As Lendas dos Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 14
— Fotografias




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— Fotografias

Seis meses se passaram desde que os Guerreiros de Órion derrotaram Kikuchi e seus subalternos. Yue se tornou cidadã do Reino de Órion e Arashi curou Saori com a ajuda de Sora que, ao contrário de Yue, não quis ficar no reino: decidiu que vagaria pelo mundo como um guerreiro sem pátria e foi embora sem sequer se despedir. A novata passou seu tempo na academia e, em cinco meses, formou-se retalhadora junto com Haru, desde então os dois vêm esperando seu primeiro trabalho fora do reino. 

Numa manhã muito fria em cujo sol brilhava límpido no céu, Kin despreocupadamente, sentada no sofá de sua sala, anotava algo em seu caderno, os detalhes menos interessantes do lado profissional de sua vida. Ela não esperava ação alguma daquele dia. Estava usando sua calça comprida branca de pijama, uma camisa azul bebê de mangas curtas e seus pés estavam descalços. Parecia perfeitamente relaxada. 

Alguém bateu em sua porta. Ela marcou a folha do caderno com a caneta, o fechou, deixou em cima do sofá, levantou-se e abriu a porta. Era Arashi. Seu coração saltitou de felicidade, um sorriso involuntário tomou conta de seu rosto. Achava impressionante como, mesmo depois de tantos anos, permanecia apaixonada por ele. 

— Oi! — O cumprimentou, abraçou e deu um beijo no canto da boca dele. Ele retribuiu os gestos, mas só conseguiu abraçá-la usando um dos braços, pois o outro estava ocupado com um grande álbum preto. — Entra aí. 

Ele tirou o casaco negro de capuz que vestia sobre a camisa vermelha abotoada e se sentou no sofá, ao lado do caderno dela. A loira retirou o caderno da almofada, o pôs no colo e só então reparou no objeto que Arashi carregava. 

— Eu recebi isso daqui hoje. — Disse-lhe ele, enigmático. 

Kin chegou ainda mais perto dele e, olhando para o nome que ilustrava a capa escura do utensílio, jogou a cabeleira enrolada para trás do ombro e perguntou:

— De quem?

Arashi não parava de olhar aquele nome. "Karina Iozuki". Ele despertava um sentimento familiar no fundo, bem lá no fundo de seu coração, algo que o incomodou desde o momento que pegou aquele álbum com as mãos, mas sua consciência não conseguia assimilá-lo. 

— Esse nome não me é estranho. Eu sei que já conheci alguém que se chamava assim, mas não consigo me lembrar. — Compartilhou sua confusão com Kin. 

— Já abriu? — Kin quis saber, quase tão curiosa quanto ele. 

— Já. — Respondeu o rapaz, abrindo-o, daquela vez, para ela ver. — Tem fotos minhas com meus pais e meus irmãos. 

 A retalhadora loira sorriu emocionada. Tinha fotos dele com um mês de idade, com dois anos engatinhando, de Saori e de Isamu nos braços dos pais e havia uma em que Arashi, com quatro anos, segurava Isamu.

 — Owwn, você sempre foi bonito! — Kin exclamou, sorridente, enternecida. Sentiu, em certo instante, que estava sendo insensível, então encheu-se de culpa e tristeza. Se seu coração ficou mexido, imagine o dele. — Você tá bem? 

Arashi, como que imerso em pensamentos, demorou um pouco para responder, mas procurando algo mais naquele álbum, respondeu:

— Tô... Tô, desculpa, eu não devia ter vindo pra cá com tanta energia negativa

Kin deu uma risada, dobrou as pernas no sofá, deu um soquinho no ombro dele e retrucou:

— O trocadilho foi intencional?

Ele deu de ombros e sorriu.

— Foi pra quebrar o gelo. — Brincou de novo. 

— Me empresta aqui. — Pediu ansiosa, tomou o álbum das mãos dele e o examinou sozinha. Em poucos segundos encontrou um endereço, e depois disso olhou Arashi como se não o conhecesse. Realmente, o Arashi que conhecia não teria deixado um tal "detalhe" passar, o que a levava a acreditar que aquela história realmente o havia afetado. — Conhece esse endereço?

Jogou o álbum no colo dele. Ele, confuso, franziu o cenho e perguntou:

— Endere... Ah! Como é que eu não vi isso? 

O retalhador instantaneamente ficou de pé. O sentimento, pouco a pouco, converteu-se em memórias, memórias claras de sua infância, uma imensa nostalgia sacudiu toda a química de seu cérebro e fez seu peito espocar de uma alegria infundada. Por alguns instantes o poder de sua imaginação superou o do testemunho de seus sentidos e ele retornou ao vilarejo em que vivia com a família quando criança. 

Impossível. "Kárina Iozuki" foi sua vizinha, ela não podia estar viva. Será que aquilo era alguma brincadeira de mal gosto? Consternado, Arashi se sentou.

— De quem é o endereço? — Kin, ciente de que ele fez aquela descoberta, o inquiriu.

— Ela era uma... era uma a-amiga dos meus pais. — Boquiaberto, ele a notificou. 

Kin olhou o endereço de novo. Sim, já havia estado lá. Só não sabia se visitá-lo iria lhe fazer bem emocionalmente. Ela não sabia nem se era uma boa ideia lhe dizer que conhecia o lugar. 

— Eu já estive aí. — Revelou. — Se quiser, posso te levar lá.

Arashi foi automático na resposta:

— Vamos. 

A retalhadora apoiou o braço em seu ombro e tentou saber se ele havia pensado direito naquilo:

— Tem certeza?

— Sim. Por favor. — Arashi respondeu, até mais rápido que antes.

A loira pôs as mãos nos joelhos. O que menos queria era vê-lo magoado ou decepcionado, mas desde que Haru jogou na sua cara que ela tinha a mania de subestimar todos à sua volta e de querer controlar tudo, tem experimentado uma coisa nova chamada respeitar as escolhas de quem amava, então colocou sua opinião em segundo plano e resolveu tratar de fazer o que ele pediu. 

— Ok. — Concordou, deu um beijo na bochecha dele e se pôs de pé. — Eu vou lá em cima trocar de roupa e já volto. 

Arashi mal a escutou, era uma confusão de pensamentos e de emoções, um turbilhão de lembranças desordenadas. Seria possível que Santsuki tivesse deixado mais alguém escapar com vida? Se sim, quantas pessoas e por quê? Desejou que ele estivesse vivo para ter a resposta dessas perguntas, mas logo afastou essa vontade de si, sentindo-se um estúpido por querer, mesmo que brevemente, que um desgraçado como aquele ainda andasse por aí. Recostou as costas no sofá e massageou as têmporas com as mãos.

Sua namorada desceu pronta, usando o uniforme da equipe de elite, uma hora depois de subir. Ele, pela primeira vez, nem viu o tempo passar. Estava com a mente a quilômetros dali. Afirmou ter certeza quando ela perguntou pela segunda vez se ele queria mesmo ir, mas a verdade era que não sabia. Uma hora soava como uma boa ideia, outra, como péssima, uma das piores que já teve.

Pôs o álbum embaixo do braço, levantou-se, foi até a porta mas parou. Achou que deveria dar à Kin satisfações de onde estava indo. 

— Eu vou deixar isso aqui em casa. — Forçou um sorriso e alegou, referindo-se ao álbum que recebeu por correio.

— Tá. — Kin assentiu. Após ouvir um "volto logo", Kin assentiu de novo e acrescentou: — Vou chamar a Yue e o Haru para irem com a gente, eles estão ansiosos para sair do reino em missão, tudo bem por você?

— Claro. — Ele concordou, depois saiu.

O coração de Kin pesou de compaixão. Ele parecia um menino perdido num parque de diversões lotado. Como não querer controlar a situação? Se seu irmão estava certo, o melhor que podia fazer era ser sincera com ele e lhe dar apoio emocional, da mesma maneira que Arashi fez com ela quando descobriram sobre os cientistas dos quais sua mãe desconfiava. Descobrir quem de fato enviou aquele álbum seria o jeito dele de enfim dizer adeus ao passado e seguir adiante. 

Minutos após Arashi sair, após como que despertar de um sonho Kin notou que ele tinha esquecido o casaco em cima de seu sofá. Tamanha falta de atenção não era típica dele, aquilo estava beirando o perigoso. Mesmo que não soubesse, o moreno precisava encerrar aquele "caso", isso lhe faria um bem de proporções tão grandes que nem ele e nem psicólogo algum poderiam mensurar.

 Assim que localizou Haru e Yue, Kin foi com os dois direto para as fronteiras do reino, local que combinou de encontrar com Arashi. Ele estava tão perdido nos próprios devaneios que demorou a percebê-los, que apesar de olhar para baixo encarando o álbum de capa dura que tinha nas mãos, nem sentia o solo empoeirado abaixo de suas botas negras de borracha. Havia preocupação em seu olhar. 

Haru não escondia a empolgação. Finalmente teria chegado sua vez de descobrir do que era capaz? Por todos aqueles anos, tudo o que vinha pedindo aos céus era um bom oponente, alguém que o pusesse à prova, o levasse ao limite. Os melhores retalhadores foram forjados nos campos de batalhas, e disso ninguém discordava, tirar essa oportunidade de um ser de essência era o mesmo que privá-lo da finalidade de sua vida, que matá-lo. Nele, que nunca teve sua força testada, essa vontade borbulhava como lava no vulcão.

As roupas que ele vestia eram as de alguém que estava indo passear com os amigos: uma camisa preta sem mangas com capuz, uma calça comprida cinza esportiva e um par de tênis brancos rasos. As de Yue, uma camiseta verde clara, short e chinelos de dedo, não eram muito mais apropriadas que as dele para combate. Ela franziu as sobrancelhas violetas, prendeu o lado direito dos cabelos curtos com três clips coloridos e ficou de cara fechada para esconder que estava tão ansiosa e empolgada quanto Haru.

— Vamos nessa! — Disse o menino, socando a palma da mão. O estalo foi tão alto que "acordou" o guerreiro glacial.  

Pensativo, Arashi puxou o bonde:

— Vamos. 

Pelo resto do caminho, só quem conversava eram Yue e Haru, mas os dois faziam isso para espantar o nervosismo. Arashi deixou o álbum nas mãos de Kin, que passou o tempo todo totalmente emudecida, distraída, contemplando com admiração as suas fotos de infância, enquanto ele olhava ao redor e sentia como se tivesse voltado a ser criança. A paisagem do caminho não tinha nada de parecida com aquela do vilarejo de seus primeiros anos de vida, mas mesmo ali ele se sentia em casa. 

Uma náusea inexplicável o fazia titubear, experimentar uma inconveniente vertigem. Ele não estava bem. Podia ouvir as risadas de seu irmão, os avisos de sua mãe, as manobras retóricas que seu pai fazia para aliviar sua barra com ela e convencê-la a deixá-lo treinar para tornar-se um retalhador. Sua mãe nunca quis isso para os filhos. Ela cresceu com Yume, testemunhou por si mesma como tal vida era estressante, traumatizante e perigosa, suas reservas eram compreensíveis. 

Podia ver as chamas, sentir o calor delas, o cheiro das pessoas queimando, escutar seus gritos e suas tentativas frustradas de respirar meio a quantidades tão exorbitantes de fumaça, que se espalharam tão abundantemente pelo vilarejo a ponto de parecer transformar o claro céu da tarde em noite. O medo no tom da voz de seus pais, a frieza nas palavras de Santsuki. Seu rosto esquentou como se estivesse ardendo em febre. Cambaleou. Precisava parar. 

A cena daquele psicopata derrubando a porta de sua casa com um pisão e afundando a maçaneta de aço no crânio de seu pai repassou pelos seus olhos como um filme. Sua mãe foi morta a socos. Tudo o que pôde fazer foi cobrir os olhos de Saori enquanto, em lágrimas e soluços, ela tapava as orelhas do pequeno Isamu. Seu coração pinicava de raiva, ao mesmo tempo que de amargura. Era uma fusão de sentimentos ambulante. Sua mente estava a segundos de colapsar. 

Não era exagero algum afirmar que aquele trauma o tornou quem era, que aquilo era parte de seu ser, na verdade o inconsciente reconhecimento dessa teoria era a origem da parcela de repulsa que ele sentia por si mesmo, das estratégias suicidas que ele concebia e às quais ele mesmo se entregava em combate. Pensava, às vezes, que sua frieza e sua falta de temor à morte não eram coragem, mas ódio pela própria existência travestido de altruísmo e patriotismo. Há muito tempo não era capaz de achar virtude em si mesmo. 

Nunca se sentiu digno de viver. Tudo o que vinha fazendo, esses anos todos, era carregar sua carcaça miserável pela Terra e enfeitar suas desgraças com roupas de gala para criar ou manter algo positivo. Não era uma boa pessoa, um bom retalhador, um bom amigo, um bom irmão e muito menos um bom namorado, era o resquício funesto de um assassino, criatura e herança de Santsuki, o mais diabólico ser que já habitou a galáxia. 

Plenamente alheia aos seus pensamentos, Kin, sorridente, apontava uma das gravuras no álbum e lhe fazia uma pergunta. Ele, que nada escutou, nada respondeu. 

— Arashi? — Ela o cutucou. Quando ganhou a atenção dele, a pergunta que fez foi outra: — Você está bem?

Ele respirou fundo, olhou para frente, avistou uma lanchonete e respondeu:

— Estou. Podemos parar um pouco? 

Contra todas as expectativas, Haru foi o primeiro a manifestar apoio a ele:

— Boa ideia, eu não comi nada antes de sair, tô cheio de fome!

— Vamos lá! — Yue também concordou, então foi andando na frente com o ruivinho. 

A lanchonete, como de habitual, estava um pouco cheia naquele início de tarde, portanto os quatro tiveram que se sentar separados. Os retalhadores de elite ficaram com a mesa, que era branca e toda feita de mármore, os retalhadores novatos foram chutados para os bancos altos de frente para o largo balcão vermelho de madeira.

Yue achou injusto, chamem-na de antiquada mas ela achava que as garotas deviam ficar no conforto. Haru argumentou em favor deles, disse que precisavam de espaço pois estavam apaixonados e, segundo lhe disseram, apaixonados precisavam de privacidade. Claro que ele, com seus meros dez anos de idade, não captou a essência da regra, mas decorá-la formalmente foi o bastante para que decidisse segui-la.

Ele queria saber sobre Yue. Ela tinha que reconhecer, desde que chegou no Reino de Órion foi um baú fechado a sete chaves, não deu a ninguém detalhe algum sobre a vida que levava antes de esbarrar com Sora e os Orionianos, sempre que questionada mudava de assunto ou sugeria algo novo para fazer.

O milk-shake de chocolate de Haru chegou junto com a cestinha de bolinhas de queijo quente que Yue pediu, postos no balcão por uma jovem, bela e gentil garçonete de pele amarronzada e cabelos enrolados meio crespos. Os dois agradeceram com um sorriso.

— Você não disse que tava com fome...? — Yue jogou uma bolinha de queijo dentro da boca e perguntou. 

Haru provou a bebida de chocolate e respondeu:

— Isso é o bastante. E não enrola, vai, me conta um pouco da sua história. Você já sabe toda a minha. 

Yue respirou fundo. Foi vencida pelo cansaço.

— Tudo bem. — Assentiu. — Eu vivia com minha mãe, meu pai e minha irmã num vilarejo abastado bem longe daqui. Há dez anos, o meu pai lutou naquela guerra para defender a nossa galáxia do exército do Kaira e conseguiu voltar com vida, mas minha mãe morreu num acidente de carro provocado pela batalha da sua mãe com o Santsuki. — Concluiu. Notou certo sentimento de culpa no olhar de seu interlocutor, então justificou-se: — Era por isso que eu não queria dizer nada. Vocês-

Ela descobriu, então, que o que havia no olhar de Haru não era culpa, mas a dor decorrente de ter tomado aquela bebida gelada rápido demais, o famoso "cérebro congelado". Ficou de cara fechada até o ruivinho voltar ao normal. 

— Foi mal, foi mal...! — Ele se desculpava. — Eu nunca cheguei a conhecer nenhum dos meus pais, então não posso dizer que te entendo. Mas só de pensar em perder a minha irmã... Enfim, continua falando. Por que você abandonou seu pai e sua irmã?

Muito envergonhada, depois de um minuto inteiro de silêncio, Yue contou:

— Porque descobri que meu pai contratava os serviços do Kikuchi. Eu já sabia que ele não era nenhum santo, mas isso eu não consegui tolerar. 

Haru, diferente do esperado por ela, não a julgou nem com palavras e nem com o olhar. Vazio de expressão, ele tomava seu milk-shake como se tivesse acabado de escutar a coisa mais banal do mundo. Isso deixou um sorriso no rosto da garota que lhe contou tudo aquilo, agora, após seis meses indo à escola e treinando juntos, sentia-se realmente a vontade com ele, agora sentia que tinha um amigo

Até perceber que Arashi podia estar com fome mesmo não tendo pedido nada, Kin conversava com ele sobre um assunto estritamente relacionado ao âmbito profissional de suas vidas.

— Se tiver mudado de ideia, pode pegar das minhas batatas. — Falou, empurrando a bandejinha de ferro pra ele. — É só não se esquecer disso se na próxima vez que a gente sair eu também disser que não quero nada e mudar de ideia.

— É claro. — Ele, meio avoado, pegou algumas batatas da bandeja dela e disse. O tempo todo dava à Kin a impressão de que queria contar alguma coisa, revelar algo que estava na ponta da língua, mas que não sabia como ou não tinha coragem. Havia uma pergunta difícil e até certo ponto comprometedora entalada em sua garganta. — Como podemos saber se... se fazemos o bem ao nosso reino porque somos bons retalhadores ou se por interesse próprio, pra satisfazer alguma parte essencialmente egoísta do nosso ser? 

Kin terminava de limpar os dedos engordurados com guardanapo quando ele lançou essa reflexão e parou por um minuto para pensar na pergunta e saber se sabia a resposta dela. Lembrou de um diálogo que teve com Azin uma vez.

— O meu pai me disse uma vez que a felicidade que sentimos quando fazemos o bem ao nosso reino é o sinal definitivo de que somos bons. Um retalhador que não sentisse isso em alguma medida, mesmo que bem pequenininha, seria idêntico ao Santsuki. — Foi a resposta que Kin deu, oriunda de uma de suas últimas conversas com seu pai.

A resposta dela lhe foi mais do que satisfatória. Ele sorriu, a olhou dentro dos olhos, segurou sua mão com a delicadeza e a classe de um príncipe encantado e deu um beijo carinhoso nela. 

— Tá gordurosa. — Reclamou. 

— Você não me deu tempo pra passar o guardanapo! — Contra-argumentou. Passou o guardanapo na mão que ele beijou, esticou-a para vê-lo beijá-la de novo e disse: — Pronto, vá em frente!

Os quatro ficaram ali por não mais do que dez minutos depois e saíram. A estrada que vislumbravam pela frente era relativamente longa, mas em seu ritmo chegaram ao destino rapidinho: a Cidade de Lesath. Era um lugar bem pequeno, não tinha nem dois milhões de habitantes, nem pobre nem rico, muito bom para um retalhador se aposentar, por exemplo. Com fins puramente estéticos, todas as casas das dez ruas mais próximas da entrada da cidade obedeciam o mesmo padrão de cores quentes, a mesma arquitetura e não tinham mais do que dois andares. As do meio, por sua vez, eram maiores e foram tingidas de cores mais frias — era numa dessas que morava a remetente de Arashi.

 Frente a porta em que devia bater, Arashi hesitou. Deteve seu olhar na fachada da casa. Ela era grande, azul marinha, tinha uma porta de ferro, duas janelas negras no segundo andar e o seu terraço não tinha telhado, estava a céu aberto, resumindo: não guardava semelhança alguma com a casa em que vivia a Kárina Iozuki que conheceu. Com uma infantilidade e uma irracionalidade incomuns para ele, Arashi verificou, pela milésima vez, o endereço e o número fornecidos pelo álbum para ver se estavam no lugar certo e pela milésima vez concluiu que sim. Foi dali que veio o álbum, isso era indiscutível. 

Tímido como um menininho, tocou a campainha. O tempo da espera deu à Yue a chance de comentar a sensação estranha que ela vinha sentindo desde que pisou ali, Kin agradeceu por confirmarem que ela não estava louca e falou que também sentiu algo estranho no ar, embora por alguns segundos muito breves. Os comentários acabaram por aí. Os três estavam ansiosos para saber quem abriria aquela porta e o que aconteceria. O coração de Arashi foi assaltado por uma grande angústia. 

Escutou passos. A maçaneta girou. Uma moça que tinha idade para ser sua mãe, mulher alta, loira, branca, robusta, de rosto ameno e olhos tristes, foi quem girou a maçaneta e se revelou de trás da porta. Arashi imediatamente reconheceu aqueles traços faciais, já a sua remetente não podia dizer o mesmo dele. 

 Kárina Iozuki precisou de dois minutos de silêncio, mas finalmente se lembrou e, quando conseguiu, ficou de queixo caído. 

— Você veio! — Visivelmente desorientada, ela pegou nas mãos de Arashi. Kin, Haru e Yue, lá pelo meio da rua, trocaram alguns olhares, estranharam a cena. — Eu sabia que você viria! É você mesmo? Eu não acredito, não dá! Oh meu Deus!

— O que está... acontecendo... — Arashi mal começou sua frase e já foi logo ganhando um abraço. 

Kárina instantaneamente os convidou para entrar. Os três repararam em tudo, mas apenas Kin e Haru se impressionaram com a beleza e a formalidade da arrumação: as paredes, os dois sofás e o piso eram brancos como uma folha de papel ofício, as duas mesinhas no centro da sala eram marrons escuras, da madeira da melhor qualidade, as almofadas em cima dos sofás que, juntos, formavam um perfeito L deitado, variavam do branco ao cinza e ao negro. 

Contrariando as expectativas, a moça não ofereceu água, café, suco, nem ficou horas e mais horas conversando com Arashi sobre a infância dele e os tempos no vilarejo, foi direto ao ponto, ao mais urgente porquê de tê-lo atraído até ali: a cidade inteira foi escravizada por um pérfido tirano que hipnotizou a todos através da música. A canção, contou ela, foi interrompida após uma insurreição e nesse tempo ela conseguiu enviar o álbum por correio. 

Yue se sentou, cruzou as pernas e exclamou:

— Por isso senti essa perturbação no ar! Era chikara! A minha irmã já tinha me dito uma vez que eu tenho talento para sensitiva, mas como nunca precisei, eu não levei a sério...

— Nos diga onde encontrá-lo e não terá mais que se preocupar com ele! — Exigiu Haru. 

— No palácio, ao leste daqui, mas vocês têm que ser rápidos, a canção vai voltar a tocar em poucos minutos e se vocês a ouvirem-

— Vamos ser enfeitiçados também. — Apoiado à porta com os braços cruzados, pronto para sair de novo, Arashi a interrompeu. — Haru, Yue, fiquem com ela, Kin e eu vamos acabar com isso. 

Por mais que quisesse lutar, Kin, tentando ser justa, teve outra ideia.

— Tudo bem, eu fico aqui com ela. — Sugeriu. — Essa é a primeira missão deles, nada mais justo do que os dois lutarem também. 

Haru deu um soco na palma da mão e bradou:

— É assim que se fala!

O tirano, muito decepcionado, terminava de enxotar para fora de seu palácio um dos últimos rebeldes que matou. Mal sabia ou imaginava ele que um garoto ruivo de dez anos se lançou invisível em sua direção com o punho carregado de força, então, quando estava para entrar, levou um cruzado de direita tão bonito e tão certeiro na cara que, com certeza inconsciente, foi parar dentro do salão principal do palácio.

Criminoso abatido, Haru, se fazendo visível de novo, iludiu-se achando que aquele era o fim — não que acreditar nisso o tivesse deixado feliz. Ele saiu de cima do oponente derrotado e, quando constatou que fora cercado, olhou em volta e contou seus inimigos, que abriram a roda e deram espaço para Yue e Arashi entrarem na brincadeira ao perceberem que os dois estavam com Haru. 

 Eram sete. Todos homens. Arashi ditou as regras:

— Eu cuido de cinco. Vocês dois, não abaixem a guarda e não os subestimem. 

Cinco deles, os que mais se ofenderam com a suposta arrogância do guerreiro glacial, não sabendo com quem lidariam, foram para cima dele, que se dirigiu para fora. Em um salto, Yue flutuou para o corredor mais alto do castelo e deixou o salão à disposição de Haru e do adversário dele. Eles dois se encaravam feito dois leões na selva. Antes de começar, Haru gravou o rosto dele na memória, seu primeiro adversário: branco, cabeça raspada, braços magros, olhos castanhos, camiseta verde sem mangas, calça comprida preta, tênis básico. Provavelmente se recordaria dele para sempre. 

A luta teve início com dois rápidos socos desferidos por Haru, o careca esquivou-se dos dois, contra-atacou com outros dois, Haru desviou ambos com as mãos e eles voltaram a se encarar. Haru puxou a calça para cima e chutou alto, o careca defendeu-se do chute com a mão, abaixou, tentou passar uma rasteira em Haru, Haru pulou, o careca levantou e desferiu dois cruzados em sua cara, Haru, recuando, escapou dos dois, contra-atacou com um direto, acertou a guarda dele, um pisão, acertou-lhe a guarda novamente, deu um chute giratório, errou, deu mais um e acertou, seu oponente voou girando. 

Próxima dos mais altos corredores, Yue recuava e retirava os pés da frente de duas rápidas rasteiras e mandava seu inimigo para o chão com um cruzado. Ele, teimoso, reergueu-se tentando chutá-la, ela recuou e escapou do golpe dele, bloqueou dois de seus socos com as mãos, agachou e se esquivou de um cruzado, desferiu dois diretos, errou ambos, defendeu-se de uma joelhada, saiu da frente de um chute giratório, moveu-se para as costas dele mas levou um soco giratório na cara e tombou para perto da parede verde escura do palácio.

Circundando seu oponente, enquanto isso, Haru tentava achar uma brecha para atacá-lo. Fintou com as mãos para enganá-lo, conseguiu, deu dois socos na cara dele. O careca também tentou usar a finta contra ele, não conseguiu o mesmo efeito, foi forçado a recuar para não levar um chute na cara e poder defender o golpe com uma das mãos, assim, seu lado esquerdo ficou vulnerável e Haru o chutou na cara, desorientando-o. O careca continuou de pé. 

Haru o atacou com um soco, ele se defendeu com a mão, contra-atacou com um soco e Haru também se defendeu com a mão. Os dois, sem retirar os olhos um do outro, se afastaram e se estudaram. O criminoso atacou Haru com um chute, Haru se abaixou, revidou com um gancho, o meliante se protegeu com as mãos, o chutou na canela e em seguida no rosto, finalmente derrubando-o. Haru reergueu-se num só pulo. Tá legal, hora de acabar com isso, os dois, mentalmente harmonizados, reconheceram.

O ruivo o enganou com mais uma finta, dessa vez erguendo a perna em um gesto falso, então o careca, de guarda aberta, ganhou um chute no estômago, um na cara, buscou revidar com um cruzado de esquerda, errou, levou um soco na traqueia, regrediu dois passos com as mãos na garganta e a última visão que teve, antes de apagar, foi a do punho de Haru atingindo o seu nariz. 

— É, acho que acabei por aqui. — Haru se assoberbou, sorridente. Assim que pensou em subir para ajudar Yue, o adversário dela caiu de lá do alto, nocauteado, bem ao seu lado. Olhou para cima orgulhoso e parabenizou Yue com o polegar.

Fora do castelo, enquanto Yue e Haru apenas começavam suas lutas, Arashi já havia aprisionado, em uma única montanha de gelo, todos os cinco retalhadores que atraiu para fora consigo, então para poder ir embora só o que lhe restou foi, roendo as unhas, esperar sentado os dois chegarem trazendo seus oponentes e o tirano derrotado. Com os criminosos atrás das grades e Arashi, Haru e Yue de volta para a casa de Kárina Iozuki, a liberdade dos moradores da Cidade de Lesath foi proclamada e cantada em toda a parte.

Com a melhor demonstração que pôde dar de gratidão, Kárina acompanhou os quatro heróis até a entrada da Cidade de Lesath. Eles, a passos lentos, ouviram sobre como era a vida no vilarejo, da amizade que ela tinha com os pais de Arashi e ficaram sabendo, com riqueza de detalhes, como a mãe dele reagiu à descoberta de que estava grávida dele. Naturalmente, Arashi se emocionou. Uma tristeza em certa medida calorosa remeteu seu coração. Kin segurou forte sua mão, enlaçou seus braços e amorosamente aninhou a cabeça em seu ombro. 

 Na entrada, Kárina olhou Arashi nos olhos e, com a ternura de uma mãe, segurou o rosto dele entre as mãos. De súbito, o abraçou. Como se tivesse recuperado parte de sua antiga vida, algo da infância que tanto amava, Arashi correspondeu. Os dois ficaram abraçados por vários segundos. Na noite do massacre, Kárina perdeu um filho da idade dele, ver e abraçar Arashi era sua chance de fantasiar que o tinha ali com ela de novo, sua oportunidade de dizer o adeus que nunca pôde dizer

— Se cuida, viu? — Aconselhou a gentil moça, sorrindo como não sorria há anos. 

— Tá. — Jurou Arashi, enxugando com o polegar a solitária lágrima que nasceu no olho esquerdo dela. 

Kárina voltou-se para Kin, que em resposta lhe sorriu. 

— Ela é uma boa garota, sua mãe iria amá-la. Já a apresentou para a Saori? 

Arashi riu.

— Já. Conversaram como se se conhecessem há anos. — Ele afirmou. 

A fala dele, cavalheirescamente, deu passagem a um efêmero, poético e agradável silêncio. A nostalgia acabou. 

— Todos vocês podem vir me visitar quando quiserem, só não se esqueçam de me convidar para o casamento. Ouviu, Kin?

Kin, num pulo, montou nas costas de Arashi e avisou:

— Não se preocupe, a senhora vai ser uma das primeiras da lista!  

Kárina deu um abraço em cada um, se despediu e os deixou ir. Até a metade do caminho Arashi olhava fixamente para o álbum de fotografias que Kárina conseguiu resgatar do incêndio e lhe enviar, mas em certo ponto da estrada o fechou e o pôs embaixo do braço. Um forte sentimento de dever cumprido, doce e regenerador, substituiu todas as angústias que o castigaram na trajetória da vinda, mas não veio sozinho, veio acompanhado de uma atrasada mas bem vinda epifania. Está na hora de começar um novo álbum de fotografias, Arashi decidiu olhando em volta, um com minha nova família.

 Fim.


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