Liawë escrita por Vaalas


Capítulo 7
Capítulo VII ― Freya




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As semanas pareciam passar com mais rapidez do que o normal. Era até engraçado parar para notar, mas dias de um eterno inverno são muito tediosos.

― Há um cantor na capital de Croa que toca e canta como se a magia ainda corresse em suas veias ― me contou Onwil, naquela manhã, com um pedaço de pão de cevada balançando em sua mão ― Suas canções são capazes de fazer o tempo parar, assim como pode manipular sensações tão intensamente que machuca o coração. Toca um alaúde, mas parece estar tocando os fios do destino em vez das cordas do instrumento.

Eu nunca havia saído das terras invernais, nem quando humana. Uma vez chegara perto o bastante da fronteira de Froster com meu pai, quando ele ainda vivia. Eu lembro do cheiro dele ― neve, pinho e terra úmida ―, mas já não consigo me lembrar de seu rosto. Sequer me lembro de Neo com facilidade, mas sei que seus cabelos eram pretos como os meus, o sorriso era quente e o rosto bronzeado pelos anos que passara em Böras, aprendendo o ofício que escolhera.

Onwil parecia conhecer muito do país, no entanto.

― E os centros, ah, os centros, Freya. Você amaria, impossível não amar. Croa é o maior centro mercantil de toda Eroer. Há tantos tecidos, temperos, fragrâncias e armas de diferentes partes do mundo. As ruas são cheias de tendas, com chão de pedra cinza, e todo mundo se move como se fossem parte de um só ser. É como um grande corpo, onde não importa se você é elfo, homem-raposa, lunar, humano ou o que for, em Croa todos são livres para serem o que quiserem ser.

Sorri, bebendo da minha xícara de chá e apoiando o rosto na outra mão. Onwil estava radiante nos últimos dias, mais íntimo e gracioso do que nunca. Poderia ser a magia de Liawë lhe anestesiando ou a simples tranquilidade de estar ali sem missão alguma, pelo simples fato de estar. Fosse o que fosse, isso o deixava mais bonito, mais agradável. Quase podia reconhecê-lo como um amigo.

― Um dia viajarei por toda Eroer. Quando meu dever aqui acabar. ― contei-lhe.

Quando a magia estivesse poderosa o suficiente para os filhos de Arwan se protegerem sozinhos.

O café da manhã acabou, e resolvi levar Onwil para conhecer as ruínas do que antes fora império de seu povo. Guiei-o por labirintos, alcovas e túneis onde a luz do sol não batia. Mostrei-lhe a biblioteca, um dos poucos lugares que me sentia confortável o suficiente para escrever, e o salão de festas, gigante, onde ainda era possível ouvir a música alegre de bailes do passado.

Ele perguntou-me como me tornei quem era, como me mantinha com a aparência que tinha, e eu contei-lhe minha história. Falei sobre Prion, minha cidade natal, sobre meu pai que vivia como mercador e sobre as coisas incríveis que trazia em suas passadas nos clãs ― bolas de tinta infinitas, rolos de pergaminhos impossíveis de rasgar, lenços que nunca sujavam e broches de vidro que pareciam conter as estrelas ―, sobre minha mãe opaca e sombria, que mergulhava periodicamente em depressão, e sobre Neo, que estudava o ofício de ferreiro em Böras, do outro lado de Eroer.

Então falei de minha morte, do dia em que Arwan tomou-me como uma de suas, quando me deu o poder ― ou maldição ― de gelo, sobre a missão de proteger as crianças que se desolaram com o sumiço da magia, dizendo que ela iria retornar e que os deuses voltariam a andar entre nós, mas que era uma questão de tempo, séculos talvez. Eu devia esperar. Até lá, deveria viver, existir, antes de trilhar meu próprio destino.

Onwil ficou calado enquanto eu falava, ouvindo tudo atentamente. Por fim, me perguntou se eu não sentia vontade de ser apenas uma humana normal, sem missão alguma e sem gelo nas veias. Apenas sangue, mortalidade e bochechas quentes.

Eu respondi que sim. Muito. Todos os dias.

Então, um dia, enquanto escrevia na biblioteca, as coisas deram errado.

Lia e fazia anotações em um pergaminho, com ele jogado na cadeira ao lado, brincando com uma tira de couro velha e contando histórias. Em certos momentos, fazíamos silêncio. O tipo bom de silêncio, daqueles que se sente ao deitar-se na cama após um dia barulhento e ativo. Calmo e nada vazio.

Fazíamos silêncio quando o toquei, aliás.

Foi rápido — uma fração de segundos ou quem sabe menos ―, nossos dedos se esbarraram com sutileza sobre a mesa, e ele sorriu. Eu não.

O silêncio que reinou após o toque foi do tipo ruim. Daqueles apertam o peito, fazem o ar parecer lâminas e o sangue se tornar pedra. O tipo de silêncio que reina após um erro. Cada segundo parecia uma hora, e meu coração doía.

Me afastei rapidamente, empurrando os papéis para longe com força. Desejei que não tivesse o tocado, que tivesse sido apenas uma sensação distante, mas não foi ― eu sabia que não ― e encarei-o de longe, a respiração ofegante, vendo aquele sorriso em seus lábios diminuir cada vez mais e mais.

Ah, eu lembrava como fora quinze anos antes, quando o último elfo veio até mim e eu o toquei, sem querer, no ombro. A dor de ver a cena se repetindo não mudava com o passar dos anos.

E era Onwil que estava morrendo ali, não um elfo sem nome. Onwil que vivera naquele castelo por semanas junto à mim, que tinha o riso como uma canção do vento, que era luz, sol e tempestade. Onwil que me fez rir pela primeira vez em quarenta anos. Onwil, que era uma criança do verão e que viera até ali para levar meu coração frio em seus dedos quentes.

Me aproximei, com rapidez, quando vi que cairia no chão. Tomei-o em meus braços e o ergui, enquanto sua respiração era fraca e seu coração batia cada vez mais lento.

― Meus dedos estão frios ― ele sussurrou, os beiços começando a tremer. ― mas está tudo bem.

Não, não estava. Em quinze minutos ele estaria coberto de uma fina camada de gelo e não haveria cor alguma em seu rosto: seus lábios se tornariam roxos, seu coração pararia, os membros ficariam duros.

Quinze minutos era tudo o que eu tinha.

Então o ergui em meus ombros do jeito que pude, com as pernas fracas dele vacilando ao meu lado, e avancei pelos corredores dos Dedos, quebrando paredes para me mover mais rápido. Eram todas feitas de pedra com gelo em suas entranhas, então eu podia. Podia qualquer coisa naquele momento, por mais que ele pesasse e sua pele estivesse fria contra minha nuca

Quando cheguei até a abertura entre as paredes de gelo e o céu sorriu cinzento para mim, puxei-o com o último fio de força que tinha e avancei em direção à Liawë.

― Por favor ― implorei, apoiando a cabeça do elfo em minhas coxas. Ajeitei-o em meio à grama macia, com a saia do meu vestido escorrendo à sua volta ― Ajude-o, Chäria. Eu toquei-o, falhei, e só você pode salvá-lo agora.

Quinze anos antes, Chael me dissera que nunca algo feito de calor e luz poderia sobreviver ao meu lado. Era um fato, principalmente depois daquele incidente com o elfo belíssimo ― seu corpo, congelado eternamente, agora descansa em paz nas catacumbas de seus antepassados, nas profundezas dos Dedos ―, e ainda assim, não deixava de doer. Se eu machucava seres de luz, então só poderia pertencer às trevas.

Não, ao gelo. Eu pertencia ao gelo, à neve, ao inverno e a Arwan. Do dia do meu nascimento até o além-mundo. Em nome dos deuses antigos e dos novos.

Onwil sobreviveria.

― Liawë ― chamei-a pelo seu nome élfico, mesmo ela tendo se apresentado à mim como Chäria ― Em nome de Arwan e de nosso amor por essas terras, em nome de todas as crianças de gelo que vivem sob nossa proteção. Em nome de todos os elfos que você um dia amou e protegeu, por favor, ajude-o.

Olhei para as folhas nos galhos, verdes brilhantes, mas nada aconteceu. Chäria estava paralisada, sem vento algum soprando ao seu redor, sem magia alguma me vestindo como uma segunda pele, como se o seu silêncio fosse a resposta que eu precisava.

Abaixei o rosto até Onwil, vendo como seu peito subia em um ritmo lento e fraco, a respiração tão vacilante quanto as batidas de seu coração. Toquei-lhe o rosto pela primeira vez e desejei que sua morte não fosse real.

Mas era, então chorei. Senti as lágrimas escapando de meus olhos antes que pudesse impedi-las, e deixei que caíssem uma por uma no rosto dele, geladas como eram as águas de Lis oc’Arwan. Fiquei assim por minutos que pareceram horas, a testa encostada na dele, esperando que morresse como os outros elfos antes dele, todos sem nomes. O seu coração falhava, e conseguia sentir o fio de vida escorrendo de sua boca entreaberta em direção aos céus, para o além-mundo, para onde os Dedos de Gelo apontavam desde os primórdios da vida.

Foi naquele momento ― no instante em que o fio de vida de Onwil se extinguia ― que senti Chäria mover-se. Seus galhos se esticaram e se inclinaram até mim, as raízes grossas dobrando-se para o lado, o tronco torto. Um ramo de folhas se abriu, camada por camada, as folhas dando espaço, até que o que elas escondiam contrastasse em meio ao verde.

Era um fruto redondo, do tamanho do meu punho fechado. Tinha cor de bronze com leves tons de dourado, brilhando como pó de estrela e ouro. Estiquei uma das mãos, temendo tocá-la, e Liawë inclinou-se mais ainda até mim, fechando o espaço.

Colhi a fruta em um estalo fraco, e tão logo o fiz, a árvore voltou para a posição de antes, balançando suas folhas ao redor como se nunca houvesse se movido.

Eu sabia o que era aquela fruta, ou pelo menos sabia de sua história, contada nas paredes e nas gravuras élficas de tantos milênios antes, estampadas por vários salões e quartos da nobreza.

Olhei-a por mais três segundos, admirando sua beleza, antes de notar que meu tempo se esgotava e o coração do elfo tornava-se gelo e frio a cada instante. Segurei a fruta entre meus dedos e rompi a casca com a unha. Senti o líquido dourado escorrer pela minha palma, conforme apertava cada vez mais forte, e levei minha mão até os lábios azulados de Onwil.

O suco banhava sua boca, sua língua, sua garganta. Era quente, viscoso e com aparência adocicada, aquecendo minha mão como coisa alguma um dia foi capaz, como se queimasse a pele e a carne abaixo dela ― e era uma sensação deliciosa, porque o frio em minhas veias ao longo dos anos me impedia de sentir sequer o calor do sol.

Quando notei que Onwil começava a mover a garganta, engolindo o líquido, soltei um suspiro aliviado. Já havia chorado o suficiente por uma vida humana inteira, então me mantive daquele jeito, firme como um soldado, inclinando o pescoço do elfo para que o suco descesse melhor.

Quando acabei havia uma casca de bronze vazia e úmida em minhas mãos, pegajosa pela polpa adocicada. Olhei para Onwil, seu rosto dourado com vermelho nas bochechas, os lábios rosados brilhando pelo líquido da fruta.

Sorri, apertando seu ombro com minha mão limpa. Ele abriu os olhos, me encarando sem entender o que estava acontecendo, com tudo em si brilhando como o sol. Os olhos eram verdes escuros, mas tinha tanto dourado neles...

Levei a ponta de meus dedos aos lábios, provando o que sobrara do suco. No momento em que tocou minha língua, senti que podia morrer. Tinha gosto de primavera e verão, mesmo que eu jamais houvesse vivido nenhuma dessas estações. Era como beijar o vento e ter a pele banhada pelo pôr do sol. Era como ser criança, como amar, como suar. Como aquecer-se em uma lareira ao fim do dia, com peles e ensopado quente à mesa. Era como ter um irmão mais velho com calos nos dedos, um sorriso quente e uma língua obscena. Era como ter meu quarto em uma casa que um dia fora minha, com papéis e tinta por toda escrivaninha.

Senti uma lágrima escorrer novamente, mas optei por secá-la. Olhei para Onwil, que começava a se sentar, e o abracei pela primeira vez, pois sabia, de alguma forma, que eu poderia tocá-lo agora. Podia tocar um ser do verão.


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo já é o último da história.
Não lembrava o quanto gostava dela até reler tudo e sentir de novo a diversão que eu senti quando escrevi haha.
Até já ♥



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