As Lendas dos Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 15
— O pergaminho de Altair




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— O pergaminho de Altair

Kin estava sob muito stress. Tinha que terminar sozinha uma série de relatórios escritos à mão e, em menos de três horas, escolher um membro da equipe dos retalhadores de elite para acompanhá-la até a estação espacial. Quase todos estavam enchendo o seu saco para lhe fazer companhia, Arashi, que seria sua escolha óbvia, estava fora do reino em missão e, na mais otimista das previsões, só estaria de volta em casa lá para o fim da tarde. Aquele não era o dia dela. 

Um dos poucos que não ligava de meia em meia hora para perguntar se ela já havia feito a escolha, Kenichi, que na verdade não fazia a menor questão de ir, estava encarregado de acompanhar Haru e Yue em uma missão até o Reino de Altair. A pedido de Hayate, os dois deveriam levar um pergaminho para Hizashi e, como eles não conheciam o caminho, Kenichi e Mahina foram designados para escoltá-los. 

Seus lindos, loiros e encaracolados cabelos estavam todos desgrenhados. Se parasse para contar quantas canetas quebrou desde que começou a escrever, iria perder totalmente a linha de raciocínio das dissertações que estava escrevendo. Sua camisa branca da equipe de elite estava manchada com a tinta das canetas, suas calças negras estavam amarrotadas e suas botas, em cantos diferentes da sala. 

O sofá vermelho de veludo de sua sala de estar e o tapete colorido do centro também pagavam o pato, pois o primeiro quase foi atirado contra a janela e o outro, foi mais mal tratado do que massa de pizza. E o pior de tudo era que ainda não estava nem perto de terminar. Se o telefone na mesinha de madeira do seu lado tocasse mais uma vez, ela jurava que ia quebrá-lo com uma porrada.

— Escuta, Kin-

— O QUE É?! — Gritos e exclamações com muita rispidez eram sua resposta automática a qualquer estímulo exterior. Ela respirou fundo e se acalmou quando se deu conta de que era apenas Mari. Sentindo-se mal pela grosseria que fez, pediu desculpas: — Foi sem querer, é que de meia em meia hora alguém me liga pra perguntar sobre aquela viagem idiota, então essa se tornou minha resposta reflexo!

Mari, a calmaria no meio das tempestades, deu o seu sorriso mais simpático e, com sua camiseta rosa clara ilustrada com um unicórnio no meio, seus cabelos castanhos claros penteados para trás, amarrados a uma presilha, e sua saia branca, foi até Kin. Parada atrás retalhadora, gentilmente deixou as mãos em cima dos ombros dela e começou uma relaxante massagem. 

Agradecida, Kin deitou a nuca nas costas almofadadas do sofá.

— Tá melhor? — Sua massagem estava tão boa que o tom passivo-agressivo de sua pergunta escapou cem por cento da percepção de Kin.

— Muito melhor. — Ingenuamente respondeu a loira.

A massagista aproximou-se da orelha dela e sussurrou com muita calma:

— Se gritar comigo de novo, eu arranco sua espinha. Não sei como vou fazer, já que você é tipo um trilhão de vezes mais forte do que eu, mas eu vou descobrir. Entendeu?

Subido do topo da cabeça e indo parar nos pés de Kin, um ligeiro arrepio a fez responder "Sim, senhora", como se ela estivesse na presença da mais temível das feras. Se pegou tentando contabilizar quantas lutas teria evitado se soubesse que truque Mari usava para intimidar tanto, mas a empolgada descida de Haru pelas escadas a lembrou de que tinha trabalhos para terminar. 

O garoto estava determinado, pronto para o que desse e viesse. Em sua camiseta branca sem mangas e capuz, calças compridas cinzas e seus tênis esportivos, ele descia praticando, dando socos no ar. Mari, intrigada, olhava para ele certa de que nunca viu tanta ferocidade nem nos olhos de Kin.

— Já está indo? — Sem parar de massagear os ombros de Kin, Mari assumiu o papel dela enquanto ela continuava escrevendo.

Já na porta, o menino acenou e respondeu:

— Aham, eles estão me esperando na Fronteira do Norte!

— Seja cuidadoso, pense antes de agir! E vê se não irrita o Kenichi! — Foram os conselhos de Mari, tão iguais aos que Kin teria dado que fizeram os olhos da loira saltar de surpresa.  

Mas Kenichi já estava irritado antes de encontrá-los, na verdade antes mesmo de sair da cama. Planejava passar aquele dia treinando, não queria saber de nada. Se sentiu reduzido a babá. Se fosse para passar o dia fazendo algo que não queria, que o passasse na estação espacial com Kin ou em uma missão de verdade, escoltar duas crianças parecia-lhe o fundo do poço. E ainda tinha o adicional de que a sempre alegre Mahina adorava crianças, podia prever que ela ficaria toda boba. Aquele dia seria pior que uma ressaca.

 O dia estava muito frio. Uma neblina muito densa sobrevoava os ares da lagoa que Haru, Mahina, Kenichi e Yue atravessavam a canoa, então prevendo que não seria um guia muito útil, o homem que a alugou para eles se sentou no fundo e Kenichi se encarregou de colocá-los no curso correto para o Reino de Altair. Apenas o retalhador de elite e o humilde velho canoeiro remavam.

Todos estavam em silêncio, do jeito que Kenichi gostava. Naquele dia ele estava especialmente pensativo, ver Haru reacendeu certas lembranças nele: o garoto era idêntico a ele quando criança. O problema é que não foi uma criança muito feliz. Fugiu para o Reino de Órion após dez anos sendo explorado pela mãe, uma megera maldita que obrigava ele e os irmãos a praticarem roubos e assassinatos para ela. 

A odiava de todo o seu coração, quase tanto quanto ao pai, a quem, por tê-lo abandonado com aquela mulher, culpava por todas as desgraças que viveu nas mãos dela. Por ser o único de seus irmãos que se recusava a praticar os crimes que sua mãe mandava, cresceu ouvindo dela que era um covarde igual ao pai e que sempre o seria. Jamais aceitou isso. Jurou para si mesmo que jamais se acovardaria diante de algum inimigo, independentemente de quem fosse ele. Prometeu nunca abaixar a cabeça ou ser inferiorizado por quem quer que fosse. 

Cresceu prezando a coragem para além de tudo, a colocava acima até mesmo do poder. Vitórias, derrotas, nada disso o interessava, o que importava mesmo era não se deixar derrotar pelo medo, mostrar o seu valor. O verdadeiro vencedor, dizia seu mantra, era o homem que vencia a si próprio, e não existia nada mais vergonhoso do que ser dominado pelo medo. Nunca transgrediu esse princípio, jamais recuou ou hesitou na presença de um oponente, em todos eles projetava sua mãe e, indiferente ao resultado, se sentia feliz ao final de cada batalha, como se provasse que ela estava errada. 

— Kenichi. Kenichi? — Mahina, talvez pela quarta ou quinta vez, chamou seu nome. O frio encurtou sua paciência. — Kenichi!

Ele se virou para trás e, com sua conhecida gentileza, perguntou:

— O quê...?! 

Ela apontou o cais e respondeu:

— Chegamos. 

 Ela tinha razão. Eu dormi aqui?, Kenichi se questionou, olhando em volta. Não sentir o tempo passar acontecia toda vez que começava suas reflexões sobre a coragem e a peculiaridade da nobreza de que ela preenchia o homem, se sentia quase um filósofo quando a destacava como o mais elevado valor da humanidade e argumentava em favor disso. Até hoje ninguém conseguiu lhe mostrar que estava errado. 

Encostou a canoa, pagou o velho e apontou o caminho para Yue e Haru. O combinado foi que os deixaria no reino e os traria de volta, Hayate não disse nada sobre ir junto com eles até Hizashi. 

Haru parecia desapontado. 

— O que deu em você? — Yue foi tentar saber o que ele tinha.

— Então vai ser só isso? Entregar o pergaminho, nenhuma ação...? — A resposta dele refletia uma insatisfação de Yue também. A missão, em essência, era essa, Hayate nunca lhe prometeu que teria de lutar, mas no fundo ele tinha a esperança. 

— Isso mesmo. — Disse Kenichi. — E não demora, não quero desperdiçar minha tarde aqui. Não gosto de vocês e nem desse lugar.

— Tem que ser um babaca cem por cento do tempo? — Yue se irritou. Não tinha paciência com gente como ele. 

Surpreso, Kenichi deu uma risada.

— Que nada, eu sou um amor com quem eu gosto. Diz pra ela, Mahina. — Pediu, cutucando a parceira com o cotovelo.

Mahina revirou os olhos.

— Não liga pra ele. Levem o tempo que for necessário, vamos estar aqui quando vocês voltarem. — Recomendou.

Quatro retalhadores estranhos deram as caras, Kenichi sorriu e pôs a mão no cabo do montante que levava nas costas. Seu faro dizia que o seu dia estava para ficar interessante. Mahina, pelo contrário, não achava aquilo nada bom. Todos sentiram hostilidade no ar. Responsáveis pelo sucesso da missão, Haru e Yue foram na frente avisar o que estavam indo fazer e perguntar qual era o problema.

O símbolo de Áries estampado na manga direita da camiseta azul clara de Yue saltou aos olhos deles, aquele era o sinal inequívoco de que ela e quem estava com ela vinham de Órion — eles não gostavam de Orionianos, boa parte dos Altairianos se ressentiam por, entre outras coisas, eles terem ficado com a insígnia de Áries. A relação das duas nações sempre foi de amor e ódio. 

Todos homens. O mais velho entre eles, Shuri, rapaz alto, negro, de olhos castanhos claros e cabelos enrolados bem curtos, vestido de camisa branca com mangas longas e calça comprida preta, parecia ser também o líder. Ele foi na frente. 

— Olá, boa tarde! — Yue ignorou o clima e tentou ser gentil. — Nós somos de Órion-

— Sabemos de onde vocês são. — Shuri a interrompeu. — O que querem aqui? 

— O primeiro ministro Hayate nos pediu para entregar esse pergaminho ao segundo ministro Hizashi. — Disse Haru. 

— Me dá aqui. — Ordenou, tentando pegá-lo da mão de Haru. 

Haru guardou o artefato e, o mais educado possível, se recusou a entregá-lo:

— Hayate nos disse pra entregar pessoalmente ao Hizashi. 

O terceiro mais velho do grupo, Haniki, um jovem de pele clara e cabelos castanhos crespos, voltou seus agressivos olhos verdes claros para Haru, esticou os braços magros ao longo da camiseta verde musgo que trajava e foi direto com eles sobre suas intenções:

— Vocês não vão passar daqui. 

— Ah, é? E como é que vocês acham que vão nos impedir, digam! — Haru os desafiou, sorriu, deu um soco na mão e comentou com Yue: — E você tava preocupada pensando que a gente não teria ação!

— Quem tava era você! — Ela retrucou. Voltando-se para os quatro, deu uma ordem: — Saiam. 

O líder deles segurou Haru pela gola da camiseta, Haru, sem desviar seus olhos dos olhos dele, o segurou firme pelo pulso.

— Qual é o problema? — Mahina chegou mais perto para ver o que estava acontecendo e perguntou.

— Eu adoro problemas... — Disse Kenichi, arriando o montante das costas. — Podem falar, não vou ficar bravo. 

O líder soltou Haru, encarou Mahina e Kenichi e falou por todos:

— Não queremos vocês aqui, voltem para onde vieram ou vão se machucar.

Kenichi sorriu, deixou a ponta de sua arma atingir o solo, arrastou ela pela terra até chegar ao autor da ameaça e, quando ficou cara a cara com ele, falou:

— Agora eu vou ter que ficar. Desculpa. 

As folhas das árvores em volta balançaram com os ventos. A terra sacudiu com o peso do poder dos oito, não havia asfalto nem concreto nela, o chão era apenas rochas e poeira. A monotonia do mar foi rompida, as águas se tornaram bravias. As nuvens se juntaram e escureceram a arena. 

Uma bola de fogo pareceu acertar Kenichi em cheio, mas ele pôs o montante na frente dela e se protegeu. Haru ficou invisível e socou o emissário do disparo no estômago, Yue atacou Haniki com um chute e Mahina, ao perceber que o líder deles vinha em sua direção, encheu as mãos e os olhos com uma ofuscante energia azul esbranquiçada. De repente, o alvo da fúria de Shuri eram os próprios aliados dele, contra os quais ele atirou suas pequenas esferas explosivas verdes de energia.

Kenichi se abaixou e escapou de um soco desferido por Hadeko, atacou Hadeko com o seu montante e se surpreendeu quando sentiu sua arma e todo o seu corpo quase que paralisados no ar, não totalmente porque, ainda que minimamente, com muito esforço, era capaz de movê-los. Kenichi soltou a espada e levou as mãos à garganta. O oxigênio começou a se esvair de seus pulmões, logo já não conseguia mais respirar, que tipo de técnica é essa?, ele tentava saber, sentindo-se próximo de perder a consciência. 

Mahina apontou as mãos para Hadeko e voltou as más intenções dele contra Haniki, que insistia em enfrentar Yue. Aliviado por sentir o ar voltar para os seus pulmões e orgulhoso de Mahina por ela tê-lo neutralizado, Kenichi caiu sorrindo e se deu um tempo no chão para recuperar as forças.

Shuri investiu contra Mahina, mas Haru acertou um soco bem no meio de seu queixo, o que não o nocauteou, só o deixou bem irritado. Shuri recuou, reuniu suas esferas diminutas e fundiu todas para transformá-las em uma só esfera gigante, entretanto, assim que ela ficou pronta, alguém que todos os quatro conheciam muito bem e temiam mais ainda apareceu. 

— Chega! — Disse a imponente jovem, sem expressão alguma no rosto. Seu nome era Yuna. O nariz fino, arrebitado, a face oblonga, levemente erguida, enfatizavam a superioridade que ela esperava transmitir. Os cabelos dela, lisos, compridos, azuis clarinhos de nascimento e enrolados para trás, seguiam o ritmo dos ventos e dançavam suavemente. Se, por um lado, a claridade de sua pele e o negro profundo de seus olhos contrastavam, por outro a combinação a fazia mais intimidadora. O azul escuro de seu vestido rodado sem mangas se ajustava com o da tatuagem em seu magro braço direito. Através do seu falar, os ânimos dos altairianos se esfriaram. Ela os olhou e, com desgosto, disse: — Desapareçam da minha vista. 

 Os retalhadores de Altair imediatamente fizeram o que ela mandou. Mahina ajudou Kenichi a ficar de pé, Haru e Yue imaginaram que Yuna era dona algum cargo oficial e era, portanto, autoridade no Reino de Altair, tomaram a frente, contaram o que aconteceu e apresentaram seus motivos para estar ali. 

— Viemos a mando do primeiro ministro Hayate, ele nos pediu para entregar isso ao segundo ministro Hizashi. — Falou Haru. 

— Ele os espera. — Os informou Yuna. — Venham comigo, por favor. 

Os dois a seguiram, Kenichi e Mahina resolveram esperá-los ali mesmo. Havia muito mais em Yuna do que autoridade nas palavras ou no cargo, sua aura inspirava poder, mistério. Decifrá-la era um objetivo distante até para os mais próximos dela, se é que alguém podia se dizer próximo dela. Na verdade, alguém podia. Esse alguém a encorajava, fortalecia, dava um sentido à sua solitária e trágica vida. Ele tinha sua veneração e seu respeito mais do que qualquer um na Terra de Áries, na galáxia. 

Uma gélida noite caiu sobre o Reino de Órion. A lua resplandecia cheia, dourada, majestosa entre as estrelas, reduzidas, face à grandeza dela, a pequenos pontos azulados no céu, como que feitos sem capricho com um lápis de cor. Protagonista lá em cima, para os casais de apaixonados que a contemplavam juntos e para o amor, que a tudo empurra para segundo plano, ela não era mais do que um belo cenário. Do alto do galho da árvore que nasceu frente a sua casa, sentado de costas apoiadas no tronco com as pernas esticadas, Arashi a olhava mas não lhe prestava atenção porque pouco mais de dois metros abaixo, Kin, sentada no chão, encostada na árvore, na mesma posição que ele, contava sobre o dia que teve. 

Acabou que escolheu Emi para acompanhá-la na viagem espacial e teve uma ótima tarde. 

— Ah, é! Eu trouxe uma coisa da nave espacial de presente pra você. — Disse, meteu a mão na mochila preta ao lado, pegou um pacote e se esticou o máximo que pôde para dá-lo na mão dele.

— Isso é... comida de astronauta? — Ele perguntou, após analisá-lo de ponta a ponta. 

— O quê? — Kin olhou para cima e percebeu que entregou o pacote errado, revirou a bolsa atrás do certo, desistiu de achá-lo e reclamou: — Não era isso que eu queria... Ah! A safada da Emi deve ter pego quando eu deixei em cima da mesa, amanhã ela vai ver só uma coisa...!!

— O que era? — Ele quis saber.

— Era o Cristal do Infinito, ele é lindo, não quebra por nada e tem o poder de gravar e reproduzir imagens. — Revelou, frustrada. — Ai, eu não acredito que ela pegou! Eu tive o maior trabalhão pra conseguir aquilo! 

— Bom, você é linda, não quebra por nada e, correndo o risco de soar brega agora, não tem imagem que eu mais goste do que o seu sorriso. — Ele a desarmou. O rosto dela se avermelhou como um tomate e ficou mais quente do que o sol. 

— Ah, meu Deus... — Sempre se emocionava e abaixava a cabeça quando ele dizia coisas como aquelas, ficava sem palavras. 

— E comida de astronauta é muito melhor do que eu pensava. Tem mais aí? 

— Claro! Eu enchi a bolsa. 

 Ali eles ficaram até o sol nascer. Conversaram, riram, comeram tudo o que Kin trouxe da viagem, falaram sobre o passado, o presente, o futuro, esqueceram o mundo. Tiveram felicidade o bastante para preencher uma vida.

Fim.


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