O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 16
INVERNO: A inércia após o declínio


Notas iniciais do capítulo

Sejam bem-vindos novamente.

Agora, a história que foi abruptamente interrompida, recomeça de um outro determinado ponto. Um bom tempo se passou, a vida seguiu levando nossos personagens a caminhos opostos, porém, de algum jeito, parecem retornar. Há uma nova trilha para seguir e será que essa trilha os leva de encontro um ao outro?



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Há derrota em cada narrativa da vida. Toda pessoa já experimentou ou irá experimentar o gosto da derrota em sua história. Não importa que sejam protagonistas, antagonistas, coadjuvantes ou meros figurantes. Cada um irá se encontrar, em algum momento, prestes a fadar ao fracasso, entregue às mãos cruéis do destino para provar da injustiça que, de quando em quando, a vida não se acanha em demonstrar. E então, o que resta? 

O apartamento vazio, gerando eco com o simples ressoar de respirações, era como representar todas as derrotas que marcavam a história da mulher que o observava, quase visíveis a olho nu, desenhadas na parede. 

Quando era pequena, costumava buscar nos braços da mãe as respostas para a falta de um pai, um medo descabido, um tombo qualquer, algum conforto. Nunca as encontrava, naqueles braços só encontrava um toque vazio e automático que, com um empurrão, a instigava a continuar de pé. 

Quando a mãe adoeceu, em algum momento indefinido de sua jovem idade, teve de aprender a deixar a sua vida em segundo plano para cuidar da dela. Afinal, sentia-se na obrigação de cuidar de quem lhe deu a vida, era o mínimo que poderia fazer. E fez tudo o que podia, só não conseguiu fazer ficar bem. Apesar do medo, da incapacidade, da negligência, ela permanecia de pé, apagando sua própria existência pela da mãe, porém já fraca demais até para a menor das esperanças. 

Quando a mãe faleceu, houve um vácuo no mundo. Tudo ficou um pouco mais surdo, mais opaco e mais sufocante. Não só pela perda, também pelo gosto do fracasso que amargava sua língua. Mesmo agora, depois de um ano após sua morte, continuava a se engasgar com o arrependimento. Se tivesse feito mais, tentado mais, insistido mais... Se tivesse mais para dar, talvez ela não tivesse desistido tão cedo. 

Juno não possuía mais nada para dar. Cada parte sua quebrou-se em centenas de outras, dividindo-se de todas as formas até não restar mais nada, nem ao menos para si. Agora, os vinte e oito anos pareciam pesar mais do que deveriam para uma idade tão tenra. O que antes ardia como a chama de um sol inteiro, só restava uma fagulha. Todo o verão que irradiava de sua existência, já parecia fraco e apagado demais para fazer sequer um dia ensolarado. 

Sozinha, de pé diante da porta, encarou o silêncio da casa vazia. O eco do apartamento em que cresceu era um tanto estranho. Não havia mais mobília, nem mesmo um objeto qualquer esquecido. De sua mãe, não havia mais nada que indicasse que havia vivido ali. Dela não guardaria nada, exceto uma foto para preservar a lembrança de seu rosto. 

O interior vazio do apartamento refletia o seu próprio cerne. Era como olhar para dentro de si mesma e encarar um vazio assustador. As paredes, expostas, estavam marcadas, porém o conteúdo era vago. Não restava mais nada ali para Juno. Ali, não encontraria mais nada, só restava ir. 

Por isso, deu uma última olhada para se despedir antes de trancar a porta e partir. Nunca se sentiu em casa, de verdade. Tudo o que a prendia ali, naquele apartamento, era sua mãe. Agora, depois de sua morte, seu conceito de lar também deixou de existir. 

Por um momento, logo antes de deixar o prédio com suas poucas bagagens, encarou o espelho na entrada da portaria. A imagem refletida ainda era a sua imagem, o seu próprio reflexo. Apesar de os cabelos estarem um pouco mais curtos, as sardas mais proeminentes e olhar mais cansado, conseguia reconhecer a Juno que sempre foi. Ela estava ali, em algum canto, preparada para recomeçar. E por ela, partiu para a rodoviária, onde o ônibus a esperava, a caminho do lugar que nunca quis deixar. 

No início, foi uma decisão ambígua. Ao mesmo tempo que parecia fácil escolher, era tão difícil decidir. Não havia mais nada que a prendesse naquele lugar, então por que estava receosa em retornar para Florencia? 

Sete anos se passaram. Uma vida inteira. Caminhos divergentes, decisões contraditórias, rumos opostos e histórias diferentes. E não foi o suficiente para apagar as duras marcas das memórias de Florencia. Depois de sete anos, se recordava desde a sua passividade covarde até a sua fuga desesperada e sem despedida. Juno nunca imaginou retornar, mas agora parecia sua última esperança. 

Quando subiu no ônibus, ainda não estava convicta de estar tomando a decisão certa. Porém, já não havia mais volta. E talvez fosse aquela a sua última oportunidade. 

Permitiu-se olhar para trás, pela janela. Permitiu-se despedir. Dessa vez, não estava fugindo, como antes sempre esteve. Agora, estava tentando dar a si mesma uma chance de retomar a própria vida. Deixar para trás os fracassos, as lágrimas e os arrependimentos era só o primeiro passo. E o que a deixou mais convencida de estar na direção certa. 

Há muito tempo, já não parecia ter nada para Juno naquele lugar. Mesmo quando sua mãe era viva ou quando tinha um resquício de uma futura carreira brilhante. Nada do que tinha era sólido o suficiente, era apenas uma ilusão da vida que achava ter. E não sendo suficiente, teve de ver tudo desmoronar diante de seus olhos, destruído pelas mãos que tanto marcaram seu passado. 

Memórias difíceis demais para serem lembradas, muito menos para serem apagadas. Sua imagem estava manchada pelo grande domínio de alguém que, de um jeito infeliz, levaria para sempre em seu ser. Poderia até conseguir superar, seguir em frente, mas cicatrizes como as que seu antigo namorado a deixou marcada, nunca deixariam de existir. 

Talvez tenha sido, de todas, a sua pior derrota. Embora tenha conseguido sobreviver a Nicholas, nunca pareceu uma vitória. O gosto era amargo demais, com um custo alto demais. Ele tomou tudo o que tinha e um pouco mais, até mostrá-la quão sozinha e vazia era sem ele. 

Constantemente, encontrava-se em um conflito interminável, que muitas vezes temeu não conseguir escapar. Estava sempre encurralada, perseguida, machucada. Cada parte sua continha um pedaço daquele homem. Estava tão impregnado em sua vida que a fazia questionar a sua própria existência. Durante anos, lutou uma briga silenciosa e solitária, sempre tão perto de uma derrota definitiva, que a matava um pouco por dentro toda vez. 

Aos poucos, tudo foi se perdendo como se nunca tivesse existido. Seus amigos, sua vida social e amorosa, além de qualquer tentativa de reconstrução eram esmagadas pelas mãos do antigo relacionamento. Sua carreira, sempre encontrando um fim abrupto pela sua uma imagem manchada por conta da influência da figura do seu antigo namorado. Tudo se extinguia até restar apenas sua mãe, alheia a verdade da filha, frágil demais para ter qualquer noção da realidade. E mesmo isso não pareceu durar muito. 

Então, marcada pelas derrotas, manchada pelas lágrimas, arrependida por suas escolhas, atormentada pelas lembranças, o que restava? Só seguir em frente. E se seguir em frente a levaria de volta para Florencia, ela não voltaria atrás. Continuaria seguindo, esperando uma oportunidade, tentando encontrar uma chance de ser quem era e fazer tudo ficar bem. 

Com um sorriso incontrolável, ela admirou a entrada da cidade pela janela. Como uma criança que ganha um brinquedo novo, ela se contorceu no assento, quase encostando o rosto no vidro. Suas mãos se apoiaram ao redor, quase como se quisesse tocar a vista que enchia seus olhos com lágrimas nostálgicas. 

A rodoviária parecia tão movimentada quanto se lembrava da última vez. Os ônibus entravam e saiam, trazendo e levando todo tipo de pessoa para todo tipo de lugar. Era apenas um ponto de encontro, mas o suficiente para enchê-la de saudades. 

Conforme descia do ônibus, segurando suas bagagens, Juno sentia a euforia de estar de volta. Todas as lembranças, as saudades e o apego pela cidade transformavam-se em olhos marejados, respiração acelerada e um sorriso bobo. 

Parecia um sonho, uma ilusão, algo que não correspondia a sua realidade. Era difícil acreditar que, o solo em que pisava, era Florencia. Tudo parecia como antes, ao mesmo tempo que parecia tão diferente. Era a primeira vez que reencontrava Florencia em sete anos. E a cidade a recebeu com um sentimento que encheu seus olhos, como se nenhum dia tivesse passado desde então. 

No terminal, Octavia a esperava de braços abertos e semblante acolhedor. Tudo parecia igual, exceto por um diabo de detalhe. Dessa vez, sua tia a esperava sozinha, sem a costumeira companhia de sua esposa. Até esse instante, não havia conseguido acreditar no falecimento de Abigail, mas agora o choque de realidade era difícil demais para suportar e as lágrimas eufóricas logo se tornaram em tristeza em segundos. 

Embora tenha sido há alguns anos, ainda se lembrava da sensação de vazio, do choro sufocado na garganta, quase tão vívidas para serem só meras lembranças. Estava no hospital, junto de sua mãe, quando o telefone tocou e, da voz intercalada por soluços de Octavia, deu a notícia que pareceu ruir o chão sob os pés de Juno. Algo latente, escondido e silencioso, como uma bomba relógio, estourou dentro da cabeça de Abigail, roubando o seu direito a vida. 

Quando, mais tarde, a sua mãe também morreu, foi difícil não pensar em todas as fatalidades que cruzavam o seu destino. Juno percebeu que conhecia mais fantasmas do que pessoas reais. 

Porém, era mais um motivo para retornar, afinal. Embora Abigail tenha falecido anos antes de sua mãe, Juno sentia que deveria retornar para Octavia. Eram a única família uma da outra. Não estariam sozinhas, se estivessem juntas. 

Apesar de tê-la encontrado no funeral de sua mãe, Octavia parecia bem mais velha do que se lembrava. Seus cabelos estavam mais prateados e ralos, presos em um coque tradicional. Seu corpo parecia menor e mais magro, tal como o rosto, um tanto mais cadavérico. Ainda assim, seus belos olhos verdes continuavam cheios de vida e pareciam emocionados em vê-la de novo, depois de tanto tempo. 

Octavia a recebeu com um abraço reconfortante, que pareceu compensar todas as dores que carregou em seus ombros. De imediato, Juno soube que estava em casa. 

— Você está uma mulher feita! — ela comentou ao recebê-la com uma risada embargada pela emoção. — É tão bom ver você de novo! 

Juno respirou fundo, tentando controlar a urgência do pranto. Sentia-se sensível demais, considerando a quantidade de sentimentos do retorno e do reencontro. 

— Desculpe ter demorado tanto para voltar. — sua voz vacilou, perdendo força. Ela segurou os braços da tia, tanto para confortá-la quanto para se sustentar. — Sinto muito por Abigail, por não ter estado aqui com você quando precisou. 

Octavia sorriu. Um sorriso que demonstrava o quão havia envelhecido em tão pouco tempo. Era compreensível, pois o preço cobrado por se perder alguém amado era valioso demais para ser pago sem danos. 

— Eu sei que você teria voltado antes, se pudesse. — ela respondeu, tomando as mãos dela nas suas, trocando um toque fraternal, que reúne os cacos do que restou de uma família. 

Até então, Juno não conseguia acreditar que estava de volta. Parecia algum sonho que logo seria despedaçado pelo despertador, obrigando-a a acordar contra sua própria vontade. Temia que, a qualquer momento, toda a visão que enchia seus olhos se dissipasse como fumaça, desaparecendo da mesma forma abrupta como havia acontecido antes. 

Por isso, seus olhos tão atentos capturavam cada particularidade do lugar, fotografando o cenário que tanto sentiu saudades. As ruas cheias de pessoas, o som de conversas, o cheiro da cidade, as casas antigas, as árvores resistentes. E mesmo ansiando admirar cada parte da cidade, permitiu-se fechar os olhos e apreciar as sensações que borbulhavam por seu corpo. 

— Quando contou que estava voltando, quase não pude acreditar. — Octavia disse, em determinado momento, trazendo sua atenção de volta. — Sequer consigo acreditar que vai mesmo ficar. 

— Bem, ainda é provisório. — respondeu, passando o olhar para a tia. — Na verdade, é só um programa de estágio por alguns meses, mas se ficarem satisfeitos com meu trabalho, eu consigo a contratação. 

 Não era muita coisa, embora já fosse melhor do que seus antigos fracassos. Não parecia durar mais de um ano em cada empresa e os bicos de trabalho autônomo já não pareciam mais o suficiente. Quando a oportunidade de estagiar em uma produtora apareceu, Juno recobrou as esperanças. Quando descobriu que seria em Florencia, foi como provar o clichê e ver a luz no fim do túnel. 

Mesmo assim, precisaria percorrer um árduo caminho. Era como começar por baixo do início de uma carreira, que Juno já tentava construir há anos. Teria de disputar um espaço que já deveria ter conquistado, lidar com a inexperiência que deveria ter superado, porém estava disposta a tentar. 

Octavia deu tapinhas em sua mão, como um sinal de apoio. Sabia todas as suas vãs tentativas de emprego e não deixaria faltar suporte. 

— Tenho certeza de que vai conseguir! 

De repente, um suspiro escapou dos lábios de Juno, que continuava admirada por estar de volta. Aos poucos, sentia certas lembranças preencherem sua cabeça, causando arrepios por todo seu corpo. Para canto que olhava, um pedaço dentro de si queria despertar de um longo sono. 

Memórias que nunca foram apagadas, só estavam hibernando, latentes, dentro de seu âmago, pareciam retornar a superfície, arranhando o fundo de sua mente. Cada uma delas tão vívida como se tivessem acabado de acontecer. Todas elas com algum sentimento diferente, que tamborilou por toda sua pele, desestabilizando-a brevemente, dos pés à cabeça. 

— Não é irônico que vá recomeçar minha vida onde tudo começou a dar errado? 

— Eu não chamaria de ironia, chamaria de destino, mas eu sou apenas uma velha mulher reproduzindo clichês. — Octavia concluiu, dando uma risadinha. — Vamos. Seja bem-vinda novamente, minha querida! 

Com um sorriso satisfeito, mais uma vez, Juno olhou ao redor para ter certeza de que não estava sonhando. Então, começou a andar ao lado de sua tia, impedindo que ela carregasse o peso de suas bagagens. 

Por um momento, elas caminharam em silêncio, transitando pelas ruas de Florencia, entre as pessoas que iam e vinham, sem parar, tornando a cidade viva, apesar de um clima tão inóspito. 

Uma brisa fria do inverno bagunçou seus cabelos, com um toque agradável, apesar disso. Estava mais frio do que imaginava. O céu tão azul de Florencia estava encoberto de nuvens descoloridas, que escondiam a beleza de um sol pálido. Um ar gélido repousava na cidade encolhida, obrigando as pessoas a se esconderem em roupas grossas, aproveitando toda tentativa de se aquecer. 

Embora escondida entre os ventos de inverno, hibernada na hostilidade do frio, gelada e rígida, Florencia continuava a ser a mesma de sempre. Tão bela, tão única e tão acolhedora. Ainda era um como um lar para Juno, que nunca pensou que retornaria. Era bom estar de volta. Estava feliz por estar de volta. 


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Notas finais do capítulo

Foi como escrever o primeiro capítulo! Tantas coisas aconteceram, tantas coisas a serem reveladas, tantas coisas a serem reconstruídas. E é como eu sempre digo, só resta levantar!

E é inevitável se perguntar: como vai ser esse reencontro?



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