As Lendas dos Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 9
— A epidemia das crianças assassinas




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A epidemia das crianças assassinas

Ligaram para a casa de Kin no meio da madrugada dizendo que haviam pessoas morrendo misteriosamente no Reino de Órion. Preocupada, ela fez várias perguntas, mas o mais perto que teve de uma resposta foi "é urgente, vem logo", então, às pressas, saiu voando de casa para ir ao encontro dos outros retalhadores de elite, que se juntaram no lugar de sempre. O frio da noite não a impediu de ir para lá usando apenas uma camisa vermelha, uma calça comprida branca com listras pretas e os pés descalços. 

 Abriu bruscamente a porta e viu que era a única faltando. A sala de reuniões era pequena, só uma lâmpada branca a iluminava inteira, o chão foi coberto com azulejos de cor azul metálica e no centro foi posta uma mesa de madeira, em torno da qual ficavam as dez cadeiras dos integrantes do grupo. Arashi cedeu o lugar para Hayate e ficou de pé, encostado na parede não rebocada, de braços cruzados. Seu rosto estava frio, indecifrável. 

Pouco foi dito. Só o que lhe relataram foi a quantidade de gente assassinada, os locais em que as mortes ocorreram e as horas do óbitos. Kande, uma moça parda de altura mediana, cabelos castanhos amarrados para trás e olhos escuros, entregou papéis em suas mãos. Kin os pôs sobre a mesa, desistira de aguardar um comentário sarcástico dela sobre as roupas com as quais veio.

A exceção de Kin, todos os membros da equipe de elite trajavam seu uniforme unissex, que consistia em uma jaqueta preta, uma camisa branca com o logo ariano na frente e nas costas, uma calça cumprida preta e um par de botas. Hayate, como de costume, estava de terno preto, camisa social branca abotoada de cima a baixo, calça e sapatos negros.

 — Não temos o paradeiro do criminoso? — Sua voz soou fraca devido a ter acordado poucos minutos atrás, seus olhos expressavam cansaço mas o sono que eles transmitiam pouco a pouco desaparecia. 

— Muitas dessas pessoas morreram ao mesmo tempo. — Disse Gray, o "don Juan" da organização, dupla de Kande. Um rapaz branco, alto, com franja loira, olhos cor de mel quase verdes e porte magro, vivia cercado de garotas, admiradoras. Exibido, raramente ficava de boca fechada. — É difícil saber onde ele esteve.

— Ou "eles". — Inari, parceiro de Hana, falou. Negro, jovem, cabelos escuros bem cortados, encaracolados e olhos castanhos, em seriedade e poder de análise só não superava Arashi. — Até onde sabemos podem ser múltiplos inimigos, invasores. 

— Quem se atreveria a invadir o Reino de Órion? — Mahina, a garota com o mais bondoso e sensível coração do time, companheira de Kenichi, contribuiu para a discussão. Dona de olhos e cabelos lisos curtos muito negros, de uma pele extremamente clara e de um corpo pouco acima do peso ideal para a sua altura, também não fechava a matraca. 

— É isso ou suspeitar de um dos nossos, o que levanta mais questões do que responde. — Opinou Hana, a garota mais velha entre os dez. Alta, morena, magra, bastante bronzeada, sua característica física mais marcante era a franja que tapava metade de sua face, poucos podiam dizer que sabiam a cor de seus olhos. 

— O que há para saber? — Kenichi, um caucasiano de modos rudes e voz estridente, ajeitou-se no banco e se inseriu na conversa. Os cabelos vermelhos espetados e bagunçados, as sobrancelhas rubras cortadas ao meio, a espada grossa prateada de dois metros ao seu lado e a tatuagem "k" no lado esquerdo de seu nariz davam uma prévia de sua agressiva personalidade. — Vamos de rua em rua até achar o arrombado e o matamos!

— Vai na frente! Se sobreviver, nos diga como foi, vamos esperar aqui...! — Shin o provocou. Gostou de ouvir a maneira desleixada com a qual Kenichi queria lidar com o problema, já que nunca foi com a cara dele. Sempre que os dois ficavam juntos no mesmo lugar rolava briga ou discussão. Os cabelos curtos, negros e lisos de Shin, a pele clara, os olhos fechados e os outros traços típicos dos orientais que nele predominavam não diziam, mas sua personalidade era explosiva como a de Kenichi, por isso era natural que entrassem em conflito um com o outro. 

Kenichi ia levantar para começar uma discussão, mas Emi se meteu na confusão antes que ela acabasse com alguém tendo que separá-los.

— Vocês dois: quietos! Depois do último show, nenhum dos dois têm o direito de falar nada! — Mesmo com a finalidade de repreender, o magro rosto alvo de Emi permanecia inexpressivo e seus olhos violeta disseminavam mansidão. Tinha um nariz fino, pequeno, em contraste com os lábios rosados carnudos abaixo dele. Suas tranças lisas, cumpridas, presas amarradas para trás e castanhas claras quase loiras, eram, no seu ver, o penteado feminino mais prático existente para combates. 

— Emi tem razão, mais uma discussão e terão que se ver comigo! — Kin concordou com ela, já não suportava mais a rixa estúpida deles. Após a bronca, recuperou a calma, releu os papéis e perguntou para Arashi: — O que você acha? 

— A ideia do Kenichi não é tão ruim. É a melhor que nós temos, ainda mais se a hipótese do Inari estiver correta. — Disse o que pensava, em resposta. Tirou as costas da parede, descruzou os braços e andou até a mesa. — Nós nos dividimos em duplas, saímos pelo reino e contactamos o restante da ordem caso encontremos algo ou alguém. Todos aqui somos velozes o suficiente para romper a barreira do som, não demoraremos muito para esquadrinhar o país todo. 

Hayate se pôs de pé e, com os punhos sobre a mesa, fez o seguinte comunicado:

— Peço que não passem do amanhecer. Após isso, esses assassinatos se tornarão problema meu. Isso é tudo. 

Ninguém discordou dele. Era exatamente uma hora da manhã, se com tantas horas disponíveis nem os retalhadores de elite dessem conta daquilo, só mesmo a intervenção de um dos ministros em pessoa para resolver as coisas. Por outro lado, nenhum deles até o presente dia falhou alguma vez com Hayate, nem individualmente e nem em dupla. Não iria ser hoje, com todos os dez trabalhando juntos, que isso ocorreria. 

Esse dia vai entrar pra história, era basicamente o pensamento de todos dentro daquela sala. 

Kenichi jogou seu grande montante no ombro e saiu reino a fora com Mahina para procurar o assassino. Ele não parava de sorrir. Trabalhar com Arashi e Shin era sua grande chance de provar que era melhor do que eles, não a desperdiçaria: ouvir as afrontas do asiático e a derrota que sofreu há uns anos pelas mãos do parceiro de Kin eram feridas das quais não conseguia se recuperar. 

 A falta de iluminação nas ruas do reino o tirava do sério. Detestava trabalhar a noite porque ali, como na maioria dos lugares, os postes de luz eram desligados após as zero horas. Seus únicos guias eram o brilho da lua e o blábláblá de Mahina, que comentava qualquer vulto ou sombra que considerava suspeitas. Ela o estressava de maneiras inexplicáveis. Para disfarçar o irritante som de sua voz, decidiu usar a velha tática de andar na frente dela arrastando a lâmina pela terra.

 Meia hora de caminhada depois, não viu nada. Estava aborrecido. Só a ideia de qualquer um dos outros localizar o inimigo antes dele já o fazia ficar trêmulo de raiva. Em certo momento, enquanto percorria a escura esquina de uma estreita mas ampla via, avistou uma silhueta humana próxima da terceira casa. Ganhei na loteria, concluiu, sorriu e voltou a apoiar o montante no ombro.

— Cala a boca por um maldito minuto, eu acho que vi alguma coisa! — Seu linguajar já foi a causa de muitas intrigas com Mahina, mas ela aceitou que esse era o seu jeito de ser, que ele tratava todo mundo assim e que jamais mudaria.

Lentamente se aproximou do local em que a pessoa estava, sua parceira o seguia pouco atrás. O barulho de seus pés esmagando os chumaços de mato do caminho despertaram a atenção do alvo, que moveu o rostinho em sua direção. É uma criança, deram-se conta.

Kenichi baixou a guarda e fechou a cara, decepcionado. Apenas um menino, estático, com os braços esticados e de costas para os dois. Verdadeiro cenário de filmes de terror, os dois teriam ficado apavorados se na vida não tivessem visto coisa muito pior. 

Muito bem asfaltada, aquela rua não tinha muitas casas, mas suas calçadas eram limpas e um enorme terreno repleto de cargas de ferro ocupava a maior parte de seu lado direito. O lado esquerdo, contudo, tinha cinco residências lado a lado, todas semelhantes na cor cinza mas diferentes na arquitetura, somente as três primeiras possuíam dois andares. 

 O que uma criança fazia sozinha na rua aquela hora da madrugada?, era a pergunta de um milhão. Kenichi ficou de longe com a espada no ombro olhando sua companheira se aproximar do garotinho. 

— Oi, anjinho! — Mahina tinha bom jeito com as crianças, precisava admitir. Sua outra opção de carreira era professora de primário. — Não pode ficar aqui fora, está escuro e muito frio. Onde está a sua mamãe? 

Silêncio total, a criança sequer se movia ou dava um sinal de vida. Kenichi começava a estranhar, a achar que havia algo de errado.

— Mahina, sai daí... — Aconselhou, vagarosamente removendo a arma das costas e cautelosamente se acercando deles.

— Por quê? É só um menininho, abaixa essa espada! — Retrucou. O achava capaz de muitas coisas, só não de machucar um serzinho indefeso daqueles.

 A criança provou que era mais perigosa do que aparentava ao girar e atacar Mahina com um soco do qual, devido a distância, nem ela teria sido capaz de se esquivar, Kenichi teve que entrar em ação e colocar o montante na frente do golpe para protegê-la. Quanta força, pensou, surpreso com a brutalidade do soco. Sorriu maliciosamente. Pelo menos poderia esquartejá-la sem sentir culpa ou ser julgado, foi a lógica que lavou sua consciência, no meio de um movimento com o montante que arremessou o menino para longe. 

Vários quilômetros ao noroeste dali, Gray e Kande ainda estavam desorientados, não haviam encontrado nada. Se não fosse pelo aviso de Mahina, nem saberiam se existia algo para procurar. O loiro ficou fulo por ter sido passado para trás. Pelo menos não foi pelo Arashi, foi a linha de raciocínio que o consolou.

Gray autoproclamava-se o maior rival de Arashi, por quem foi derrotado na briga pelo posto de parceiro de Kin na equipe de elite. O desafiava toda vez que se viam, mas ele sempre arranjava uma desculpa para cair fora. Sonhava com uma revanche, vivia repetindo para si mesmo e para quem quisesse saber que um dia lhe daria o troco pela humilhação, treinava cem vezes mais duro que ele com esse objetivo.

 Kande era muito mais na dela. Não tinha rivalidade com ninguém, nem arqui-inimigos ou uma meta a atingir, só se tornou retalhadora de elite porque seu estilo de vida começou a entediá-la e quis provar para si mesma que podia, só para sair da zona de conforto na qual se confinou. Seu corpo era o de um ser de essência, mas seu coração era o de um ser humano comum. Nunca quis uma vida muito agitada. Sua aparência, sem maquiagem, joias, tintura no cabelo ou qualquer enfeite, refletia sua personalidade. 

 — Já vai dar duas horas da manhã...!! — Gray, muito impaciente, lhe disse as horas pela terceira vez desde que deixaram a sala de reuniões. Resolveram parar na frente de um bar fechado, ela encostou no poste de energia e cruzou os braços, ele ficou para lá e para cá. 

— Sossega aí, Gray! — Toda aquela movimentação dele a irritou. — Talvez o inimigo seja um só e o Kenichi e a Mahina são os únicos que vão se divertir hoje. E vai ser bem melhor se for assim, eu tô morrendo de sono... — Tanto era verdade que bocejou enquanto falava.

Sua escolha da palavra "diversão" encheu a mente do loiro de ideias. Ele chegou nela e sedutoramente falou: 

— Isso não é verdade, nós também podemos nos divertir. 

Kande deu dois tapas em seu ombro e o rejeitou:

— Não quero me tornar o alvo das suas admiradoras. 

Mas olhou de relance para cima e notou que algo, a uma altíssima velocidade, estava para cair sobre os dois, então empurrou Gray e se jogou em cima dele, saindo da reta do objeto em queda livre. Fosse o que fosse, a coisa atingiu o chão com uma força assombrosa, ergueu uma grande nuvem de poeira em que ficou oculta por uns breves instantes e formou uma cratera no solo. Revirou os olhos e rolou para o lado ao reparar no olhar e no sorriso pervertido de seu parceiro. 

 Tossiram caídos, afastaram o pó dos olhos com as mãos e deram tapas nas próprias roupas para remover delas a terra que as impregnava. Se ajudaram a ficar de pé e, juntos, tentaram ver através da cortina de poeira para saber quem os atacou. Enxergaram o que parecia ser a sombra de uma criança, os destroços se dispersaram e provaram que eles estavam certos. Beleza, Gray comemorou. Conferiu se a descrição batia com a que foi dada por Mahina. Expressão vazia, palidez, força extraordinária... Do jeitinho que ela disse que era, confirmou. 

Ao invés de um menino, era uma menina. Uma pobre, descalça e magrinha garotinha loira de cabelos cumpridos e longo vestido branco florido. Como lutar contra uma criaturinha fofa daquelas, ambos hesitavam. Gray principalmente. Se fosse um menino aquilo seria muito mais fácil. Ainda seria difícil se tivesse a idade dela, mas mil vezes mais tranquilo. 

Se você não vai, eu vou, Kande pensou olhando para ele, e começou a trocar socos com a princesinha de laço vermelho na extensa cabeleira dourada. A pequena guerreira se igualou à ela, provocando espanto nos dois. Chegou até a acertar-lhe um cruzado na cara e a forçá-la a recuar para montar um plano de luta. 

— Uau! — Exclamou Gray a quinze metros, boquiaberto. Aplaudiu a performance da menininha.

— Você quer tentar?! — O indagou Kande, furiosa. A região golpeada de sua face ficou vermelha. Gray balançou negativamente a cabeça em resposta à pergunta feita. — Então fica caladinho!

Ofendida, Kande partiu para cima dando o máximo que tinha. Seu companheiro, a fim de evitar problemas, retrocedeu alguns passos. Nunca a viu lutar daquela forma pelo próprio orgulho. Lhe ocorreu que, certas vezes, assistir uma luta podia ser até mais legal do que participar. Será que é uma regra válida para outras áreas da vida?, se questionou, olhando a lutadora mais velha esquivar-se de um chute alto giratório mas errar dois diretos, o primeiro de direita e o segundo de esquerda.

Literalmente na outra ponta do reino, Kin investigava com Arashi uma das últimas ocorrências. Ela estava sentada no meio-fio, brincando entediada com as pedrinhas espalhadas ao redor do asfalto, ele parou de pé e de braços cruzados a poucos passos dela, olhando a última das casas que checaram. A notícia de que havia crianças matando retalhadores e civis acordou todo mundo, então só tiveram que bater na porta e pedir licença para ver se estava tudo bem.

Mas, pelo menos desde o último ataque, nada estava fora do normal por ali. A criança prosseguia desaparecida, a família que perdeu um dos seus pelas mãos dela chorava essa tragédia, contudo, não sentia ódio algum. Era apenas uma criança, como bem viram e relataram para a dupla de Retalhadores de Elite. Os dois bateram em todas as portas da região e falaram com todos os que os atenderam, mas ninguém, embora não houvesse um que não quisesse ajudar, sabia algo de útil. 

Então pararam ali, em frente a aquela fundação de três andares, para pensar e decidir que passo dar em seguida. Sem ideias, Arashi enfiou as mãos nos bolsos da calça e riu, muito nervoso, da situação. O que o confortava era saber que não havia gente morrendo, mas o desconhecimento do paradeiro do adversário tornava o cenário imprevisível. E ele detestava cenários imprevisíveis. 

— Relaxa, nós já fizemos tudo o que estava ao nosso alcance! — Kin tentava animá-lo. — Os outros não tiveram que procurar o inimigo, talvez ele ou ela venha até nós como aconteceu com eles...

Mais nervoso ainda, Arashi afirmou:

— Estamos deixando alguma coisa passar... 

— O que você acha que pode ser? — Tentou adequar-se à lógica dele. 

— São crianças matando. Algumas delas mataram retalhadores. Todas começaram a agir assim de repente? É claro que alguém está causando isso, alguém de fora, e nós temos que saber quem é, senão isso não vai parar!

Kin não tinha parado para pensar naquilo, mas não pensou porque outra coisa ocupava seus pensamentos, a mesma que ocupava os dele, senão ele já teria dito aquilo há mais tempo. Arashi estava nervoso pela mesma razão que ela: desde que escoltaram a princesa há seis meses, procuravam uma maneira de dizer o que realmente sentiam um pelo outro. Só expondo esses sentimentos voltariam ao normal, acreditavam. 

— Por que você disse "não" para a proposta da princesa? — Kin mudou completamente de assunto, depois de incontáveis minutos hesitando. A resposta dele no dia não soou convincente o bastante para ninguém, poderia ajudar o Reino de Órion até mais se ficasse e reinasse com Mai. Com certeza tinha alguém especial em Órion e Kin, esperançosa, achava que esse alguém podia ser ela. 

Arashi a encarou. Seu coração, ao mesmo tempo que recuperava a paz, espancava euforicamente seu peito como se tentasse escapar de dentro dele. É agora, pensou, andando até ela. Kin se colocou de pé. Quando ia proferir seus verdadeiros motivos, uma sombra se estendeu por sobre suas figuras e roubou sua atenção, fazendo-o olhar para a direita. Havia um menino parado muitos metros de distância deles, quase no final da travessa em que os dois se detiveram.

Várias outras crianças começaram a aparecer, uma seguida da outra. Três ao lado da primeira, duas em cima do edifício frente ao qual Kin e Arashi conversavam, mais duas no telhado da casa do outro lado da rua e cinco atrás da dupla guerreira. Extensivamente cercados, tomaram a sábia e esperável decisão de dar-se as costas para um cobrir a retaguarda e os demais pontos cegos do outro.

 Shin, com a tutela de Emi, terminava de derrotar uma das crianças num imenso matagal. Porém, mais foram surgindo. Contactou Inari e soube que ele e Hana estavam com o mesmo problema. Inari falou com Arashi, que no minuto da ligação fechava Kin e a si mesmo entre quatro muralhas para escudar-se dos ataques dos pequenos e os aprisionava com correntes. 

— Kin e eu vamos decidir o que fazer, e então ligamos quando soubermos. Tomem cuidado. — Os advertiu, desmontando as paredes de gelo, encerrando a chamada e cerrando no chão as crianças assassinas, com correntes ao redor da cintura e dos braços. — É como eu falei, isso não vai parar enquanto não acharmos a verdadeira causa. 

 — Como vamos localizá-la? — Kin sinceramente o questionou.

Arashi pensou um pouco.

— Você tem o poder de sentir energia. Talvez elas estejam sendo controladas a distância por chikara, toque uma das crianças para tentar rastrear a fonte desse poder. — Sugeriu, ansioso. 

Kin selecionou a que aparentemente era a mais nova delas, um menininho com cabelos e olhos semelhantes aos de seu irmão. Se agachou, tocou com o dedo indicador a testa do garoto e fechou os olhos à procura da origem do poder que o manipulava. Para motivar-se, pensou no que faria, no que sentiria se Haru estivesse entre aquelas crianças. Levou uns segundos mas conseguiu

— Lá! — Enfurecida, apontou para o alto, ao sul dali. Arashi avistou uma nave no céu onde o dedo dela indicava, tão distante da superfície que até a quem tinha boa visão pareceria um inofensivo pontinho negro.

As crianças começaram a se libertar das correntes nas quais o guerreiro glacial as prendeu, como se tivessem se tornado mais poderosas de um instante para o outro. Arashi interpretou isso como um sinal inequívoco não só de que Kin estava certa como também de que, por meio dos olhos e dos ouvidos dos pequenos, a pessoa que os manipulava tomava conhecimento de tudo. 

— Vá atrás da nave, eu cuido disso! — Gritou para sua parceira. Notou que ela não queria abandoná-lo ali, portanto prometeu: — Eu vou ficar bem, ainda temos uma conversa para terminar!

Kin assentiu, expandiu seu volumoso par de asas douradas e voou, voou tão alto, com tanta força e velocidade que despedaçou completamente a parcela do solo sobre a qual pisava. As crianças comprovaram mais uma hipótese de Arashi ao tentarem ir atrás dela, ele atirou correntes em seus pés e não permitiu que elas a seguissem. 

Centenas de meninos e meninas o encurralaram, nem se quisesse iria conseguir fugir delas. Se não podemos pegá-la, vamos pegar você, parece ter sido a lógica do adversário. Por não querer machucá-las, se encerrou num espesso iglu de gelo, se refugiaria dentro dele e torceria para ele suportar as pancadas externas até Kin derrotar o responsável por aquela confusão toda.

Mentiu para a loira na maior cara dura, a verdade era que não sabia se ficaria bem e menos ainda se sobreviveria, só tinha absoluta certeza de que queria viver, que graças à ela tinha os melhores motivos para lutar por si mesmo e seguir em frente.

 Invadir a nave não foi lá muito complicado, Kin só precisou de uma espada e do braço esquerdo — que nem era o seu braço dominante. Seu interior era curto, todo metálico e a cabine de direção ficava aberta, escancarada para a zona dos passageiros, que caso viessem sentariam-se nos bancos que estreitavam o corredor de sete metros de largura.

A causadora de todo aquele caos e mortes saiu da cabine de controle, recebeu Kin com as mãos nos quadris e um grande sorriso. Vestia um enorme macacão verde de piloto, era branca, de baixa estatura, tinha cabelos lisos, negros, curtos, uma franja cobrindo a testa e batom negro espalhado pelos lábios. Se chamava Akeno. Quando bateu os olhos nela, Kin imediatamente achou que a conhecia de algum lugar. Tratava-se de uma antiga inimiga de seus pais, recordou-se, que certamente estava ali em busca de vingança pelas derrotas passadas.

— Parabéns por ter chegado aqui, filha de Yume! — Sua fala transbordava de sarcasmo. — Nossa, como você cresceu! Eu te conheci quando você tinha esse tamaninho aqui...

A guerreira de elite investiu contra ela, agarrou-lhe o colarinho e agressivamente a alçou no ar para provar que não estava de brincadeira.

— Desfaça o que você fez e liberte aquelas crianças! Agora! — Ordenou. Ao vê-la rir, pôs a ponta da espada em sua jugular e a chacoalhou feito um saco de lixo. — Por que está tão confiante? Acha que eu não te mataria?! 

— Não, eu sei que você me mataria, conheço sua fama... — A contradisse, ainda sorridente. — O problema é que isso tornaria o meu feitiço... não, "feitiço" não é a palavra certa. Como vocês dizem mesmo? Ah! Minha técnica! Me matar tornaria minha técnica inquebrável! Acho que nem você e nem o Haru iriam gostar disso!

Akeno pulou para o lado e Haru se jogou sobre Kin numa velocidade sobrenatural, os dois atravessaram o banheiro, as paredes metálicas dele e foram parar fora da nave em queda livre. No ar, Haru, ainda agarrado aos braços da irmã, a esmurrava na cabeça e no estômago. Kin, sem coragem para revidar e ferir seu amado irmãozinho, o abraçou e abriu as asas para juntos aterrissarem em segurança, ele lhe deu um pisão e se distanciou de seus braços.

A surpreendeu mostrando que também tinha asas, voou na direção dela e lhe acertou um chute tão poderoso que a arremessou sobre um contêiner vermelho de aço, o qual seu corpo amassou, perfurou e dividiu ao meio pela violência da queda. Não foi nada, maninho, mentalmente o desculpou, reerguendo-se. Mas vai ficar de castigo por isso, o encarou depois de presenciar sua aterrissagem. Via interfone, comunicou suas descobertas aos outros retalhadores de elite.

O terreno transformado em campo de batalha pelo seu irmão era imenso, mas na terra os matos alcançavam quase um metro de altura e ao redor deles haviam várias cargas abandonadas. Podiam lutar ali o quanto quisessem, só não sabia como o enfrentaria se não tinha nem coragem de tocá-lo por medo de feri-lo, mas o local era praticamente perfeito para um bom combate.

— Não matem a mulher! — Repetia pela décima vez. — Pelo que ela me disse, matá-la torna a técnica irreversível! Pode ser um blefe, mas não podemos arriscar! 

Quase todos confirmaram tê-la ouvido. Quase. Arashi foi o único que não disse nada, o que a encheu de preocupação.

— Hana e eu terminamos por aqui, vamos atrás dela. — Avisou Inari. 

O guerreiro glacial continuava sem dar notícias.

— Arashi? — O chamou. Seu parceiro não respondeu, então perguntou aos outros se eles haviam falado com ele: — Algum de vocês conseguiu contato com o Arashi?

Todos disseram que não. Haru realizou uma investida contra ela, que foi forçada a interromper a chamada para se esquivar do soco dele. O pequeno desferiu mais um soco, seguido de outro e de mais outro, Kin os desviava com as mãos mas não ousava contra-atacar. Bloqueou um chute com a mão, desviou de um cruzado recuando, foi cegada pelo brilho que repentinamente veio dele, ficou vulnerável para o socão que ele deu em sua barriga e em sua cara e caiu rodando sobre o mesmo contêiner de antes. 

Levantou tonta, com as pernas bambas. Essa doeu, ajeitou o queixo, olhou bem para o baixinho e, assim que fez isso, teve certeza de que, por mais que ele a machucasse, jamais conseguiria vê-lo como um oponente, então baixou a guarda. 

— Eu desisto, irmãozinho. Não posso lutar com você. — Declarou. Aquilo era uma batalha perdida. — Mas sei que você ainda está aí dentro, em algum lugar. Se puder me ouvir, lute contra isso! Você, assim como eu, tem adormecida dentro de você a capacidade de superar Yume e Azin, essa invasora não tem chance contra nós!

A resposta de Haru aos argumentos dela foi uma investida impiedosa, um soco que a atirou para cem metros longínquos do ponto onde caíram. Cerca de dois mil quilômetros para oeste dali, Inari e Hana desciam uma série de escadas que davam num túnel subterrâneo mergulhado em escuridão. Viram uma mulher com a descrição dada por Kin descer de paraquedas naquelas proximidades, seguiram-na por algumas quadras e deduziram que ela havia corrido para lá. 

Hana odiava ficar acordada até tarde, estava de péssimo humor. O modo como trataria os outros ao decorrer do dia dependia de quão bem ela dormia. 

— Sabemos que está por aqui, queridinha! — A advertiu, aborrecida. — Eu já estava quentinha debaixo dos meus lençóis quando você começou com essa palhaçada, então eu tô puta! Estamos na porta, você não tem por onde sair... eu vou contar até cinco, se eu chegar no três e você não tiver aparecido, vou mandar tudo pelos ares!

Akeno cravou uma faca em seu ombro pensando que assim a deteria, Hana, agindo como se nada tivesse acontecido, só se irou mais, segurou firme a invasora pelo braço e lhe deu um soco no meio da cara, golpe que a fez tombar cinco passos para trás e dar de costas com a parede. Teve início assim uma luta na mais completa escuridão.

Hana acertou a parede com os punhos duas vezes, sua adversária tentou esfaqueá-la de novo, errou por um triz, Hana calculou a distância e lhe deu uma cotovelada na boca, Akeno foi outra vez para o chão. 

Inari iluminou a arena com uma espécie de energia verde e deu choques na cabeça de Akeno com a mão até ela desmaiar, salvando Hana de ser apunhalada no coração. Fazendo isso, sem saber, salvou também a vida de Kin, que estava levando uma surra do irmão mais novo já que se recusava a encará-lo como um igual.

Ao se ver livre do controle de Akeno, Haru instantaneamente desmaiou. Kin, com o olho esquerdo roxo, o direito inchado, a boca cortada e os braços contundidos, correu para agarrá-lo antes que ele sentisse a dureza e a frieza da terra, carinhosamente o abraçou como se nada daquilo tivesse ocorrido. 

Kenichi já ia matar a criança que estava lhe dando trabalho, a sorte foi que Mahina notou a tempo o minuto que o pequenino acordou do transe e se colocou entre eles de braços abertos. O ruivo freou o montante a poucos centímetros da testa dela.

— Comeu cocô!?  — Esbravejou, mais confuso do que irritado.

— Não percebeu que o transe acabou?! E nosso objetivo não era matá-los! — Retrucou, acolhendo o menino quando ele ficou inconsciente. 

Por toda a parte do reino, as crianças envolvidas no controle mental de Akeno caíam como dominós. Shin, Emi, Gray e Kande, os mais desinformados, entenderam tudo após Hana explicar. Kin falou um endereço e perguntou quem estava mais próximo dele, Gray e Kande tomaram para si a responsabilidade de ir até lá e acharam Arashi sentado no meio-fio de costas para o poste — com o rosto todo inchado e um braço quebrado, mas acordado.

As crianças, ao contrário, dormiam profundamente espalhadas pelo asfalto, a maioria de bruços e outras de peito para cima. Kande ajudou Arashi a ficar de pé, Gray o apoiou em seu ombro e lhe serviu de muleta, não sem dar algumas risadas de seu estado.

Eles deixaram o guerreiro glacial no hospital mais próximo, onde ele passou a noite. Pela manhã, a primeira imagem que agraciou seus lesionados olhos e embaçada visão foi a do rosto de Kin, que arrastou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama dele naquele minúsculo quarto azulado. Mesmo com um curativo cobrindo toda a vista esquerda, um outro tapando a têmpora direita e um em cada canto da boca levemente inchada, ela fez suas pupilas dilatarem.

— Nossa, você tá todo ferrado! Anotou a placa? Tá péssimo! — A loira, entre risadas, resolveu tirar sarro dele. O roto falando do esfarrapado.

As gargalhadas dela o contagiaram.

— Você também! — Respondeu, com dores intensas que, por causa do burburinho deles, se irradiaram para todo o seu corpo.

 Pararam de rir e seus olhares se encontraram. Pensaram, em sintonia, que aquela foi mais uma boa da qual os dois saíram com vida. O relógio estava correndo, não podiam passar mais um dia sem declarar seus sentimentos um pelo outro e iam usar aquele tempo para fazer isso, mas Gray e Kande entraram na sala, os atrapalharam. Aparentemente não haviam dormido pois vestiam as mesmas roupas da madrugada.

— Aí está o cara que apanhou de crianças! — Foi o "bom dia" de Gray.

Arashi revirou os olhos e virou-se para a janela.

— Não vai esquecer disso tão cedo, né? — Perguntou, já antevendo ali mesmo seus futuros reencontros. 

— Claro que não, você apanhou de crianças! Isso foi hilário!

Arashi cedeu, reconheceu a ironia das circunstâncias e se juntou a ele nas risadas. Um ser de essência, guerreiro de elite, melhor entre os melhores, apanhando de crianças. Kande e Kin se uniram aos dois para rir, zoar uma a outra e brincar um pouco. Raras vezes em suas carreiras tinham tempo para momentos como aqueles juntos, sabiam que ele não duraria muito e que precisavam aproveitá-lo. Voltaram a ser crianças, ou, mais precisamente, os pré-adolescentes que eram.

Fim.


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