En El Medio escrita por Marylin C


Capítulo 6
VI. make a bow with old cut ties




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PARTE 6. make a bow with old cut ties

Hector tinha o olhar perdido voltado para a imensidão de verde que as janelas altas de seus aposentos no Reino das Fadas mostravam. Sentava-se no parapeito de uma delas, abraçando as próprias pernas enquanto sentia o vento beijar-lhe os cabelos ruivos e a possibilidade de usá-lo para sair dali passava mais uma vez por sua cabeça. Já tinha tentado, em um de seus ataques de insanidade causados pela fome e pela saudade, apenas para ser pego a poucos metros da enorme árvore onde ficava a habitação da Rainha.  

O termo ‘casa na árvore’ parecia rudimentar e pequeno perto da exuberância que aparecia em cada pequeno galho retorcido e organizado de modo a acolher as vidas dos Filhos de Eloa. Também não sabia ao certo se podia chamar aquele lugar de castelo, ou mesmo de mansão. Era diferente de tudo o que já tinha visto na vida, além do que sua imaginação infantil um dia criara de todas as histórias de seu pai. A magia que transformara o largo tronco da sequoia em um intrincado e belo conjunto de corredores, quartos e salões estava além da compreensão dele.

— Filho do Vento? — ouviu uma conhecida voz suave chamar, e tentou manter o olhar no céu azul ao replicar:

— Meu nome é Hector.

— Você está em meu domínio. Logo, eu posso chamá-lo do que me aprazer. — a dona da voz respondeu simplesmente. — Não deveria ter negado toda e qualquer tentativa nossa de agradá-lo, Filho do Vento.

— O que me agradaria seria que me deixassem voltar para o meu povo. Mas eu sei que, por algum motivo, você preferiu manter-me aqui. — Hector deu de ombros.

— Oh, você ainda ignora o motivo de mantê-lo aqui? — a Rainha das Fadas riu, apoiando-se na janela ao lado do homem ruivo. — Pois bem, vou contar. O que eu quero é estudar sua raça. Já que me proporcionou a oportunidade, quero saber quanto tempo aguentas viver sem comida ou água. Quanto tempo leva para seus instintos se sobreporem à mais ferrenha determinação. Quais as nuances de seus sentimentos esdrúxulos.

— Você age como se estivesse acima disso tudo. — ele comentou. — Mas é tão mortal quanto eu. Talvez até mais.

— O que quer dizer com isso? — ela indagou, em tom risonho.

— Você anda por aí agindo como dona do universo, mas perecerá com o vazio que a imortalidade causa. Sei bem que os Filhos de Eloa não morrem de velhice ou de doenças, mas por que acha que tantos de vocês escolheram isolar-se nos Campos de Soláris ou deixar o Reino? — Hector disse, apoiando o queixo nos joelhos. Não queria olhar a Rainha, se sentia inquieto por algum motivo. — O fato é que a sua busca eterna por conhecimento, mesmo falsas ideias que corroboram o seu preconceito, não faz sua vida valer a pena.

— E o que faz a vida valer a pena, em sua opinião?

— Amor. — ele respondeu simplesmente, fazendo-a soltar um murmúrio pensativo antes de deixá-lo novamente sozinho. Uma ideia o fez sair da beirada da janela e correr até a mesa do outro lado da sala, encontrando pergaminho e tinta e pena para se por a desenhar. Quando acabou, soprou a folha para que ela secasse e a levou até a janela, voltando a soprá-la para vê-la se transformar em um pássaro de papel e voar para longe. Depois voltou a se deitar no chão, a onda de lucidez que caracterizava cada visita da Rainha extinguindo-se e novamente dando lugar aos seus devaneios de desejo e saudade.

***

anos antes

— Eu sinceramente espero que você tenha um motivo muito bom pra esquecer do nosso filme e ainda não me atender, Hector. Me liga! — Rafael terminou a quinta mensagem de voz, voltando a jogar o celular sobre a mesinha de centro de sua sala. Fazia três horas que ele estava pronto, esperando seu namorado para irem ao cinema na sexta à noite. Apesar de ser muito desastrado, Hector costumava ter boa memória. Mesmo quando aconteciam imprevistos na delegacia, ele sempre avisava. Talvez a bateria do celular dele tivesse descarregado, e o imprevisto o tinha deixado muito ocupado… Mas isso já tinha acontecido outras duas vezes, e em ambas ele tinha ligado do celular de Rui para avisar. Será que tinha acontecido algo realmente sério dessa vez? Hector tinha comentado que estava investigando um cartel e que um de seus colegas quase tinha sido morto. Será que…?

Não, espere. Ele não ia se desesperar sem motivo. Pegou o celular e telefonou dessa vez para Rui, que atendeu no terceiro toque:

— Rafa! Tudo bem contigo?

— Não sei ainda. Hector ainda está com você? — Rafael foi direto ao ponto, ao que Rui respondeu com confusão:

— Ele saiu há horas. Estava super apressado porque disse que ia sair com você, mas o pai dele tinha pedido pra ele passar na casa dele antes.

— Ele saiu na hora certa, então?

— Foi. Por quê? Ele não está com você? — o tom do policial passou a ser de preocupação.

— Não. E ele não me atende.

— Estranho. — Rui comentou, e então tossiu para assumir uma postura mais esperançosa. — Talvez os pais dele tenham obrigado ele a jantar por lá e o celular dele descarregou.

Rafael reprimiu o próximo raciocínio, ‘então por que ele não ligou do celular dos pais?’, para não preocupar o amigo. Ao invés disso, agradeceu e desligou. Então encontrou o número de Sebastian em seus contatos, e o homem o atendeu no segundo toque:

— Rafael, meu filho! Como foi o filme?

— Hector não está com você? — o Oficial de Justiça respondeu a pergunta com outra, mais preocupado ainda.

— Não. Ele passou aqui umas horas atrás pra pegar umas pastas que esqueceu aqui, mas disse que ia sair com você. Estava muito apressado, falou que ainda ia passar no apartamento dele para trocar de roupa antes de te encontrar. — Sebastian replicou. — Ele nem apareceu aí?

Rafael explicou a situação, fazendo o pai de Hector soltar uma risadinha.

— Você não tinha me dito uns meses atrás que namorava um homem perfeitamente capaz de cuidar de si mesmo? — ele comentou, e o homem de cabelos castanhos quase pôde ver o sorriso descansado de seu sogro.

— Eu disse, mas…

— Ele estava com cara de cansado quando chegou aqui. Deve ter caído no sono quando chegou em casa. Por que você não vai lá ver?

Rafael reprimiu um xingamento para aquela ideia estúpida, mas agradeceu e mais uma vez se despediu de alguém que só o deixara mais preocupado. Suspirou e se levantou do sofá, encontrando a chave do carro de Hector sobre a mesa da cozinha e saindo de seu apartamento. Iria seguir a sugestão de Sebastian antes de se desesperar de verdade, só por desencargo de consciência.

Tentou veementemente acreditar que seu namorado estaria adormecido no próprio sofá, exausto da semana de trabalho, enquanto dirigia. Tinha ficado com o carro dele pelos últimos dias porque Hector tinha andado por aí com Rui na viatura da polícia de Barcelona, prendendo bandidos e investigando cenas de crime, e os dois tinham concordado que, pelas vezes que Rafael tinha precisado vagar pela cidade executando ordens, o carro lhe seria mais útil.

— Senhor Ángel! — chamou o porteiro, que lia um jornal em sua cabine, ao descer do carro e entrar no prédio de Hector. O homem era um dos poucos que ainda exercia aquela função na Espanha, os porteiros sendo substituídos pelas portarias eletrônicas. — Hector chegou aqui tem muito tempo?

— Ele chegou, subiu e desceu muito rápido, Rafael. — comentou, ajeitando os óculos de armação redonda. — Por quê?

— Você viu se ele entrou no metrô? — foi a próxima pergunta dele, ao que o porteiro negou com a cabeça.

— Ele atravessou a rua e um carro preto parou para ele entrar. Ele pareceu surpreso, mas entrou mesmo assim.

Rafael conteve a vontade de se encolher no chão e chorar, agradecendo a Ángel antes de pegar o elevador e usar sua chave para entrar no apartamento de Hector. Não podia ligar para a polícia, já que só consideravam alguém como desaparecido em 48 horas e provavelmente seria xingado se tentasse naquele momento. Então resignou-se a encolher-se no sofá de seu namorado e deixar o celular no volume alto, para o caso de alguém ligar. Hesitou em falar o que tinha descoberto a Rui, pois ele também não teria como fazer muita coisa sem a real comprovação de que Hector tinha sumido, mesmo que ambos soubessem que não era do feitio do agente desaparecer assim. Mesmo assim mandou uma mensagem explicando, sem forças para falar em voz alta sobre o desaparecimento do dono de seu coração. Então incomodou-se com o silêncio tumular do apartamento, e ligou a televisão só para ter algum barulho no lugar que geralmente era cheio de vida. Onde ele estava?

Horas depois, já na madrugada, o cansaço venceu a preocupação e Rafael adormeceu no sofá marrom de Hector, em um sono inquieto e cheio de pesadelos. Acordou diversas vezes durante a noite, mas só quando o sol começou a nascer que ele despertou de vez, com a porta do apartamento se abrindo. Ele se sentou no sofá, atônito, ao observar seu namorado entrar no apartamento com uma expressão cansada, pondo uma sacola em cima da mesa de jantar antes de notá-lo ali.

— Rafa! — ele abriu um pequeno sorriso amarelo — Sinto muito pelo cinema de hoje, é que…

— Onde você estava? — Rafael indagou, se levantando de um pulo para ver se o rapaz ruivo estava ferido. — O que aconteceu? Por que não me ligou? Você está bem?

— Ei, eu estou bem, calma. — Hector sorriu ante a preocupação do namorado, segurando-lhe as mãos. —   Hernandez me abordou quando eu estava indo te encontrar, com uma situação de emergência. Tive que voar até Valencia para uma situação de reféns, e…

— E por que você não me ligou?! — Rafael afastou as mãos de Hector, cujo sorriso desapareceu.

— Meu celular descarregou, e não pude ligar do da agência por medida de segurança e… — o agente ruivo foi falando, hesitante. O homem à sua frente tinha cruzado os braços e a expressão tinha passado da preocupação à raiva.

— Eu fiquei louco atrás de você! — Rafael exclamou, a voz meio tom mais alta indicando o estado incrédulo em que ele se encontrava. — Achei que você tinha sido sequestrado, desaparecido, ou sei lá!

— Rafa, me desculpe, eu…

— Custava ter mandado uma mísera mensagem?! — ele reclamou, passando uma mão pelos cabelos castanhos com nervosismo. — Eu fiquei horas

— Me desculpa, tá bom?! — Hector gritou, interrompendo-o. — Eu sei que foi errado e sei que foi uma falta de consideração da minha parte! Mas não precisa desse escândalo todo!

— Não precisa? — Rafael repetiu, o tom de escárnio explícito em sua voz — Não precisa de escândalo! Oh, não, porque eu não sou tão importante assim para o agente mais jovem da CNI tirar parte do precioso tempo dele para me mandar uma mensagem que seja!

— Não foi assim! Eu não sou assim, e você sabe disso. Você sabe o quão importante é pra mim! — Hector bradou, gesticulando muito.

— Sei? Sei mesmo? Porque pelo que vejo, você não hesitou em desaparecer sem deixar notícias por mais de oito horas! Você sequer lembrou de mim?

— O que diabos tem de errado com você?! É o meu trabalho! — Hector replicou, exasperado. — Quando me chamam, eu preciso ir! E você sabe disso! Por que está implicando com isso agora?

— Porque você sumiu! — Rafael exclamou — Você sumiu e nem se deu ao trabalho de explicar pra onde foi! Aposto que seus pais estão tão preocupados quanto eu estava, e…

— Não, eles não estão! Porque eles entendem que às vezes simplesmente não dá pra mandar notícias! — o agente ruivo passou uma mão pelo rosto, tentando se acalmar. — Pelo amor de Deus, Rafael…

— Oh, então o errado aqui sou eu agora? — o homem soltou uma risada sem humor, tentando controlar-se para não quebrar alguma coisa. — Estou errado em me preocupar com meu namorado, é isso?

— Rafa, não foi isso que…

— Ah, foi isso sim! Foi isso que você quis dizer com o seu “pelo amor de Deus, Rafael”. Você… — e Hector ficou realmente irritado depois disso, interrompendo-o:

— Quer saber? E se foi?! — ele parou para respirar, vendo o semblante do namorado passar de raiva para mágoa. Isso o fez hesitar, mas não ia deixar de falar o que pensava daquele circo armado. — Você está fazendo uma tempestade em copo d’água por causa de uma exceção! Eu nunca fui resolver algo da CNI sem te avisar, e você surta da primeira vez que isso acontece? Tenha dó!

Rafael não respondeu, o silêncio dele sendo suficiente para expressar sua revolta. Ele voltou-se para o sofá, alcançando o celular e as chaves de seu apartamento. Lançou um olhar dolorido para o rapaz ruivo antes de sair sem dizer nada, batendo a porta. Hector respirou profundamente, tentando conter o ímpeto de ir atrás do namorado. Sabia que, enquanto ambos estivessem nervosos com aquilo, não adiantava de nada tentar conversar. Mas ainda assim…

Ele abriu a porta do apartamento, para encontrar Rafael sentado com as costas apoiadas na parede do corredor enquanto segurava uma mão machucada. Ele claramente tinha socado uma parede em sua raiva, e seu punho sangrava.

Hector respirou fundo, tentando  fazer seu corpo parar de tremer de raiva. Deixou a porta aberta, voltando para dentro para encontrar o kit de primeiros socorros na cozinha e ir até o homem de cabelos castanhos. Ajoelhou-se ao lado dele e delicadamente segurou-lhe a mão machucada, usando um algodão para limpar o ferimento antes de fazer um curativo. O silêncio instaurado foi de tenso para confortável à medida que Hector trabalhava, os dois acalmando-se da briga de alguns minutos atrás com aquela situação familiar. Talvez aquilo mesmo fosse amor, Rafael refletiria mais tarde. A mera presença do outro tanto incendiando quanto acalmando.

Só quando o agente ruivo tinha acabado de enfaixar a mão foi que olhou-o nos olhos, e viu o castanho cor de chocolate derreter-se em um pequeno sorriso.

— Eu… — começou, em voz baixa — Eu comprei torta de morango para pedir desculpas.

— A minha favorita? — Rafael perguntou, fazendo-o assentir. — Você acha que pode comprar meu perdão com torta de morango?

— Acho. — o tom risonho com o que a pergunta tinha sido feita deixou base para aquela resposta, e o Oficial de Justiça revirou os olhos com um leve sorriso.

— Correto. — ele piscou, e Hector riu. — Mas nunca mais suma assim, tá?

— Tá.

***

Rafael abriu os olhos e sentiu os ombros tensos, o pescoço dolorido por ter adormecido com o rosto sobre os livros que estudava. Fez uma careta enquanto tentava alongar-se, observando o movimento da Biblioteca. Magos refaziam estantes queimadas, tentavam salvar livros e pergaminhos que quase viraram cinzas. Muitos deles não poderiam ser restaurados, a magia que uma vez os mantivera intactos tendo sido permanentemente danificada pelo fogo. Helia estava de pé no meio do grande salão onde a Biblioteca se localizava, recebendo bilhetes e anotando títulos de livros irrecuperáveis em uma longa lista. Nate, sentado à uma escrivaninha de madeira escura, começava a transcrever informações de seu Diário para um livro em branco. Foi ele quem notou que Rafael tinha acordado, erguendo a cabeça para olhá-lo com um sorriso simpático.

— Ele acordou, Helia. — avisou para o naturalista de cabelos lisos, que voltou-se para a mesa onde o visitante daquele mundo se encontrava enquanto guardava a lista.

— Já é dia? — Rafael indagou, levemente desnorteado. As janelas da Biblioteca não denunciavam horários pela luz, sendo ela um lugar além do tempo, então era fácil ocupar-se e não ver as horas passarem.

— Sim. Ontem você disse que ficaria mais um pouco, mas acabou adormecendo. — Helia explicou, se aproximando para pousar uma mão no ombro dolorido do homem. Só então Rafael notou que tinha um cobertor de lã sobre si, mantendo-o aquecido durante a noite. O gesto simples o fez abrir um pequeno sorriso, e o homem atrás de si sussurrou um feitiço para aliviar-lhe as dores. — Melhor?

— Sim, obrigado. — Rafael se levantou, alongando os braços e o pescoço antes de comentar — Lembro de ter descoberto algo interessante ontem, mas caí no sono antes de ir atrás de vocês.

— É uma sorte que a seção sobre as Cinco Raças não tenha sido queimada, não é? — Nate disse, se levantando para verificar o livro aberto que Rafael tinha utilizado de travesseiro. Os dois concordaram, e Helia leu em voz alta o trecho grifado com tinta vermelha do livro sobre a mesa:

“Neste acordo, assinado após a Batalha da Colina de Sangue, cláusulas preventivas incluem a impossibilidade de membros das outras Raças serem feitos prisioneiros por Filhos de Eloa puramente para fins científicos, sendo obrigatória a voluntariedade individual para este fim.”

— Que acordo foi esse? Não me recordo dele. — Nate indagou, a testa franzida. Rafael puxou o livro para si, procurando o nome específico antes de falar:

— O Acordo Insular de Fronteiras e Comércio. Ocorreu depois da Batalha da Colina de Sangue, onde um mal entendido resultou na morte de Filhos de Eloa e centauros. As cláusulas desse acordo estão listadas aqui no livro, mas achei que essa poderia nos ajudar.

— É, mas a Rainha pode argumentar que Hector não faz parte das Cinco Raças. — Helia comentou — Ele é filho do Vento, uma entidade, com uma mulher que não é deste mundo.

— Mas Katarin é uma humana. Qual o critério para ser de determinada raça? — Rafael indagou.

— Bom, precisamos de literatura que fale da opinião dos Filhos de Eloa sobre isso. — Nate respondeu, trazendo seu Diário para perto de si com um gesto e começando a folheá-lo. Então colocou-o na mesa e falou para o livro — Teorias de Raça e Etnicidade dos Filhos de Eloa, por favor.

O Diário começou a folhear-se sozinho, como se pensasse por si só. O homem de barba castanha imaginou que fosse isso mesmo, já que o livro parecia saber onde estava abrindo. Ele parou em páginas que antes Rafael tinha certeza que estavam em branco, mas que agora tinham sido completamente preenchidas com anotações à pena de várias caligrafias diferentes. Nate pegou o Diário de volta, lendo rapidamente as páginas selecionadas e franzindo a testa mais uma vez.

— Encontrou algo? — Rafael perguntou, e Nate torceu os lábios.

— Algumas coisas. Há referências que deveríamos buscar para conseguirmos compreender completamente essa teoria, e o Diário também me deu alguns nomes de autores.

— Vou ver se os nomes estão na lista de livros irrecuperáveis. — Helia abriu novamente os papéis da lista, sentando-se e pegando o Diário. — Vocês deveriam fazer uma pausa, e Rafael devia comer algo.

— Eu comecei a transcrição agora, não estou cansado. Vou coordenar a restauração dos livros enquanto você checa a lista. — Nate respondeu, antes de se voltar para Rafael enquanto dobrava o cobertor que tinha sido largado na cadeira. — Você sabe como chegar ao castelo. Encontre Ana. Pedi para ela guardar um pouco do café da manhã para você.

— Mas vocês têm certeza? Eu posso…

— Vá logo! — Helia revirou os olhos. — Posso ver o quão cansado você está, posso sentir. Vá respirar um pouco de ar puro!

Rafael assentiu, um pouco hesitante, e seguiu para longe das mesas. O grande salão onde se localizava a Biblioteca tinha formato arredondado, o teto abobadado pintado com imagens que lembravam ao homem de barba castanha a Capela Sistina. Mas, ao invés dos anjos e deuses de Michelangelo, dragões pareciam mover-se sobre centauros que corriam e Filhos de Eloa voavam junto com uma espécie de homens-pássaro que Rafael não fazia ideia do que seria. Deveria se lembrar de perguntar sobre aquilo depois.

As paredes eram abarrotadas de livros e pergaminhos até o espaço em que a pintura começava, as muitas estantes de madeira avermelhada que combinavam com as mesas e cadeiras que se agrupavam no centro do salão dando um ar aconchegante ao lugar. Estantes abarrotadas também formavam corredores imensos que levavam aos cantos para consulta e às escadas, que permitiam o alcance do balcão de madeira que rodeava o espaço todo como mais um andar de prateleiras de livros. Os livros de antropologia, tratados e estudos das Raças ficavam lá em cima, o que permitiu que poucos deles fossem queimados pelo incêndio. Rafael tinha subido e descido aquelas escadas mais vezes do que suas pernas aguentavam e, por mais que não quisesse admitir, estava verdadeiramente cansado.

Alcançou a extremidade do salão, onde uma porta dupla levava à Antessala dos Portais. Espelhos, janelas, portas e quadros se posicionavam espalhados pelas paredes em uma ordem aparentemente aleatória, mas um observador atento perceberia as pequenas placas com endereços penduradas acima de cada objeto. Lugares onde o Portal específico acabaria.

Rafael automaticamente se dirigiu à esquerda, encontrando um espelho de moldura floreada e olhando o reflexo dele. Ao invés de sua imagem, viu o límpido riacho próximo ao castelo. Atravessou o Portal sem hesitar e sentiu o sol da manhã beijar-lhe a face. Com ele, uma brisa marítima brincou ao seu redor e, rodopiando, um pedaço de papel dobrado atingiu-lhe o rosto.

— Que diabos…? — começou a dizer, mas ao segurar o objeto notou que aquele era um pássaro de papel e não um simples pedaço de pergaminho ao vento, o que significava uma coisa: mensagem mágica diretamente mandada para si.

O homem de cabelos castanhos desdobrou o pássaro, ávido, e abriu um sorriso lacrimoso ao vê-la. Um desenho muito mal-feito do que parecia um bolo com morangos tinha a marca registrada de Hector, e as palavras abaixo explicaram o que aquele bilhete significava. “Torta de morango”, lia-se na bagunçada letra de seu marido, e Rafael riu. Lembrava-se perfeitamente de quando começara a tradição: toda vez que Hector queria pedir desculpas por algo, arrumava uma referência diferente a uma torta de morango, para lembrá-los da vez que o agente ruivo quase matara o então namorado de preocupação.

— Oh, cariño… — ele murmurou, e correu o percurso de volta à Estrela do Norte em tempo recorde. Precisava comer depressa e voltar à Biblioteca. Hector poderia estar bem naquele momento, mas nada garantia que permaneceria assim.

Ana, a cozinheira, foi bastante gentil ao deixá-lo comer na cozinha ao invés de mandá-lo à sala de refeições da família real, entendendo que ele simplesmente não tinha tempo a perder. Rafael tentou incomodar o mínimo possível, mas a mulher muito alta e eficiente gostava de uma boa conversa.

— Não pude conhecer muito bem o seu homem. — ela comentou, em um intervalo entre ordenar os empregados de um lado a outro da cozinha. — Lembro-me de ter sido bastante generosa quando o senhor me pediu vitamina de abacate para ele, mas não muito mais que isso. Sempre digo que só se conhece um homem a partir de seu apetite, e o dele me pareceu bastante agradável.

— Ele é. — Rafael sorriu — E desculpe por tê-la incomodado tanto antes, dona Ana.

— Meu dever é servir a família real e seus convidados, não é? — Ana voltou a prender seu cabelo negro em um coque apertado, sorrindo. O visitante daquele mundo pôde perceber alguns tons grisalhos tomando a raiz dos cachos da mulher, calculando que ela devia ter por volta de cinco décadas completadas.

— De qualquer modo, desculpe. — ele deu de ombros.

— Desculpas aceitas. Agora me conte uma história, meu caro. — ela pediu, sentando-se sobre a mesa ao lado de onde Rafael comia. Dali, ela podia conversar enquanto supervisionava o serviço sendo feito.

— Uma história?

— Sim. Gosto de ouvir causos engraçados sobre pessoas amadas. Me conte uma história de seu homem.

— Oh, eu já comentei da minha tia Matilde? — Rafael disse subitamente. O pedido daquela mulher, justamente com sua postura honesta e bem-humorada, o fizeram lembrar-se imediatamente da tia que o acolhera quando fora expulso de casa. O papel em seu bolso o lembrava de que tinha que voltar para a Biblioteca o mais rápido possível, mas ele precisava daquele pequeno momento de descontração mais do que queria admitir.

— Comentou brevemente, quando contou-me do que sua mãe costumava cozinhar quando o senhor era menino. O que tem ela?

— A senhora me lembra muito ela. Eficiente, bem-humorada e sempre pronta para ouvir aventuras dos mais diversos tipos. — Rafael explicou, com uma risada. — Eu não fazia exatamente o tipo conquistador quando mais novo, então...

— Acho isso difícil de acreditar. — Ana comentou com uma risada — Eu não nasci ontem, senhor. Pelo que conheço do mundo e dos homens, um rapaz bonito como você com certeza fazia sucesso.

— Muito bem, me pegou. — Rafael riu — Eu tive… alguns namorados. Mas não eram sérios, então geralmente não os apresentava à minha tia. Até Hector, é claro.

— Ele foi o primeiro que sua tia conheceu?

— O segundo. Teve o Marco, mas ela o odiava. — ele revirou os olhos — Nunca entendi exatamente o porquê, aliás. Somos amigos até hoje, fui ao casamento dele com Elliot, um veterinário que…

— E depois dizem que são as velhas que se perdem nos assuntos! — Ana interrompeu, rindo — Não quero saber do Marco, meu caro, a menos que seja dele a história que quer me contar.

— Oh, desculpe. Bom, como eu ia dizendo, Hector foi o único namorado que apresentei que tia Matilde aprovou. Não acho que tenha sido por ele ser especialmente gentil e agradável, mas por ele arruinado o jantar completamente.

— O senhor sabe que isso não faz sentido algum, certo? — Ana indagou, a testa franzida. Rafael riu, dando de ombos.

— O caso foi o seguinte: marcamos um jantar com tia Matilde no meu apartamento, para eu apresentá-lo a ela. Eu e Hector somos cozinheiros decentes, então nós preparamos o jantar juntos. Tinha sido bem divertido, mas eu podia ver que ele estava nervoso. Derrubava mais coisas que o normal, e olhe que Hector já é totalmente desastrado por natureza.

— Oh, já vejo tudo. — Ana comentou com uma risada — Sua tia chegou, vocês se sentaram para jantar e ele tropeçou na mesa ou algo assim que a fez virar e a comida toda cair no chão.

— Quase isso. — Rafael riu — Ele não só tropeçou, como caiu de cara no chão depois de ter esbarrado nos pés da mesa. A comida voou e caiu tanto no chão quanto no vestido novo da minha tia!

— Céus! — a cozinheira gargalhou por longos minutos, e o homem de cabelos castanhos pensou que seu marido claramente o mataria se soubesse que ele tinha contado essa história. Uma saudade súbita daqueles anos de namoro o fez abrir um sorriso e acrescentar:

— A cara dele foi impagável! Ele ficou completamente vermelho, as sardas dele praticamente desapareceram e ele gaguejou um pedido de desculpas por quase dois minutos antes de tia Matilde começar a rir.

— Não tiro a razão de sua tia. A cena em minha cabeça está muitíssimo engraçada! — Ana respirou fundo, tentando controlar-se. Rafael terminou o desjejum em um silêncio divertido, e se despediu da cozinheira com um abraço.

— Obrigado pelo café da manhã, dona Ana.

— De nada, senhor. — e ela assumiu um tom sério para sugerir — Se eu fosse você, iria atrás do seu filhote antes de voltar a mergulhar nos livros. Ele sente sua falta, sabe.

Rafael assentiu e deixou a cozinha, seguindo corredor adentro ao invés de ir até a Torre Purpúrea, onde Felipe provavelmente ainda dormia. Iria lá depois, mas antes precisava socar a cara de uma meio-fada.

Foi andando na direção da Torre Encarnada, onde ficava a prisão do castelo. Sabia que àquela hora Hipólita já teria começado o interrogatório com Agustina, fazia ao menos duas semanas que ela tinha seguido uma rotina basicamente igual todos os dias. Mas Rafael nunca tinha ficado sozinho por tempo suficiente para dirigir seus passos até lá sem ser descoberto, então deveria aproveitar a oportunidade.

Cumprimentou os guardas de pé ao lado da porta e perguntou em qual dos andares estava Agustina, recebendo a desencorajadora resposta de que ela estava presa no topo da torre.

Ele teve que subir muitos lances de escadas  para encontrar a moça de pele azul de pé no centro da cela, a meio-fada com as mãos acorrentadas displicentemente encostada à parede. As janelas altas e gradeadas deixavam o sol da manhã sombrear o rosto severo de Hipólita, que tinha os braços cruzados enquanto uma pena e um pergaminho flutuavam ao seu redor. Nenhuma das duas pareceu tê-lo notado.

— … a localização da residência da Rainha? — ela terminava de indagar, ao que Tina deu de ombros.

— Já passamos por isso. Por que não desiste, sereiazinha? — ela abriu um sorriso de lado — De que te importa o que minha Rainha faz com Hector? Você o conheceu semanas atrás, apenas.

— E por que você não se importa, Agustina? Pelo que me lembro, você o amou em algum momento, não? — ela indagou, uma sobrancelha erguida. A meio-fada enrubesceu levemente, o que só serviu para deixar Rafael irritado.

— Não acho que ela o tenha amado alguma vez, Hipólita. — ele comentou, sobressaltando ambas as mulheres. Se aproximou do centro da sala, as mãos nos bolsos e o olhar castanho diretamente focado em Agustina. — Hector provavelmente foi um jogo para ela. Um dos primeiros.

— Não fale do que não sabe, humano. — ela praticamente sibilou, desencostando da parede para dar um passo à frente e ser contida pelas correntes. Rafael abriu um sorriso sarcástico.

— Do que eu não sei? Bom, acho que sei de algumas coisas sim. Uma delas é que Hector nunca te mencionou em nossas conversas sobre ex-amores. Não por nome, ao menos. — ele tirou as mãos dos bolsos para fazer um o sinal de aspas à medida que falava — Era sempre “a menina que eu namorei quando adolescente”, “aquela primeira ex”. Acho que primeiras namoradas não contam muito, não é?

Ele viu Agustina ficar muito vermelha, e quase riu.

— Nós nos amávamos, sim! — ela replicou, quase gritando  — Você anda por aí orgulhoso de ter posto um anel no dedo dele, mas… O primeiro beijo dele foi meu. As primeiras palavras de amor, o primeiro…

— Oh, você pode ter sido a primeira. — Rafael interrompeu, inconscientemente apertando o bilhete em seu bolso. — Mas a experiência o levou a ser quem é, quando eu o conheci. E sabe quem acorda todos os dias ao lado dele? Quem o consola e cuida de seus machucados? Quem está ali pra ele sempre? — ele ergueu uma sobrancelha e deu de ombros — Não é você.

— Concordo. — Hipólita disse, aproveitando a pausa na discussão. — O nome que ele murmurava em seu sono, durante a nossa viagem, não era o seu, Agustina. A verdade é simples: ele não te ama mais.

— Você… — Agustina começou, mas a naturalista ergueu uma mão e a calou com um gesto. Rafael não soube dizer se tinha sido a confiança daquele gesto ou alguma mágica que fez a meio-fada engolir as próprias palavras.

— Você anda por aí afirmando que ainda o ama, mas eu não acho que isso seja verdade. Você sabe o que sua Rainha vai fazer, e mesmo assim não está nem um pouco preocupada com o suposto homem que ama?

— Eu…

— Isso é um pouco suspeito, não acha? — ela dirigiu a pergunta a Rafael — Então temos duas opções: ou a Rainha não fará nada demais ao seu homem, ou a nossa prisioneira não se preocupa com ele. O que acha que é mais provável?

— O que um peixe como você sabe? — Agustina riu para Hipólita. — Uma aberração como você nem deveria existir, quanto mais refletir sobre relacionamentos que não te dizem respeito!

A naturalista de cabelos purpúreos abriu a boca em descrença, finalmente irritada. Então deu um passo rápido na direção da meio-fada e desferiu um único soco em sua face, fazendo-a cair de joelhos enquanto tentava estancar o sangue que escorria de seu nariz.

— A aberração aqui não tem mais paciência para sua falsidade, Agustina. — Hipólita praticamente cuspiu as palavras, os ombros tensos e os punhos cerrados. — Em todos esses anos em que fomos aprendizes juntas, achei que tinha conquistado seu respeito. Vejo que me enganei.

Ela deu uma olhada para Rafael, que a encarava com um misto de surpresa e prazer, e abriu um pequeno sorriso. Então restabeleceu o equilíbrio de seu corpo apenas para chutar a lateral da cabeça da prisioneira, que caiu de vez no chão. Sangue também começou a decorrer pelo ouvido de Agustina, que não conseguiu dizer nada a não ser um grunhido de ódio.

— Esse foi pelo que fez com Hector. — Hipólita explicou, girando nos calcanhares para alcançar a porta da cela. — Vamos, Rafael. Não há mais nada que possamos fazer aqui.

E o Oficial de Justiça a seguiu para fora, ainda estupefato com a cena que acabara de presenciar. Os dois desceram os ingratos lances de escadas até deixarem a torre em silêncio, apenas a pena flutuante arranhando o pergaminho. Rafael notou que as palavras que esta escrevia eram transcrições da conversa que se desenrolara anteriormente, e só quando eles atingiram o jardim da Estrela do Norte foi que ele conseguiu reagir.

Abriu um sorriso e começou a bater palmas para a naturalista ao seu lado, que riu enquanto guardava pena e pergaminho em uma bolsa que só agora ele tinha notado.

— Ela estava merecendo, não estava? — Hipólita deu de ombros. — Mas sinto que Mestre Helia me dará um sermão sobre agredir prisioneiros.

— Ele que a cure. — Rafael bufou — Aquilo foi fantástico.

— Obrigada. Vamos voltar à Biblioteca agora?

O homem de cabelos castanhos assentiu e os dois começaram o caminho de volta ao Portal do riacho, a agitação daquela manhã tirando qualquer outro pensamento da cabeça de Rafael.


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