelos escuros, diferentes dos de sua mãe. Já os olhos, eram tão similares quanto. Seu sorriso era belo, disfarçado em uma barba rala de adolescente. Em todos os registros ele trazia um semblante divertido, sempre mostrando o sorriso, ou a língua, ou então fazendo alguma careta, o que tornava inevitável imaginar como seria conhecê-lo. 

Será que se dariam bem? Seriam bons amigos? Seriam algo além de amigos? Infelizmente, a resposta para qualquer pergunta do tipo permaneceria nula, em branco. Leo tinha partido antes que pudesse ter a chance de conhecê-lo. Nunca ouviria sua voz ou som da sua risada, jamais concordaria com seus pensamentos ou discordaria de suas ideias. Tudo o que sempre teria dele seriam memórias de outras pessoas sobre quem ele era. E, de alguma forma, isso a deixava triste. 

Portanto, Juno tentou aproveitar o máximo de seus pertences para tentar conhecê-lo melhor, como outrora também já havia feito. E foi mergulhando naquelas coisas que encontrou os antigos objetos que decoravam seu quarto, da última vez que estivera ali. Eram duas caixas guardando seus livros, seus quadros e suas pequenas estátuas. Uma sensação de satisfação aliviou o pesar de lidar com os mortos para Juno, que decidiu não se desfazer de tais itens. Cada um deles retornaria para seu devido lugar. 

Depois de tanto abrir e fechar caixas, Juno foi capaz de esvaziar o cômodo e ver o quarto em si, como era de fato, e não o armário de antiguidades acumuladas. E estava totalmente vazio. Se falasse, seria capaz de escutar o eco de sua própria voz. Não restava nem mesmo a cortina das janelas. E, da cama, tudo o que restava era só o colchão empoeirado. 

Um suspiro cansado escapou de seus lábios. Teria um árduo trabalho para deixar o quarto em um lugar habitável. Teria de retirar toda a poeira, limpar do chão às paredes, reorganizar os móveis e improvisar uma cama. Portanto, decidiu começar abrindo as janelas e colocar o colchão na varanda, para receber algum ar fresco. Em seguida, decidiu acatar o chamado de sua tia para almoçar, pois seu estômago roncava. 

— O que pensa em fazer com as coisas de Leo e Abigail? — Juno perguntou ao se aproximar, já adiantando-se para se servir. 

Um vento gelado entrava pela janela da cozinha, assoprando até a toalha sobre a mesa. O tempo do lado de fora não parecia nada amigável. O céu estava nublado, dando apenas um pequeno vislumbre do sol pálido.  

O frio obrigava sua tia a se encolher em um roupão grosso e claro, cobrindo seu pijama de flores. Apesar disso, Juno tinha o corpo quente do serviço, e então só vestia uma camiseta escura, já marcada de poeira, com uma calça amarela, amarrotada e também marcada. 

— Eu sempre penso em doar, mas nunca tomo a devida coragem. — ela respondeu, já ao lado de Juno. — Agora que você está aqui, se importaria de fazer isso por mim? 

Juno sorriu, concordando de imediato. 

— Só gostaria de manter alguns itens de Leo, tem algum problema? — sugeriu, observando sua tia franzir o cenho, sem entender. — Alguns dos livros, quadros, os objetos que ele tinha... 

— Ah, claro, minha querida. Fique com o que te servir melhor. — Octavia concordou, sentando-se à frente de sua sobrinha. — Há um bazar no centro da cidade, você pode pedir para que venham buscar as coisas, mas eu acredito ter perdido o telefone deles. 

— Eu posso ir até lá, só me dizer onde é. — sua voz foi interrompida pela primeira garfada, que satisfez a urgência da vontade de comer. — É bom que aproveito para ver a cidade. 

Pouco a pouco, o incômodo no estômago de Juno foi aliviando e logo já se sentia pronta para retomar ao trabalho. Mesmo assim, permaneceu um tempo conversando com sua tia. Não cabia em palavras a saudade que estava de perder todo o tempo ao escutar Octavia jogar conversa fora, falando sobre a cidade, o clima, até as coisas mais simples do dia-a-dia. Podia-se perder em seus assuntos, sem ver a hora passar. 

— Não sabe como senti sua falta. — Juno disse, observando-a sorrir diante de seu comentário, que já não era o primeiro. 

— Estou feliz que tenha voltado. —  ela suspirou, olhando para a mesa. —  Por muito tempo, quis vender essa casa e me mudar. Não havia mais nada que me fizesse permanecer aqui. Estava tão vazio ao mesmo tempo que abarrotado de lembranças. Era como ficar em uma casa assombrada. Agora, com você aqui, a casa parece feliz de novo. 

Enfim, depois de recuperar as energias, Juno decidiu retomar ao trabalho. Ainda havia uma infinidade de coisas para arrumar no quarto. Então, com uma vassoura, um pano úmido e vários sacos de lixo, ela se preparou para enfrentar o restante do dia. 

A quantidade de poeira era maior do que esperava, sendo obrigada a improvisar uma máscara com uma blusa amarrada ao rosto, para evitar ter uma crise alérgica. Depois, com um pano úmido, conseguiu deixar os vidros da janela novamente transparentes, e descobriu que o azul índigo da parede não estava desbotado, só repleto de poeira. Por fim, com o apoio da tia, arrastou alguns móveis para dentro do quarto e encontrou cortinas para cobrir a janela. E mesmo só com um colchão no lugar da cama, o quarto voltava a ser o lugar aconchegante de antes. 

Então, Juno decidiu voltar às coisas de Leo, limpando-as ao desempacotar. Sequer havia aberto as caixas, apenas checou seu conteúdo e as separou para organizá-las depois, quando tudo estivesse limpo. 

Seus quadros permaneciam intactos, apesar da presença irrefutável do tempo, carcomendo as telas de pouco em pouco, o que os deixava mais charmosos, de alguma forma. O mesmo também acontecia com as miniaturas de animais, bem antigas, que outrora decoraram estantes. Algumas partes estavam quebradas ou rachadas, a madeira ressecada ou desbotada, pareciam relíquias que Juno adorou reviver. 

E havia os livros. Os diversos livros de ficção, desde as mais divertidas aventuras até os mais tristes dramas. Histórias que Juno nunca teve a oportunidade de ler, embora sempre tivesse vontade. Agora, desconfiava não ter tanto tempo para ler tudo aquilo, mas guardaria o máximo que pudesse. 

Como tudo dentro daquele cômodo, os livros estavam empoeirados e sujos, o que a obrigou limpar um por um antes de acomodá-los em uma das cômodas. Ao folhear um dos livros, na intenção de expulsar a poeira, algo escorregou das páginas direto para o chão com um som suave, que chamou sua atenção. 

Era um bilhete, amassado e queimado. O papel estava enrugado, entre enegrecido e amarelado. Era quase impossível ler o que estava escrito, porém parecia se tratar de algum poema. Entre a folha dobrada no meio, havia duas fotos. 

A primeira fotografia mostrava Leo abraçado com uma garota ruiva, beijando seus lábios enquanto exibia uma garrafa de cerveja na mão direita. A segunda registrava amigos abraçados, se divertindo. O da esquerda era Leo, fazendo uma careta ao beber cerveja. O da direita, ao seu lado... 

— Nirav. — o nome escapou de seus lábios como um suspiro, mais rápido do que seus pensamentos. 

Estava mais novo, sem a barba espessa a cobrir seu rosto e seus cabelos estavam curtos e arrepiados, mas era ele. O olhar preguiçoso, a pele escura, o sorriso radiante. Sem qualquer dúvida, era Nirav. 

Percebendo um incomodo em sua garganta, Juno percebeu que não respirava, estava prendendo o fôlego ao se deparar com a imagem. E se o fôlego estava obstruído, seu coração, pelo contrário, estava tão acelerado quanto descompensado. Uma simples fotografia antiga foi capaz de desestabilizar toda a sua estrutura. 

Por um momento, precisou se encostar na parede, escorando-se até poder se sentar no chão. Seu olhar ainda estava fixado no retrato, lendo a expressão do rapaz que sorria, parecendo estar embriagado. Não conseguia retirar a atenção da foto, incapaz de notar qualquer outra coisa além da imagem. Com a ponta dos dedos, tocou o traço do rosto dele, imortalizado no papel, deslizando por sua figura com um leve tremor. 

Nirav. O som de seu nome deslizou por seu âmago como uma onda de arrepios, obrigando seus olhos a se fecharem para apreciar a sensação. Então de novo, e de novo e de novo, sem parar. Em um instante, todos os seus pensamentos estavam ocupados por um mesmo nome. Nirav. 

Não houve um dia em que não pensou em Nirav. Não foi capaz de esquecê-lo, muito menos superá-lo. Apesar de, tantas vezes, tentar enganar a si mesma, procurando preencher o grande vazio em seu interior, nunca conseguiu ter sucesso. E, no fundo, sempre soube disso. Jamais seria capaz de superá-lo. Nem mesmo se realmente quisesse. 

Mesmo estando longe ou ocupada, a lembrança de Nirav resistia. Quando estava cuidando de sua mãe, quando estava trabalhando, quando estava sobrevivendo. Em todos os momentos, de alguma forma, mantinha-o junto consigo. E, por tanto tempo, foi o seu conforto. A lembrança do sorriso, do cheiro, do som da voz. Nunca doeu lembrar de Nirav. Doía lembrar do que havia causado a ele. 

No entanto, precisou aceitar o curso do tempo seguir como uma correnteza imutável. E, por anos, engoliu os próprios sentimentos, sem nunca deixar de tê-los. Já não havia mais utilidade para esses, encobertos pelo contínuo ciclo da vida, que movimentava o mundo e traçava caminhos tão distantes. 

E agora, estava de volta ao ponto de partida. Onde tudo começou e também onde tudo acabou. E era impossível não pensar, onde ele estará agora? Ele estaria lá fora, em algum lugar. Não estaria esperando por ela, sequer imaginaria que, algum dia, ela retornaria. Entretanto, se soubesse, o que faria? 

De repente, tudo se tornou perguntas sem respostas. Inúmeras questões surgiam no fundo de sua mente. Perguntas que deixara de fazer há muito tempo pelo medo das respostas. Porém, não havia resposta alguma para nenhuma delas. Eram só perguntas. Onde ele estava, como estava, quando, por quê? Nenhuma resposta. 

Para impedir uma súbita vontade de chorar, teve de abandonar a fotografia, mesmo relutante. Queria ter mais um resquício daquele sentimento, mas não era forte o suficiente para suportá-lo. Não depois de perceber que nunca havia deixado de senti-lo. 

Mesmo em vão, procurou se ocupar com o trabalho que restava, tentando evitar se afogar em todo o turbilhão de pensamentos. Decidiu que guardaria a foto, pois talvez fosse sua última chance de ter Nirav por perto, ainda que fosse apenas em um pedaço de papel antigo. 

O fim da tarde se aproximava quando Juno terminou de separar as caixas para o bazar. Embora não fossem pesadas, eram em grande quantidade, não seria capaz de carregar tantas, e sem o número de telefone, foi obrigada a sair de casa rumo ao centro da cidade. 

Estava cansada e bagunçada. Suas roupas amarrotadas estavam um trapo, porém, pior ainda eram seus cabelos. Estavam arrepiados, desgrenhados e desfiados para todas as direções. Sabia que sua situação não estava das melhores, porém precisava se adiantar e não queria deixar serviço para o dia seguinte. 

O vento do lado de fora a recebeu com uma pancada, fazendo-a se arrepender por não por uma blusa mais quente. O céu já estava escurecendo, lentamente dando lugar à noite, enquanto Juno avançava pela cidade seguindo as instruções de sua tia, com os braços cruzados em uma vã tentativa de afastar o frio. 

O centro da cidade a surpreendeu mais do que podia imaginar. Já esperava encontrar uma cidade diferente, porém não estava preparada para o encontrou. De fato, a cidade estava se transformando. O movimento estava bem maior, pessoas lotavam o centro, circulando por diversos prédios que nunca estiveram ali, e o tráfego estava mais pesado. No entanto, todo o resto permanecia intocado, como se o tempo não tivesse transcorrido. Como se o passado ainda estivesse resistindo, lutando contra o futuro. 

Foi preciso apenas um olhar para Juno perceber que Florencia continuava a mesma. Como um quebra-cabeça, peça sobre peça reconstruíram as memórias de cada lugar em que esteve antes, ajudando-a reconhecer cada particularidade, preenchendo-a com nostalgia. 

Lembranças tornaram a surgir do fundo de sua mente, causando os mais diversos tipos de sentimentos, sendo o maior deles a saudade. Saudades de andar por aquelas vielas, observando pessoas indo e vindo, enquanto conversava com seus amigos. E como sentiu saudades de seus amigos. Sentiu falta de Helena e suas belas tranças. Hester e seu jeito sério. Louise e seus vestidos. Theo e suas camisas estampadas. Nirav. Como sempre, tudo retornava até Nirav. 

Então, de repente, estava presa entre o presente o passado. Perdida entre ruas e becos do passado enquanto caminhava pelas ruas do presente. Cada cantinho tinha alguma memória. Um sorriso, um diálogo ou um olhar. Toda parte da cidade se transformava em uma lembrança sua, transfigurando–se em sombras e luzes, como se estivessem acontecendo bem diante de seus olhos. E ela assistia, como em um filme. 

Sem perceber, alcançou o objetivo que estava procurando. Parecia ter caminhado por horas, seguindo um curso automático de sua cabeça, como se nunca tivesse esquecido onde estava cada curva, embora nunca tenha ido àquele bazar. Era uma novidade mesmo sendo um lugar antigo. Era pequeno, tinha um cheiro forte de incenso e poucas janelas. Dois ventiladores de tetos pareciam aposentados, prestes a cair a qualquer momento. O atendimento era lento, porém agradável e educado. 

Enquanto seu formulário era preenchido, Juno não resistiu em olhar ao redor. Havia uma certa magia em coisas mais antigas, acreditava. Principalmente se fossem usadas, passadas de mão em mão. Gostava de imaginar a história por trás de cada objeto, fantasiando desde o momento da obtenção até a despedida. 

Admirou tapetes tradicionais, tentando adivinhar se tinham sido tecidos a mãos. Artesanatos envelhecidos, com o charme de algumas rachaduras e reconstruções. Quadros antigos, retratando naturezas, pessoas e animais. Porém, seus preferidos se tornaram os relógios. Todos diferentes uns dos outros, alguns antigos, outro modernos, com ou sem pêndulos, e cada um mostrando um horário diferente. Por um momento, perguntou-se se era intencional, talvez marcar um horário de cada lugar do mundo. A ideia pareceu tão divertida quanto intrigante. 

Com um sorriso juvenil, Juno estava tão entretida com as particularidades dos objetos que sequer percebeu a aproximação, apenas quando uma voz pronunciou todas as letras de seu nome, notou não estar mais sozinha. 

— Juno? 

A voz masculina preencheu o ambiente, tomando toda a atenção dela, que já havia esquecido dos relógios. O susto imediato a fez girar nos próprios calcanhares para descobrir o dono da voz. 

Reconhecendo a pele retinta, os olhos escuros e o semblante amigável, notou que o homem à sua frente não parecia ter envelhecido um dia sequer. Estava diferente, sim, porém parecia até mais novo. Seus cabelos estavam mais curtos, sem as antigas tranças descoloridas, arrumados em um corte mais tradicional. Estava mais forte, com braços mais grossos e ombros mais largos. Tratava-se de Theo. 

Quis correr para abraçá-lo, mas se conteve. Obrigou-se a isso. Não imaginava o que estaria passando pelos pensamentos dele ao reencontrá-la depois de tanto tempo. Seu semblante entregava surpresa, apesar de ser incapaz de determinar se era por bem ou por mal. 

— É mesmo você! Não consegui acreditar nos meus próprios olhos quando te vi. — seus lábios estavam entreabertos e os olhos bem abertos, sequer parecia capaz de piscar. — Quanto tempo faz? 

Juno sentiu o peso das palavras de Theo. Por consequência, sentiu o peso de todos os anos em que esteve longe. Foram longos anos, tempo demais. Mais tempo do que parecia capaz de contar. 

— Sete anos. 

Ele arqueou as sobrancelhas, passando a mão sobre o rosto liso, sem um traço de barba. Estava mesmo surpreso de encontrá-la. 

— Sete anos. Uma vida inteira... — comentou, admirado, em um suspiro. — Você desapareceu, simplesmente sumiu, como se fosse fumaça. 

Ela desviou o rosto, sem saber como responder. Algo no tom dele a feriu de um jeito íntimo. 

— Eu tive alguns problemas. — respondeu. Até estava tentando ponderar suas palavras, mas decidiu ser sincera. — Na verdade, nunca pensei que fosse voltar. 

— Eu também não. 

Houve um silêncio torturador entre eles, pesado demais para ela suportar. Theo a olhava como se estivesse presenciando um fantasma. 

— Como você está? — resolveu perguntar, não podia negar a curiosidade. — Como está a vida? 

— Está tudo muito bem, seguindo perfeitamente. — a resposta foi educada e nada além disso. 

— Alguma notícia de Hester? 

— Estamos morando juntos e recentemente noivamos. Vamos nos casar em breve, espero. 

Um sorriso tomou conta do rosto de Juno ao receber a novidade. Não conseguiu conter sua animação ao descobrir que os dois continuavam juntos e prestes a se casar. 

— Eu fico feliz por vocês! — queria poder dizer mais, mas já não se sentia tão íntima quanto antigamente. 

— Obrigado. — ele assentiu, então tomou iniciativa para partir. — Bem, foi bom ver você de novo. Passar bem. 

Sequer teve tempo para se despedir e Theo já estava dando as costas. Era inevitável se sentir indesejada, como uma estranha qualquer. Entendia o motivo da indiferença dele, dava-lhe razão, só não podia fingir que não doía. 

No entanto, sem resistir, antes que Theo fosse embora, Juno acabou chamando-o outra vez. Não se controlou. Precisava saber de mais uma coisa. 

— Theo? 

Quando ele olhou para trás, fixando o olhar sobre o seu, caminhando de volta até onde estava, Juno se arrependeu. De alguma forma, sentia que ele sabia o que ela queria e a julgava por isso. 

— Desculpe, não era nada. — mentiu, abaixando a cabeça, fugindo do olhar inquisidor dele. 

— Vai em frente. — ele não se deu por satisfeito, insistindo ao encorajá-la. Seu tom desafiador parecia um tanto desconfortável. — Pergunte o que você quer saber. 

Juno não ergueu o rosto, apenas o olhar, encontrando o dele. Sabia que Theo podia ler sua expressão como uma página qualquer. Por isso, suas mãos tremularam antes de tomar coragem. 

— E quanto a Nirav? — sua voz saiu oscilante, tremula assim como sua boca, porém também apressada e urgente. — Alguma notícia dele? 

Theo soltou um riso nasal, passando a mão pelo queixo enquanto saboreava a pergunta. 

— Ele está ótimo. — fez uma careta sarcástica, comprimindo os lábios. — Construiu uma vida estruturada na cidade, conseguiu um bom trabalho, encontrou alguém especial, conquistou o espaço dele... Não poderia estar melhor, imagino. 

Por mais incrível que parecia, um sorriso autêntico pousou nos lábios trêmulos de Juno, talvez surpreendendo até mesmo Theo. 

— Não sabe como fico feliz em saber disso! 

— Que bom que fica feliz. — respondeu, curto e grosso. — Ele merece mesmo. 

Sem mais delongas, Theo a deixou para trás e seguiu seu rumo. Sozinha, Juno só teve tempo de se apoiar em uma das estantes. Só então percebeu o atendente a esperando, educado demais para interromper a conversa. 

O caminho de volta se tornou mais tortuoso do que deveria. A ventania parecia pior, soprando um ar gelado sobre o corpo pouco coberto dela, doendo até seus ossos estremecerem. Era quase uma agressão, obrigando-a correr em determinado momento. 

Não foi capaz de entrar em casa, apesar do clima hostil. Apenas sentou-se na calçada, sobre o meio fio, em frente a porta de entrada. E ali ficou por um longo tempo, sem sequer se dar conta. 

Por algum motivo, tinha vontade de chorar. Seus lábios tremiam, o queixo se contraía e os olhos ardiam. Não conseguia compreender o pranto entalado. Se Nirav estava feliz, por que ela não haveria de estar também? 

A verdade era que estava, sim, feliz por Nirav. Nada a alegrava mais saber que ele estava bem, com uma vida estável e um futuro próspero. Seu coração acalmava-se só por saber que ele estava feliz. Era tudo o que importava e por isso queria chorar. Nirav estava bem sem a presença dela, portanto seu retorno poderia destruir tudo. 

A vontade de chorar e gritar só não era maior do que a vontade de retornar para o buraco de onde saiu. Já não sabia mais se tinha tomado a decisão certa em voltar. Talvez o melhor seria nunca mais ter voltado, porque sabia que podia estragar tudo o que ele havia construído. Podia, mais uma vez, ser uma ameaça para Nirav. E não há dor maior do que ser uma ameaça a alguém que se ama. 

Depois do que pareceu uma eternidade, afogada em seus conflitos e sentimentos, Juno já estava dormente ao frio. Sua pele arrepiada já resistia ao vento cortante. Os cabelos condiziam a bagunçada em que ela se encontrava. Não tinha força alguma para voltar para casa. Se não fosse pela sua demora notada por sua tia, que acabava de encontrá-la, não teria reagido. 

— Juno, querida, o que aconteceu? — Octavia se aproximou, agachando em sua direção. — Está tudo bem? 

— Não sei se fiz certo em voltar. — balançou os ombros, perdida, sem saber o que fazer. — Acho que isso só vai piorar tudo. 

Juntando-se a sobrinha, Octavia também se sentou no chão, tendo um esforço maior para conseguir fazê-lo. 

— Por que acha isso? Sabe que está errada. — a mulher disse, envolvendo os braços em seus ombros. Juno não sabia dizer se sua tia queria confortá-la ou aquecê-la, talvez um pouco dos dois. — Acha que todo esse tempo longe iria adiantar de alguma coisa? O tempo pode amenizar a dor, mas, às vezes, é preciso mexer na dor para poder curá-la. 

— Não adianta, porque não consigo me perdoar. — admitiu, fungando o nariz. Em um ato de desespero, olhou para Octavia, procurando por respostas. — Talvez eu nunca consiga. 

— E por que teria de se perdoar? — Octavia a encarou, séria. — A culpa que você carrega não é sua. 

Juno se permitiu sorrir, agradecendo o tom sútil de suas palavras. Por mais reconfortante que fosse, ainda não conseguia concordar. 

— Infelizmente, é sim. Não posso fugir das consequências dos meus atos. — respondeu, respirando fundo. — Nunca soube a verdade, não é? Nunca contei o que houve entre mim e Nirav. 

Octavia suspirou, dando um sorriso cansado. 

— Nunca precisou me contar nada, querida. Naquela noite, quando retornou do passeio de bicicleta, eu já sabia o que tinha acontecido. E só precisei olhar para você. 

— Era assim tão óbvio? — franziu o cenho, surpreendendo-se com a revelação, ainda que se divertindo. 

— Você estava feliz. Feliz como nunca vi alguém estar. 


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Notas finais do capítulo

Bem, apesar do suspense nesse reencontro, era um tanto óbvio que não seria nosso jovem (nem tão mais jovem assim) Nirav.

E como Juno pontuou. E quanto a Nirav? Bem, vem aí.



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