En El Medio escrita por Marylin C


Capítulo 8
VIII. this could be a lot of fun


Notas iniciais do capítulo

E chegamos ao final. Essa história ficou muito maior do que eu planejava, e tomou muito mais da minha vida e do meu tempo do que eu tinha pensado. Gostei do resultado dela, como a primeira história mais longa que eu concluo na vida, e espero que você, que leu até aqui, tenha gostado também. Obrigada por todo o apoio (Tau, Vitt estou falando com vocês mesmo) e pelos surtos, espero ver você por aqui mais vezes em minhas próximas histórias ♥

Boa leitura!



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PARTE 8. this could be a lot of fun

anos antes

 

O casal andava de mãos dadas pelas ruas de Barcelona, observando os grupos de turistas que passavam animados e os trabalhadores parando para almoçar. Rafael tinha uma bolsa estilo carteiro atravessada sobre o ombro, e a segurava protetoramente com a mão livre enquanto comentava:

— Eu não acredito que você morou em Barcelona sua vida praticamente inteira e não conhece a Sagrada Familia, cariño!

— Pode acreditar. — Hector riu. Estava de folga naquele dia, e por isso vestia uma simples camisa verde de algodão e bermudas. — Meus pais sempre fizeram muito turismo logo quando casaram, mas não gostavam muito de nos levar pros cantos daqui da cidade. Eles gostavam mais de sair sozinhos aqui e viajar conosco pra fora.

— Que absurdo. — o Oficial de Justiça sacudiu a cabeça em desaprovação, mas sorriu. — Ao menos eu vou poder ver sua cara de espanto quando você entrar lá pela primeira vez.

— Acredite, eu provavelmente vi castelos mais suntuosos no Mundo de Lá. — Hector deu de ombros, descontraído. Rafael revirou os olhos com uma risada, mas não insistiu. O marido deveria ver por si mesmo.

— Vamos almoçar naquele restaurante ali? — sugeriu, apontando para um simpático estabelecimento que não parecia muito cheio na esquina da rua em que o casal andava. O agente ruivo concordou, e os dois andaram até lá. Pediram uma mesa próxima à janela e sentaram-se um de frente para o outro, debatendo qual opção pedir enquanto brincavam com os dedos um do outro. Pouco se importaram com os olhares recebidos, acostumados como estavam a demonstrar afeto em público. Pediram soda e batata frita para beliscar antes de fazerem o pedido do almoço, mas o que receberam foi uma expressão nervosa de um garçom ao chegar à mesa deles:

— Eu preciso pedir que os senhores se retirem do estabelecimento.

— Por quê? — Rafael indagou de imediato, aprumando-se na cadeira. Hector segurou-lhe a mão, erguendo as sobrancelhas ao ouvir a resposta:

— Os outros clientes estão… incomodados.

— Incomodados conosco? — o homem ruivo apontou para as mãos dadas, e o garçom assentiu. Rafael começou a se levantar, mas o agente da CNI apertou-lhe a mão com um olhar de aviso e replicou, o tom de voz perigosamente tenso. — Pois nós não vamos embora.

— Senhor, eu realmente preciso insistir. — o garçom falou, sério.

— Eu também insisto. Insisto que vá chamar seu gerente. — Hector respondeu, soltando a mão do marido para cruzar os braços e discretamente acionar o gravador de seu telefone. O homem hesitou.

— As coisas não funcionam assim aqui, senhor. Por favor, se retirem do estabelecimento. — ele repetiu, e o agente já tinha o rosto avermelhado pela raiva. Rafael observava tudo, tão irritado quanto embasbacado.

— As coisas funcionam assim nesse país, senhor. E eu exijo que você vá chamar o gerente, antes que eu decida tomar medidas mais drásticas.

— Medidas… mais drásticas? — o garçom indagou, e Hector bufou.

— Foi isso que você ouviu. Agora vá chamar seu gerente.

O homem assentiu e saiu, e Rafael tocou o braço do marido. Estava tão irritado com aquela situação quanto ele, mas...

Cariño, tem certeza...?

— Eles me pegaram com fome, o que foi um erro. — o agente ruivo deu de ombros, colocando o celular que gravava de volta em seu bolso, e ficou sério quando o garçom voltou acompanhado de um homem gordo de meia idade.

— Qual o problema aqui? — ele perguntou, em um sotaque italiano.

— Esse senhor está querendo nos expulsar do restaurante. — Hector apontou o garçom. — A nós, clientes pagantes, por estamos ‘incomodando’.

— E estão?

— Não acho que andar de mãos dadas é incomodar, senhor. — ele ergueu uma sobrancelha, e o gerente revirou os olhos.

— Se meus outros clientes estão se sentindo incomodados, é meu dever prezar pelo bem-estar deles. — respondeu, e Rafael abriu a boca em descrença. Ele realmente tinha…?

— O senhor quer dizer que pode expulsar alguém do seu restaurante apenas por demonstrar afeto pelo seu cônjuge? — Hector indagou, mais empertigado na cadeira. O homem riu ao ouvir a palavra ‘cônjuge’, replicando:

— Vejo apenas dois homens brincando de casinha.

— Oh, não. O senhor não disse isso. —  o agente se levantou, espalmando a mesa de madeira, e a força que impôs no ato tornou insignificante o fato do gerente ser duas vezes maior que o ruivo.

— Você me ouviu. Saiam do restaurante.

— O senhor sabe que homofobia é crime, não sabe? —  Hector disse, e o gerente deu de ombros. — Oh, então o senhor não liga? Muito bem. — tirou do bolso o distintivo, largando-o sobre a mesa. Quase riu do olhar de assombro do homem gordo e do garçom ao seu lado, mas cruzou os braços novamente. — O senhor sabe agora quem eu sou, não sabe?

— O-o-ora, eu… — o gerente começou, encarando o distintivo, e Rafael também se levantou.

— O senhor escolheu o casal errado para destratar, meu caro. — disse com uma curta risada de escárnio, sua expressão também tomada pela raiva.

— Os se… Os senhores aceitam algo… Algo de cortesia para…

— Não, obrigado. — Hector interrompeu. — Porque eu sei que o senhor só está voltando a me tratar como cliente por causa desse distintivo. Se eu não fosse da CNI, teria chamado os seguranças para nos tirar daqui, não teria?

— Não, eu…

— Bom, já que quer tanto que saiamos, nós vamos embora. — ele piscou. — Alguns colegas meus devem aparecer aqui mais tarde, para apurar a denúncia e fechar o restaurante.

— Denúncia?

— Como eu mencionei anteriormente, homofobia é crime. — o agente ruivo respondeu, abrindo um sorriso quase arrogante. — Eu posso e vou processar esse estabelecimento por crime flagrante de homofobia e pedir retorno por danos morais.

— Mas senhor…

— Tenha um bom dia. — Hector terminou, se dirigindo para fora do restaurante com Rafael em seu encalço. Quando os dois já estavam a dois quarteirões de distância do estabelecimento foi que pararam, o ruivo ofegante e os olhos azuis tempestuosos brilhando com a revolta. O mais alto tocou-lhe o rosto e sorriu, em seguida batendo palmas.

— É muito meu marido mesmo. — comentou, fazendo Hector rir alto.

— Vou ligar para o Rui. Deve ir lá à tarde. — o ruivo disse, tirando o celular do bolso para reportar o que tinha acontecido ao amigo policial e enviar-lhe a gravação.

— Sinto que seremos os pais mais intratáveis do mundo quando formos chamados na escola do nosso filho. — Rafael falou quando o marido desligou, rindo.

— Se eu tiver que levar meu distintivo quando for chamado na escola, a gente vai trocar de país. — Hector respondeu, revirando os olhos. O mais alto fez que não com a cabeça, conduzindo o marido pela rua até os dois estarem de frente à Sagrada Familia.

A fachada exuberante do ponto turístico deixou o casal embasbacado por alguns segundos, mesmo Hector. A Sagrada Família podia ser vista de quase qualquer ponto de Barcelona, mas vê-la de perto era muito diferente de observá-la de relance. Mesclada na arquitetura moderna da vida urbana, a construção de mais de duzentos anos se erguia plena no centro da cidade, constantemente em reformas estruturais e aberta para turismo.

Rafael abriu um sorriso animado e puxou o marido para o guichê, comprando os ingressos dos dois e entrando na catedral após Hector. Tinha o celular em mãos e capturou com uma risada a expressão maravilhada do dono de seu coração ao entrarem na grande câmara principal.

— Isso é… Lindo. — sussurrou ele, pequeno diante da exorbitante beleza do monumento. O teto todo trabalhado em arcos e formas geométricas, além dos arabescos e colunas, fez Rafael voltar o telefone para ele para algumas fotos e então cutucou o marido. Os dois observaram duas moças de mãos dadas com uma menininha, as três rindo e tirando fotos para então verem-nas trocando um rápido beijo antes de prestarem atenção no que a pequena apontava. Hector suspirou, uma pontada de inveja atingindo-o. — Será que um dia vamos ter nossa própria família?

— Vamos sim. — o mais alto sorriu, tirando uma pasta transparente da bolsa que carregava. — Preencher todos aqueles formulários e ver todos aqueles cursos foi quase uma morte, não foi? — o ruivo assentiu, cansado. — Mas ei, eu agradeço muito por você ter sugerido isso e por ter passado por isso comigo. Meu sonho sempre foi ter uma família, você sabe.

— Eu sei. — Hector acariciou a barba castanha do marido, sorrindo. — O que tem na pasta?

— A permissão do governo para adotar uma criança. — Rafael respondeu, o sorriso aumentando de tamanho. — Chegou ontem à noite quando eu fui no escritório do Tribunal.

— É sério? — o rosto do mais baixo iluminou-se, e ele pegou a pastar para ler os termos e constatar que sim, o documento que eles tanto tinham lutado para conseguir estava ali. Eles podiam ter uma família.

Quando voltou o olhar para o marido, ele tinha lágrimas nos olhos castanhos, Hector abriu os braços, largando a pasta fechada no chão para envolver Rafael em um abraço apertado.

— Eu prometi cuidar de você enquanto eu viver, não foi? — sussurrou — A promessa também se estende à nossa família. Nossa pequena sagrada família. Estamos juntos nessa, certo?

— Sempre. — o mais alto respondeu, a voz embargada enquanto ele tinha o rosto enterrado no ombro do marido. — Eu te amo, Cariño.

— Também te amo, Rafa. Muito.

 

***

Felipe encolhia-se a um canteiro de margaridas dos jardins do castelo, cabisbaixo enquanto observava as flores balançando ao vento. Não gostava de arrancar as plantas para mexer com elas, preferia olhar. Imaginava que elas davam gritinhos animados ao serem balançadas pelo vento, o que tanto contribuía para seu humor tristonho quanto para a falta de vontade de arrancar as flores.

— Felipe? — uma voz chamou, e o garotinho virou a cabeça para ver Louis aproximar-se, os cabelos negros despenteando-se com a brisa e um sorriso bondoso em seu rosto. Ele se sentou ao lado de Felipe, que voltou ao seu estado contemplativo das flores. O naturalista ergueu uma sobrancelha, levemente preocupado, e então estalou um dedo. As margaridas, de brancas, passaram a ser amarelas e azuis e vermelhas e roxas, trocando de cor à medida que o vento as sacudia. O garotinho deu uma pequena risada, ao que Louis sorriu também. — Achei que seu riso tinha se perdido, solzinho.

— Mas ele tá na minha cara, como que ia se perder? — Felipe replicou, e o mais velho concordou com a cabeça.

— Mas você anda chateado, não é? Por que está aqui fora sozinho?

— Eu ia tá sozinho lá dentro também. — ele deu de ombros.

— Sente falta dos seus pais?

Felipe fez que sim, suspirando.

— Eu sei Fael foi resgatar o papai, mas já fazem dias! E até quando ele estava estudando… Ele nem me dava boa noite, chegava tão tarde da Biblioteca. — ele franziu a testa, emburrado. — Gosta mais de logo quando a gente chegou aqui, que brincava todo dia nesse mundo legal. Agora parece que eu tô sozinho de novo!

— De novo?

— É. Eu era sozinho antes de papai e Fael me adotarem.

— O que é adotar? — Louis perguntou, curioso. Felipe parou um pouco para pensar, antes de responder:

— Tem uns pais e umas mães que não querem ser pais e mães. Aí eles deixam os bebês nos lugares que cuidam deles, que chamam orfanato. E aí depois uns adultos que querem ser pais e mães chegam lá e escolhem uma criança pra ser filha deles. Isso chama adoção.

— E você ficava sozinho no orfanato? — o naturalista quis saber, achando o conceito de adoção muitíssimo interessante.

— Mais ou menos. Tinham as tias que cuidavam da gente e tinham outras crianças lá, mas é diferente de ter uma família mesmo.

— Diferente como?

— Ah, no orfanato ninguém dá beijo de boa noite, não vê se você escovou os dentes, nem te dá um abraço antes de você pedir. — ele pensou mais um pouco, franzindo a testa. — Como que é aquela palavra? Se portal?

— Se importar?

— Isso. Ninguém no orfanato se importa de verdade.

As flores continuaram a trocar de cor, enquanto Louis refletia um pouco sobre sua próxima pergunta. Não queria deixar o garoto mais chateado, mas não conseguia deixar de ficar curioso.

— Faz quanto tempo que você foi adotado?

— Hm, tem um tempo grande. Acho que dois anos, quase.

— E você se lembra de alguém do orfanato?

— Lembro. Tinha umas crianças legais, umas tristes e umas com raiva. Eu gostava mais das legais, mas as tristes não eram muito ruins também. — Felipe lembrou. — Tem um menino que é meu amigo do orfanato que foi adotado por uns amigos dos meus pais. O nome dele é Sten e ele é muito legal, vamos pra escola juntos agora. Mas eu lembro que era bem chato em dia de entrevista, porque a gente não podia sujar nossa roupa bonita.

— Entrevista?

— É. — o garotinho parecia mais animado, continuando seu relato. — Lembra que eu falei dos adultos que queriam ser pais e mães? — ele esperou Louis dizer que sim para continuar — Eles falavam com as tias do orfanato e marcavam uns dias pra conhecer as crianças, perguntar coisas pra elas e escolher as que eles gostavam mais. Esses eram os dias de entrevista.

— Como foi sua entrevista com Hector e Rafael?

— Ah, não teve. — Felipe riu — Fael e papai resolveram que iam escolher depois de brincar uns dias com as crianças. Foi bem legal, todo mundo ficou bem chocado.

— E depois eles te escolheram.

— Foi. Teve uma época que eu passava só os fins de semana com eles, acho que só pra testar. E a gente saía muito! E aí um dia as tias deixaram eu ficar com eles pra sempre. — ele terminou com um sorriso animado. Louis gostou de ver o pequeno sol sorrir mais uma vez, e fez as flores pararem com a magia. — Como que você faz isso?

— Trocar a cor das flores? — Felipe assentiu, e o naturalista sorriu. — É fácil. Você precisa se concentrar muito na cor que imagina as flores, imagina as flores com essa cor. Qual a que você quer?

— Azul.

— Certo. Pensa nas margaridas azuis. Fecha os olhos se quiser. — o garotinho fechou os olhos com força, concentrando-se. — Concentrou? Ótimo. Agora estala os dedos.

Ele estalou os dedos da mão esquerda e, ao abrir os olhos, constatou que as margaridas estavam azuis. Do jeito que ele tinha imaginado. Felipe abriu a boca em descrença, animado.

— Fui eu quem fez isso?!

— Foi sim. — Louis estava tão assombrado quanto ele. — Achei que você conseguiria na terceira ou quarta tentativa, mas não de primeira! Você daria um ótimo naturalista, solzinho.

— Um natu… O quê?

— Um naturalista. É alguém que consegue conversar com a natureza e usá-la a seu favor. — o Mestre explicou. — Lembra de ver Maren flutuando por aí? Ela é uma naturalista, então ela consegue convencer o vento a sustentá-la.

— Então papai é um naturalista? — Felipe indagou, curioso. Louis parou para pensar um pouco. Muitas vezes tinham se adiantado ao classificar Hector como naturalista, mas ele sabia que o Filho do Vento sempre foi hesitante em aceitar tal rótulo. O único elemento que conseguia convencer a trabalhar consigo era o vento, em oposição aos sussurros da jovem rainha de Ikla para o fogo e a beleza do comando de Nate para com as tempestades, além da corrida sobre a água de Hipólita. Ele sempre reclamava de nem mesmo ser capaz de conversar com os animais, o que o deixava com um pouco de inveja dos poderes de seus amigos daquele mundo.

— Bom, mais ou menos. É que… — começou a explicar, mas o garotinho já não o ouvia mais. Tinha avistado uma movimentação no lado oposto dos jardins do castelo e se levantado para investigá-la, deixando Louis falando sozinho. O Mestre do Alto Conselho dos Magos riu sozinho, indo atrás do solzinho para então vê-lo soltar um grito animado e correr desesperadamente até os dois homens que chegavam por uma trilha da floresta. Hector e Rafael haviam, finalmente, chegado.

“Eu deveria avisar a Maren,” ele pensou, invocando o vento para correr mais depressa até o casal. O ruivo parecia bastante abatido e mal cuidado, mas abraçava o filho e o marido com força. “Ela vai precisar começar os preparativos para o baile.”

***

anos antes

 

O garotinho hesitou diante da porta do quarto dos pais, pensando se incomodaria demais. Mas parecia que fazia horas que tinha acordado de um de seus muitos pesadelos e não conseguia voltar a dormir, as imagens fabricadas por seu cérebro horríveis demais para deixá-lo em paz. Quando fizesse sol, ele ia sair com seus pais pela primeira vez como filho oficial deles, com documentos e um quarto só para si e não iria voltar pro orfanato nunca mais. Ele queria estar bem acordado para poder lembrar de tudo desse dia muito importante, mas não. Conseguia. Dormir.

Felipe respirou fundo e empurrou vagarosamente a porta entreaberta, pondo metade do rosto para dentro do quarto e pensando em qual dos homens adormecidos ele deveria acordar. Pesou cuidadosamente em sua mente de criança qual deles precisava mais de sono, e qual se importaria menos em ser acordado. Decidiu ir para o lado esquerdo da cama de casal, suavemente cutucando o homem ruivo que dormia de lado.

— Hector? — chamou baixinho, e os olhos azuis tempestuosos se abriram para encarar o garotinho com sonolência.

— Que foi, Lipe? — Hector indagou, a voz carregada tanto de sono quanto de preocupação. — Aconteceu alguma coisa?

— Tive um pesadelo. — Felipe respondeu simplesmente, e o ruivo esfregou os olhos para espantar o sono e sentar-se na cama.

— Quer contar como foi? — perguntou, e o garotinho fez que não. — O que posso fazer pra te ajudar a dormir?

— Fica comigo lá na cama até eu dormir?

Hector assentiu, se levantando e acompanhando o filho para o quarto, não sem antes arrumar as cobertas sobre o marido adormecido. Deitou-se junto com ele na cama de solteiro, e fez carinho em sua barriga por algum tempo até ver que Felipe tinha se acalmado levemente, mas ainda não conseguia dormir.

— Tive uma ideia. — disse. — Já volto.

Se levantou mais uma vez e seguiu para o escritório, encontrando seu violão apoiado em um canto da parede e voltando para o quarto azul do filho. Sentou-se aos pés da cama ante o olhar atento do garotinho de cabelos loiros, apoiou o violão no colo e começou a dedilhar uma melodia. Felipe trocou de lado, pondo o travesseiro do lado da cama mais próximo ao pai para ouvi-lo cantar:

When you feel your love's been taken… When you know there's something missing… In the dark, we're barely hangin' on… Then you rest your head upon my chest… And you feel like there ain't nothing left…

O garotinho foi relaxando mais, os olhos começando a pesar com o sono. Hector continuou tocando baixinho, preocupado em não acordar Rafael no quarto do final do corredor e em trazer um pouco de conforto ao seu menino ao mesmo tempo.

— O… — Felipe bocejou — Obrigado, papai. — disse, distraidamente chamando o ruivo de pai pela primeira vez e fazendo a voz dele falar por alguns segundos por causa da emoção daquele pequeno momento.

Then I think of the start… And it echoes a spark… And I remember the magic electricity… Then I look in my heart… — Hector chegou ao refrão, uma lágrima solitária escorrendo por sua bochecha enquanto ele sorria consigo mesmo — There's a light in the dark… Still a flicker of hope that you first gave to me… That I wanna keep… Please don't leave…

Na manhã seguinte, Rafael acordou sozinho na cama do casal. Andando levemente confuso pela casa, encontrou seu marido adormecido encostado na cama de Felipe, o violão caído ao seu lado. O garotinho tinha se aproximado o máximo que o colchão permitia do pai, quase caindo da cama. O único acordado na casa sorriu, silenciosamente correndo até o quarto para pegar seu celular e capturar aquele momento em uma foto.

— Fael… — o menininho chamou, logo após o homem de barba castanha tirar a foto.

— Bom dia, Lipe. — cumprimentou alegremente, e Felipe abriu um sorriso.

— Bom dia! Desculpa por ter tirado o papai da cama, é que eu tive um pesadelo e…

— Tudo bem, niño. — Rafael interrompeu, pegando o garotinho no colo para abraçá-lo. — E que novidade é essa de chamar Hector de pai?

— Eu chamei ontem de madrugada e ele não se importou, e aí eu achei que ficaria melhor do que chamar ele pelo nome todo dele, sabe? — explicou — Você eu chamo de Fael e é um apelido só meu pra você, então tudo bem. Mas todo mundo chama ele de Hector, aí achei mais legal chamar ele de papai e você de Fael. Tudo bem?

— Tudo bem. — ele riu da tagarelice de seu menino logo de manhã e colocou-o no chão com um sorriso. — Por que você não vai tomar banho enquanto eu acordo o papai?

— Tá bom. — e Felipe correu para o banheiro do corredor, o medo da madrugada totalmente esquecido diante do entusiasmo do dia que estava por vir. Rafael sorriu e se ajoelhou no chão, tirando o violão do caminho para beijar a testa do marido e chamá-lo baixinho.

— Bom dia, Cariño. — disse, ao que Hector gemeu ante a dor que sentia nas costas.

— Por favor, não me deixe dormir aqui de novo. — falou, fazendo uma careta enquanto se levantava do chão com a ajuda do marido.

— Oh não, temos aqui um velho! — Rafael brincou e o ruivo revirou os olhos.

— Olha quem fala. Botamos a adoção do Felipe em seu nome por quê mesmo? — replicou, e o mais alto deu-lhe língua.

— Você casou com um cara dois anos mais velho porque quis.

— Tem certeza de que você não me enfeitiçou e me coagiu a casar com você? — Hector ergueu uma sobrancelha, e Rafael gargalhou.

— Se alguém foi enfeitiçado, esse alguém fui eu. — respondeu, beijando-lhe os lábios e sorrindo. Os dois saíram do quarto, começando a rotina diária de café da manhã e arrumar-se para sair em um ritmo confortável que apenas os gritinhos animados de Felipe ao ser perseguido por um Rafael risonho interrompiam.

A pequena família saiu aproximadamente uma hora depois, com planos de passar a manhã de sábado comprando roupas e coisas necessárias para o garotinho realmente se sentir em casa em seu lar permanente. Depois de voltarem para casa carregando o que pareciam ser milhares de sacolas, almoçaram rapidamente e correram para o parque de diversões que tinham visto dias atrás. Passaram boa parte da tarde correndo de brinquedo em brinquedo com Felipe, até que ambos os adultos estavam cansados demais para se mover. Sentaram-se com garrafas de água enquanto observavam o garotinho habilmente brincar em uma daquelas típicas máquinas de tirar bichos de pelúcia com uma garra. Ele precisou de apenas duas tentativas para conseguir o animal que queria, um pequeno urso cor de rosa, e correu até os pais para mostrar o que tinha conquistado.

— Olha, eu consegui! — comemorou, sentando-se com o urso no colo enquanto Rafael enxugava-lhe o rosto suado e lhe estendia uma garrafa d’água. — Posso tentar pegar o tigre depois, Fael?

— Pode sim. Mas sente aqui um pouco pra tomar sua água, niño. — Hector respondeu, e o garotinho assentiu. Começou a tagarelar sobre o nome que daria ao seu urso e em como ele e o tigre brincariam juntos até uma mulher e uma menininha chegarem até a máquina. A menina tinha uma única moeda em mãos para colocar na máquina e falava para a mãe que queria muito o tigre de pelúcia no topo da pilha, mas que só tinha uma chance e estava nervosa.

— Ela quer o mesmo bicho que eu! — Felipe exclamou.

— Será que ela vai conseguir? — Hector perguntou, e o menino deu de ombros. Observou a garotinha, de tranças castanhas e um macacão jeans remendado várias vezes, depositar sua moeda na máquina e morder o lábio inferior enquanto controlava a garra. Ela arregalou os olhos com um sorriso quando conseguiu agarrar o tigre pela cabeça, mas quase chorou quando o bicho escorregou de volta para o monte de animais de pelúcia. A mãe suspirou, resignada, e começou a levar a menina embora.

Felipe levantou-se e correu de volta para a máquina, pondo sua moeda e concentrando-se para pegar o tigre que queria. Agarrou-o pelo corpo, o que deixou a garra mais firme até que ele pudesse soltar o bicho no buraco correto e pegá-lo. Comemorou com pulinhos até se lembrar da menina, e olhou para o tigre em suas mãos com dúvida. Rafael segurava o urso, e ele olhou dos animais para a menina que se afastava com a mãe várias vezes antes de se decidir. O casal observou embasbacado quando o garotinho correu atrás das duas e entregou o tigre de pelúcia para a menina com um sorriso animado.

— Você pegou o tigre! — ela exclamou.

— Sim, e ele é seu. — Felipe explicou.

— Mas você não queria o tigre?

— Eu peguei o urso também. Aí não seria muito legal eu ter dois bichos e você nenhum, né?

A garotinha assentiu, e perguntou à mãe se podia brincar com Felipe e o urso rosa. A mulher assentiu e os dois correram até onde Rafael estava com o bicho de seu filho, pegando-o e encontrando uma brincadeira criativa para ambos os animais. A moça, em um vestido que parecia ter sido usado muitas vezes, se aproximou do casal e sentou ao lado deles, observando os dois novos amigos com um sorriso amoroso.

— Quantos anos ele tem? Seu menino. — olhou para o homem de cabelos castanhos, que sorriu.

Nosso menino tem quase sete. — disse, e ela olhou para Hector como quem pede desculpas. O ruivo respondeu com outro sorriso, de quem não se ofendeu.

— Ah, sim. Minha Alice fez sete essa semana, a moeda que usou na máquina era a última de seu cofrinho. Vocês o adotaram?

— Foi. É a primeira vez que saímos juntos desde que se tornou oficial. — Rafael respondeu, orgulhoso.

— Ele é ótimo, não é? — ela comentou. O casal suspirou, observando as duas crianças brincando com seus animais de pelúcia.

— É, ele é sim.

***

Hector arrumou o sobretudo azul escuro do marido, sorrindo diante da constatação de que, realmente, ele ficava muito lindo nas roupas típicas daquele mundo. Rafael ergueu uma sobrancelha, obviamente ciente do que ele estava pensando, e comentou com uma risada:

— Temos uma noite inteira pela frente. Tente não pensar nos jeitos diferentes de que poderia tirar essas roupas, sim?

— Você me toma por um depravado? — o ruivo disse, em um falso tom de indignação — Mas que disparate sem tamanho é este?!

— Por que você começou a falar que nem o pessoal da época vitoriana de repente? — o mais alto perguntou, rindo.

— São as roupas, desculpe. — Hector olhou no espelho e terminou de abotoar seu colete, observando o reflexo do marido olhá-lo com um sorriso lento. — Que foi, Rafa?

— Eu senti sua falta.

— Também senti a sua. — respondeu, virando-se para se por na ponta dos pés e beijá-lo nos lábios. Naquele momento foram interrompidos por um Felipe muito animado que invadiu o quarto, vestido em seu pequeno fraque e com os cabelos loiros penteados para o lado.

— Papai, Fael! Estamos atrasados! — ele fez uma careta — Parem de se beijar e vamos!

— Tudo bem, niño. — Hector riu, indo atrás do filho com Rafael em seu encalço. — Por que você diz que estamos atrasados?

— Porque já tem gente dançando lá embaixo. E aquelas comidas gostosas sendo servidas!

— Maren e Julio já desceram? — o homem de cabelos castanhos indagou, ao que o menino fez que não. — Então não estamos atrasados.

— Vamos logo! — Felipe reclamou, puxando os pais pelas escadarias da Torre Purpúrea e quase esbarrando no homem negro que subia as escadas. Julio cumprimentou o casal com um sorriso e terminou de subir, chegando ao topo da torre e encontrando sua rainha encarando o espelho. Ela vestia um elegante vestido azul de múltiplas saias, os cabelos ondulados presos em uma tranças bem-feita que destacava a coroa de ouro em sua cabeça. Pela silhueta formada, o rei consorte pôde perceber que ela não usava espartilho como geralmente fazia em festas oficiais, já que ele ajudava a corrigir sua postura.

— Meu amor, todos estão nos aguardando. — comentou, fazendo-a virar-se para olhá-lo com um sorriso.

— Eu sei. Já vamos. — suspirou — Ainda bem que pudemos fazer este baile ao invés de um enterro, não é?

— Olhe, não pense sobre o que poderia acontecer agora. — Julio pediu, se aproximando de Maren para tomá-la em seus braços. — Vamos nos divertir hoje, sim?

— Eu preciso pensar no que pode acontecer a partir de agora, porém. — ela deu de ombros.

— Por quê? A rainha merece uma noite de descanso.

— Uma rainha grávida precisa se preocupar com o futuro de seu herdeiro, não? — ela piscou, virando-se para rir da expressão embasbacada do marido.

— Grávida?! — ele perguntou, abrindo um sorriso animado. Ela assentiu, e ele a apertou em mais um abraço. Acabou girando-a no ar, distribuindo um milhão de beijos por sua face enquanto a rainha ria.

— É, todos aqueles enjoos advinham disso. — Maren explicou, dando de ombros com um sorriso animado no rosto. — Devo contar a todos hoje no baile, já que Hector e Rafael devem ir embora em dois dias, mas o pai da minha cria merece saber antes. — piscou para Julio, que sorriu.

— Acho muito justo. E não se preocupe com nada hoje, deixemos para o dia de amanhã todas as possibilidades. Tudo bem?

— Certo, você venceu. Mas a Rainha das Fadas não vai deixar barato, pelo que Rafael nos contou logo que chegou.

— Faz semanas que Rafael voltou com Hector e nada aconteceu, não foi? — o homem negro disse, pondo uma das tranças de seu cabelo negro para trás da orelha. — Vamos nos preocupar com isso quando realmente acontecer algo, certo? Vamos a um baile agora, minha rainha!

— Tudo bem, tudo bem. Estou feliz que tudo está bem, ao menos por enquanto.

— Ótimo. — Julio beijou-lhe o nariz, entrelaçando seus dedos e começando a se dirigir para as escadas. — E não se preocupe, meu amor. Não vou deixar nada acontecer com você ou com nossa criança. É uma promessa.

A rainha de Ikla sorriu, assentindo. Este é um bom final para essa história, sem dúvida. Mas finais também marcam começos de novas aventuras, e é o que esta cena representa. Um começo.

 


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