As Lendas dos Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 6
— God save the princess II




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God save the princess II

O canoeiro só não conseguiu matar a princesa porque Arashi a empurrou para trás e recebeu o golpe em seu lugar, tendo o peito atravessado em vez dela. Que velocidade, dizia o garoto em pensamentos. Não contavam com um ataque tremendo daqueles. 

Kin esmurrou a cara do velhote com toda a força que conseguiu reunir naquele minúsculo espaço de tempo, mas não pôde nocauteá-lo de primeira. O canalha os surpreendeu mais uma vez ao ficar de pé. Desferiu dois socos contra o rosto da loira, ela se esquivou de ambos, o socou na barriga, se agachou e desviou de uma cotovelada, encaixou um gancho de direita no queixo dele, levou a mão ao colarinho de sua camisa e o ergueu no ar.

— Quem é você?! — Esbravejou, enfurecida. O chacoalhou ameaçadoramente. — Como soube que rota pegaríamos?!

Em resposta, o canoeiro riu. Sem largá-lo, Kin selvagemente o atirou de cabeça na canoa, pisou seu rosto e o elevou novamente o mais alto que pôde. 

— Responda! — Arashi ordenou, apontando-lhe a espada. 

O velho, sustentando a expressão zombeteira na face castigada pelo tempo, dirigiu os olhos para Mai. 

— Me ofende você não lembrar de mim, minha sobrinha. — Foi o que disse, causando espanto não só na menina, mas também na dupla de guerreiros eleitos para realizar a sua guarda. 

Uma tempestade de memórias caiu sobre a mente da alteza. Lembrava-se dele bem vagamente, tinha por volta de quatro anos quando ele habitou o palácio de seus pais. É claro. Sua mãe lhe contou a história dezenas de vezes. Por isso ele tentou me matar...? Mai ficou paralisada enquanto o fitava.

Kin o socou no nariz. 

— Vou perguntar de novo! — Resmungou a loira. — Como sabia que viríamos por aqui?!

— Terão que descobrir por si mesmos! — Bradou ele, acertando o joelho na cara da orioniana. Se viu solto novamente.

A retalhadora de elite se recuperou do golpe em segundos, esquivou-se de um jab, de um direto, abaixou-se para seu aliado arremessar a espada nele e, enquanto via-o distrair-se desviando do projétil lançado por Arashi, apunhalou-o na barriga. Fim de luta, decretou mentalmente, enterrando mais fundo no estômago do adversário a lâmina de luz que tinha em mãos.

Parou de encravar a katana quando constatou que não existia mais vida nos olhos dele, desmaterializou a arma e o atirou para fora da canoa com um pisão. Sentou-se respirando aliviada. Por um segundo deslembrou-se do ferimento que seu companheiro e amigo conseguiu no peitoral, mas assim que recapitulou a cena correu para ver como ele estava. 

Arashi se assentou de costas para a borda da canoa fazendo pressão no machucado com a mão. Kin o examinou em uma olhada rápida, ajoelhou-se e perguntou:

— Tá tudo bem?  

— Sim, não perfurou muito fundo, eu protegi meu coração com uma camada de gelo. — Respondeu, retirando a mão de cima da lesão para que a loira a visse por si mesma. 

Mai prosseguia parada onde estava desde o ataque, como que congelada no tempo. Seus olhos, embora abertos e voltados para uma direção, pareciam não pairados em algo material. Caiu numa espécie de transe proveniente dos traumas que viveu há pouco, seu cérebro e seu coração ainda processavam as informações mais recentes. Kin a encarou por quatro vezes, mas em nenhuma delas compreendeu que a futura rainha de Ácamar não estava exatamente bem. 

Na quinta vez entendeu, então a cutucou. Sem resposta decidiu chamá-la:

— Princesa Mai? — Apesar disso, a garota continuava estática. Trocou olhares com Arashi como se lhe perguntasse o que fazer, estalou os dedos na frente dos olhos verdes de Mai e insistiu: — Oláá? Senhorita Mai, você tá aí? 

A princesa deu sinal de consciência, os acalmando.

— Ah, oi, desculpa, é que eu tava pensando numas coisas. — Justificou-se. Virou-se para Arashi. — Como você tá? Eu não consegui ver muita coisa por causa da velocidade, mas percebi que você levou um golpe em meu lugar. Obrigada. 

— Vou ficar bem, é um ferimento superficial. — Afirmou, tranquilizando-a. — E não precisa me agradecer, só cumpri com minha obrigação. — Ficou de pé, apontou para o leste e as alertou: — É pra lá que temos que ir. Sabia que havia algo de errado quando aquele cara começou a remar pro norte. 

Kin pegou o remo que sobrou, girou a canoa a base de pura força e seguiu na direção por ele apresentada. Arashi encostou as costas na canoa e pôs os miolos para funcionar novamente. Como ele poderia saber por qual rota seguiríamos? Por mais que tentasse, não imaginava uma resposta razoável para esse dilema. Apenas Kin, Hayate e ele sabiam por que caminho escoltariam a princesa. 

Pôs o tato e a visão para trabalhar, queria analisar a estrutura do meio de transporte que usavam para se locomover pelas águas. Buscava algo suspeito, algum tipo de rastreador que aquele pulha podia ter esquecido na canoa antes de afrontá-los e morrer. Tem que ter algo por aqui, matutava. O que é? Pense, Arashi, se motivava. Pense. 

 Se estivesse dentro de um desenho para crianças, uma lâmpada teria se acendido sobre sua cabeça: teve um de seus famosos lampejos de genialidade investigativa. 

— Princesa Mai, as jóias... — Intuiu que havia um localizador em pelo menos uma delas, mas todas com certeza custaram muito dinheiro portanto queria se certificar antes de tomar uma decisão sobre seu destino. — Onde as conseguiu? 

Mai ficou mais devagar após a investida assassina de seu próprio tio, portanto precisou de mais tempo que o habitual para trazer fatos tão antigos à baila. Verificou uma por uma, deslizou os dedos pelo pingente do fino colar de ouro, pelos diamantes dos brincos e lembrou sua origem.

 — Os brincos minha mãe me deu, o cordão eu comprei no Reino de Órion. — Serenamente redarguiu. A mesma expressão vazia de outrora persistia em sua face. 

— Deixe eu ver o cordão. — Pediu, pondo a mão no pingente antes que a princesa o retirasse do pescoço. Escorreu vagarosamente o polegar até a pedrinha de esmeralda nele contida. Franziu as sobrancelhas. A alteza deu o colar em sua mão, ele o levou para Kin como um leigo querendo descobrir a legitimidade de um artefato raro e perguntou sua opinião: — Você sempre teve mais sensibilidade a chikara do que eu. Sente alguma energia nele? 

Kin alisou a pedrinha com a ponta do dedo indicador, identificou exatamente o que Arashi procurava e, em tom de denúncia, falou: 

— Tem chikara aí dentro!

— Na mosca! — Comemorou, por dentro. Por fora se limitou a sorrir e contemplar o apetrecho, perpassando os dedos por entre os cabelos e jogando-os para trás. Aquela descoberta os deixava tantos passos a frente dos inimigos que ficou feliz, não via como podiam ser derrotados. — Agora a vantagem é toda nossa!

Provando que estava em sintonia com ele, Kin concebeu uma estratégia envolvendo o cordão para desvendar a quantidade de criminosos que os perseguiria com o fito de raptar a princesa. Reuniu seus dois aliados numa roda e, juntos, discutiram a ideia. A concordância sobre a qualidade do plano foi unânime: os três gostaram, mas a correta execução dele dependia de uma rápida chegada à terra firme. Essa exigência não tardou a ser comprida.

Abandonaram o barco em um pântano próximo. Arashi, com a princesa na cacunda, seguiu numa direção; Kin, com o amuleto em mãos, correu para a oposta. O terreno não era lá muito grande, então o guerreiro glacial o esquadrinhou e cobriu inteirinho com suas armadilhas em segundos — Kin conhecia todas e sabia de cor o local onde elas foram ocultas, não corria riscos de cair em nenhuma. Dali em diante só precisavam esperar.

Eles começaram a dar as caras. Arashi transitava distraidamente entre as árvores quando por acaso avistou um dos meliantes de costas para a sua direção. Fez uma pausa na corrida. Estão que nem baratas tontas, como o esperado. Deixou Mai num canto seguro fora da vista de qualquer um, se achegou desapressadamente no infeliz desapercebido e pôs uma faca de gelo em seu pescoço, rendendo-o.

O sujeito, vestido feito um ninja, instantaneamente soltou a katana que portava. 

— Você vai me dizer o que eu quero saber se quiser sair vivo daqui. — Foram as poucas palavras inicialmente sussurradas por Arashi, que não achou necessário nem tapar-lhe a boca com a mão. — Para quem você trabalha? 

 — Pra mim mesmo. — Respondeu o indivíduo, de mãos para o alto. Suas roupas eram negras, uma máscara acobertava todo o seu crânio com a exceção de seus olhos. — Vi um anúncio oferecendo uma grana pela cabeça da princesa e corri pra cá, foi só isso! 

— Onde viu esse anúncio? 

— Num poste de uma das cidades do Reino de Ácamar, aquele lugar tá uma loucura!

Um grito desconcentrou o jovem Guerreiro de Órion, o homem sob seu domínio tentou se valer disso para escapar mas Arashi foi mais ágil: cortou-lhe a jugular para proibir-lhe de causar problemas, o largou morto e voltou para onde escondeu a preciosa filha do rei. Ela não estava mais lá. 

 Merda, se maldisse mentalmente. Merda, merda, merda, se flagelava enquanto corria floresta a dentro para achá-la, fatiando com sua espada as árvores no caminho e pisoteando o lodo nervosamente. A avistou há segundos de ser morta. O meliante parou quando o viu e apontou um revólver para a testa da garota, que não podia mais gritar pois teve a boca amordaçada. 

O bandido engatilhou a arma e sorriu. Arashi inclinou a cabeça para Mai como se dissesse que tudo ia ficar bem e mexeu o pé direito: uma lança de gelo veio pela esquerda em alta velocidade e atravessou a cabeça do patife, que caiu morto na mesma hora.

Em estado de choque mas livre, fisicamente bem, a alteza, em lágrimas, abraçou seu herói com todas as forças. 

— Aguenta firme. — Dizia-lhe ele, retribuindo o abraço. — Logo vamos sair daqui. Prometo que você vai voltar pra casa sem um arranhão

A menina o beijou num gesto surpresa. Estupefato, não a afastou nem repreendeu: fechou os olhos e deixou rolar. Durou quinze segundos e ela decretou o fim. Constrangido após o término, agiu como se nada tivesse acontecido, deu-lhe as costas e tocou o solo congelado com a ponta dos quatro dedos da mão direita — usou seu sensor para tentar calcular a localização de Kin. A achou, puxou a ruiva pela mão e, correndo, se retirou dali com ela. 

 Chegou onde Kin lutava. Tarde demais. A loira, sozinha, matou todos os malfeitores que ofereciam riscos à vida de Mai, não deixou unzinho vivo ou bonito o suficiente para um funeral. Estava suja de sangue, cercada de cadáveres trucidados mas seu cenho não esboçava um mísero traço de cansaço. A vista provocou ânsia de vômito na majestade, que não quis que o garoto que gostava a visse regurgitando e foi fazer isso num canto bem longe dele. 

Arashi ia atrás dela, Kin o deteve:

— Deixa que eu vou, você já foi carinhoso demais com ela!

Levou uma ombrada da loira. Como é? Se indagava, confuso. Não entendia a razão de tamanha hostilidade. A seguiu, fez uma série de perguntas mas não obteve resposta para nenhuma. Desistiu de tentar compreender. A retalhadora saiu andando na frente e, ao passar por Mai, gritou: "vamos voltar pra canoa", com a voz impregnada de raiva. 

Mai, muito pálida e cansada, não se parecia mais tanto com a imponente sucessora do trono de Ácamar que Hayate apresentou aos dois, horas atrás. Arashi não deixou isso passar batido.

— Você tá bem? Foi mordida por algum inseto? — Perguntou.

— Não é nada, é que eu não tô acostumada com tudo isso. — Forçou um sorriso e lhe respondeu, durante a caminhada até a canoa. — Tô horrorosa, né? 

— N-não, não foi o que eu quis dizer, é que você só não parece a mesma de hoje cedo... — Se esclareceu, retraído. 

 Kin, na frente da canoa, virou a cara e cruzou os braços quando os viu chegar. Seu mau humor continuou visível, o que só fez intrigar seu companheiro ainda mais. Ele não tinha ideia de o que podia tê-la enraivecido tanto — e olha que a conhecia desde que se entendiam por gente. Ou melhor, achava que a conhecia, pois agora começava a duvidar. 

A princesa, se sentindo mal no fundo, sorriu. Não por maldade, mas porque entendeu numa tacada que bicho tinha mordido a loira. Inclusive, parou para pensar nisso. Um dia atrás definitivamente não teria sentido empatia por alguém com quem disputava um garoto, menos ainda se sentiria má por vencer. Tinham razão os que diziam que vislumbrar a morte era uma experiência capaz de transformar vidas.

Sentaram no barco. Sem proferir uma frase ou lhes dirigir o olhar, a guerreira de elite remou. Foram quinze minutos de apenas silêncio, o único som escutável era o das águas obedecendo o movimento do braço de Kin e saindo de seu caminho. Arashi permanecia sem entender a situação, um estado nada familiar para ele. 

— Acho que ela também gosta de você. — Disse-lhe Mai, na tentativa de ajudá-lo a saber o que Kin tinha. A retalhadora estava a uma distância confortável para eles conversarem o que quisessem. Ele olhou Mai ainda mais perdido, só que agora assustado. — Para e pensa. Garota nenhuma fica irritada assim sem razão, ela viu a gente se beijando e ficou magoada! Isso é ciúme!

Arashi não contra-argumentou, olhou para Kin e notou que já não a via mais da mesma forma que segundos antes de saber aquilo. Concordou que o silêncio era a melhor opção. Claro que já suspeitava do que Mai acabou de lhe revelar, que desde o último natal pensou várias vezes em como seria se ficassem juntos, mas não achava que fosse tão sério. Ela não tocou no assunto, portanto achou melhor fazer o mesmo. 


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