Liawë escrita por Vaalas


Capítulo 8
Capítulo VIII ― Onwil


Notas iniciais do capítulo

E com isso, podemos concluir Liawë ♥



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― Você sabe o que era aquele fruto, não é? ― perguntei, arrumando a sacola no meu ombro.

Freya se virou para mim do outro lado da sala, trazendo em suas mãos um embrulho com tecido cor de opala. Era comprido, com um cabo despontando de um dos lados e soube bem o que era antes de sequer se aproximar. Ela tirou minha espada do embrulho e me estendeu, sem muitas cerimônias. O aço estava gelado quando o toquei.

― Presenciamos algo que não vai acontecer de novo em pelo menos uns cinco mil anos ― falou sorrindo, enquanto eu pesava a espada com o braço. ― E você, mais do que tudo, bebeu de seu suco. O fruto da árvore sagrada, pelo qual muitos heróis morreram no passado, salvou a sua vida.

E apesar de tudo isso, não me sentia muito diferente do que era antes. Podia tocar em Freya agora, mas nada mais. As coisas pareciam certas no entanto, e isso bastava.

― Estranhamente, vou sentir falta desse lugar.

Acima de mim o sol fraco brilhava através dos vitrais do teto distante, muito acima. Dancei com os olhos pelo salão, pelo trono de gelo, as colunas e enormes pilastras, o chão de linóleo escorregadio, até pousar os olhos em Freya, sorrindo para mim, mais bonita do que nunca. Uma amiga e um conforto em meio ao caos.

Naquela manhã fui até Liawë para dizer adeus e agradecer. Ainda nos veríamos no futuro, eu sabia bem, mas também tinha o pressentimento de que passaria longas décadas para além do oceano, em Erantos talvez, tentando compensar por mais uma “falha”.

Se fosse para voltar para Mira com o coração da bruxa, que fosse de outro modo.

Quando Freya retirou algo do bolso, tive certeza de que havia mais cor em seu rosto do que quando a conheci.

― Você pode voltar quando bem entender. Sinto que vou ficar aqui por um longo, longo tempo, então esperarei por você. Envelheço lentamente, sabe. ― uma pausa. Freya me olhava preocupada ― E, Onwil, saiba que eu me sentiria melhor se Chael o escoltasse até as fronteiras. Se você não precisasse ir agora, o forçaria a aguardar seu retorno dos Punhos.

Ri nasalmente.

― Posso aguentar o caminho até a fronteira, acredite.

Estávamos andando quando ela estendeu para mim um embrulho amarrado com um fio de prata fino. A olhei sem entender e então peguei o pequeno embrulho e desfiz o nó. Parecia uma bolsa de dinheiro em versão miniatura, bordada com fios de ouro e couro. Joguei o conteúdo na palma da mão e trouxe para perto dos olhos para enxergá-lo melhor.

― São... Sementes? ― levantei os olhos para ela, deixando clara minha surpresa ― São as sementes do fruto?

Ela assentiu, se pondo ao meu lado e me acompanhando até a saída do salão. A saída dos Dedos, daquele reino gelado.

― Meus cumprimentos ao senhor do trono de freixo, na esperança que ele fique longe das nossas terras por um tempo. Não deixarei de proteger a liberdade de Liawë, mas não quero ser responsável por mais mortes élficas, tampouco quero perpetuar o título de Bruxa. ― os dedos dela roçaram nos meus ― Fiquei com a casca do fruto, no entanto. Sinto que vou precisar dela no futuro.

Chegamos ao arco da porta e um vento forte atingiu nossos rostos e corpos. Os cabelos negros como tinta de Freya desenharam ondas atrás de si, e a imensidão do branco à minha frente, pincelado com pinheiros altos, apenas marcava mais desafios. Seriam longos dias em meio à neve para enfim atravessar as fronteiras e respirar o ar do verão ― daquilo, neve e frio, não sentiria nenhum pouco de falta. Gostava de campos verdes extensos para cavalgar, com frutas selvagens em arbustos e o calor morno aquecendo meu rosto.

Dei um passo para fora do castelo, pisando na rocha bruta salteada de neve, e me virei para ela, a espada de Vanra pesando na bainha.

― Ainda vou vê-la de novo, Freya, tenha certeza disso. ― peguei sua mão, erguendo-a e pousando um beijo nos dedos e nas costas. Ela sorriu. ― Virei visitá-la em breve, e você deveria fazer o mesmo. O verão é um encanto, sabia?

― Quem sabe um dia, Onwil, herdeiro do trono de freixo. ― ela fez uma referência. ― Espero ter a honra de hospedá-lo novamente.

Ri, me afastando dela com um aceno. Não gostava de despedidas nem de adeuses, mas sentia que aquilo era apenas um “até logo”. Sabia que sim. Ainda haveria mais de Onwil e Freya para ser contado.

Quando estava longe o bastante para precisar gritar, virei-me para a rainha daquele castelo de gelo, e berrei:

― Ainda a levarei para ver o mundo, Freya! Croa, Lirius, os Reinos Baixos! As Terras Menores! Para onde você quiser!

Virei antes que ela pudesse responder, e corri por entre os pinheiros cobertos de neve, mas soube sem nem precisar olhar que ela sorria.

Cheguei ali com uma inimiga, parti com uma amiga.

Subi os degraus até onde estava Elodin e lhe estendi a bolsinha com as sementes do fruto. O senhor de Mira levantou as sobrancelhas, certamente ciente de que o coração da Bruxa nunca poderia caber ali, numa sacola tão pequena. Ainda assim, apanhou a bolsa, pesando-a na mão antes de abri-la.

Eu tinha comigo um olhar de triunfo, mesmo que talvez aquilo não fosse o suficiente para me redimir. Estava feliz mesmo assim, forçando o sorriso a diminuir.

As sementes douradas como pingos de ouro mole brilharam na mão do senhor meu pai. Ele tocou-as com os dedos cheios de anéis, antes de levantar o olhar para mim, em choque. O cabelo prateado balançou com o movimento.

― Isto é...

― As sementes do fruto gerado por Liawë. O primeiro em mais de cinco mil anos. ― evitei deixar meu sorriso tão claro, mas minha arrogância era legível em cada linha de expressão ― um presente da Bruxa de Gelo, em nome da paz. A Grande Árvore pertence ao Norte, e ao Norte somente.

Quase pude ouvir a voz de Freya ecoando na minha.

Elodin colocou a sacola com cuidado no braço do trono, as mãos quase tremendo diante de tamanha importância contida em um único pedaço de tecido. Ele me encarou, sério, apesar de tudo.

― Conte-me tudo, detalhe por detalhe, Onwil. ― era a voz de um rei, não de um pai.

Então respondi-lhe com a voz de um súdito, não de um filho. Contei-lhe sobre quando parti para a fronteira, quatro meses antes, montado em minha égua malhada. Falei sobre como a soltei ao chegar às fronteiras e pedi que retornasse para casa, e então segui em frente. Falei dos lobos, das feridas, das dificuldades das terras de neve. Então cheguei aos Dedos, descrevi a Bruxa, seu poder e narrei resumidamente os dias que passei sob sua hospedagem.

Então falei de Liawë, da sua decisão e do seu rancor. Falei-lhe um pouco das leis do Norte, de Arwan, mas sabia que ele não entenderia enquanto não sentisse a brutalidade das terras na pele. Então falei que a Bruxa não era bruxa alguma, nem rainha, nem feiticeira.

Falei-lhe de Freya, da sua beleza pouco comum, da frieza e do gelo em todo seu ser, e da sua risada bonita como o badalar de sinos na capital de Croa.

Houve um festival no dia da colheita para prestigiar as sementes sagradas de Liawë. Plantaram-na sob céu aberto em meio a um campo de grama alta e molharam a terra com a água espiritual do riacho que vinha das terras dos Povos Livres. Eu via a cerimônia de longe, vendo o crepitar da fogueira e o som dos tambores, flautas e violas. Meu corpo simplesmente não queria dançar e minha mente estava bem distante dali, em quase outro plano.

Shrimas sentou-se ao meu lado antes de eu poder protestar.

― Estou aliviado que tenha voltado com vida. Sem um único arranhão, ainda por cima.

Mal sabia ele que eu fora mordido por um lobo, quase morto pelo poder de Arwan e ainda por cima havia bebido o suco do fruto sagrado de Liawë. Quase ri.

― Espero que essa jornada tenha lhe dado um pouco de bom senso. ― prosseguiu ele, chocando seus ombros nos meus. ― Fique longe de fêmeas humanas, Onwil.

Sorri e retornei o empurrão no ombro. Ficamos assim por minutos inteiros, vendo as festividades e a cerimônia. Em milhares de anos, aquelas sementes originariam uma árvore tão bela quanto Liawë, a Árvore Sagrada de Mira.

― Como ela era? ― perguntou Shrimas. ― A Bruxa, digo.

Pensei por um instante, analisando minhas lembranças dela por completo. Algumas coisas faltavam, como o formato dos dedos ou o desenho dos ombros, mas sabia bem como ela era: forte, fria e inabalável, mas gentil e calorosa mesmo com o inverno alto nas terras de lá. Era bonita, destemida, amiga e boa companheira. Não conhecia o mundo. Era um monte de coisas e um monte de nadas.

Por fim, dei de ombros.

― Era uma bruxa normal.

Quase ri. À minha frente o ritual prosseguia: bonito, leve, quente e colorido. Cheio de verão e sol.

Sentia falta da neve.

 


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Notas finais do capítulo

Liawë termina aqui, ou pelo menos é o que parece. A verdade é que sempre há mais histórias a serem contadas, e espero um dia ter tempo para escrever todos esses pequenos mundinhos escondidos, só buscando a chance de sair ao sol.

Onwil e Freya voltam a se encontrar de novo. Vai demorar algumas décadas — haverá uma guerra, acima de tudo —, mas esse conto não é sobre isso. É sobre magia, amizade e fraternidade. É apenas a ponta do iceberg, o começo de algo muito maior.

Esse conto deveria possuir 5 mil palavras, mas não consegui fazer menos de 10 mil, que, na minha opinião, ficaram bem corridos.

Mas espero que tenham gostado mesmo assim. Quem sabe um dia nos vemos em uma nova jornada nesse universo? ♡

Até logo! (Não adeus, nunca adeus)



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