Liawë escrita por Vaalas


Capítulo 6
Capítulo VI ― Onwil


Notas iniciais do capítulo

Mesmo com o feedback fraquíssimo que me tirou toda a vontade de postar essa história, queria finalizar todas as que estão no meu perfil o quanto antes, então estou de volta.
Se ainda há alguém aqui, boa leitura ♥



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Havia trapos limpos e um pote de unguento ao lado da cama, como prometido. Nada de poções mágicas ou feitiçaria, à primeira vista. Cheirei-o, mas apenas senti o cheiro das ervas esmagadas e misturadas ao unto. Decidi que não seria um problema usá-lo, por fim.

Enquanto lutava contra as vestes e as malhas leves, olhei no quarto em que dormira essa noite ― ou que tentara, pelo menos ― e concluíra que sim, era um quarto élfico. As gravuras no batente da porta, a cama feita de carvalho e azevinho, a tapeçaria antiga e os mosaicos e vitrais no alto do teto, mesmo que não houvesse sol além deles.

A ferida da mordida do lobo já estava mais cicatrizada, mesmo sem possuir nada para me emprestar poder. Ainda assim, espalhei o unguento nos sulcos feitos pelos dentes e enfaixei o melhor que pude com os trapos que ela trouxera.

Quando a Bruxa bateu à porta eu já estava vestido, com a dor do ferimento nada sendo senão um leve pinicar sob a malha.

Freya parou ao pé da porta, vestida de azul claro e branco, como aquele lugar, e acenou com o queixo para o corredor, antes de se virar.

― Apresse-se. Vai ser uma manhã longa.

Segui-a pelos corredores, mantendo uma distância segura o bastante. Sabia que ela sentia minha cautela, e tentei deixá-la ainda mais clara. ― apenas para lembrar-lhe que mesmo com toda sua hospitalidade, eu era um prisioneiro ali. Um prisioneiro enviado para matá-la.

Freya me guiou pelos corredores e caminhos bifurcados pelo que pareceram ser horas. Andávamos cada vez mais além, as paredes se estreitando à nossa volta e voltando a se abrir. Havia pontos em que as lamparinas embutidas sumiam e o caminho se inundava em escuridão, outros em que o teto cavernoso se abria acima de nossas cabeças, o céu cinzento temperando o ar com flocos finos de neve. Estávamos indo cada vez mais para as profundezas dos Dedos, direto para seu coração. Para Liawë. A Bruxa manteve-se em silêncio o caminho inteiro, as bordas de seu vestido arrastando-se sobre a pedra bruta.

Muito tempo depois, ela parou, virando-se para mim. As paredes em nossa volta eram feitas de gelo puro.

― Não tente nada de impulsivo, elfo, ou farei com que as paredes o empalhem vivo.

Nem me dei o trabalho de engolir em seco. Não teria medo dela, mesmo quando ela moveu a mão direita e a parede de gelo se dissolveu ao lado, o suficiente para criar um arco alto para passarmos. Ela inclinou a cabeça, uma ordem para prosseguir.

Havia luz do outro lado, então a obedeci.

A visão que tive fez algo dentro de mim ― algo selvagem e mágico, antigo e forte, impetuoso e impaciente ― estalar alto, se quebrando. Sob meus pés havia grama, verde, brilhante e nova, com cheiro de orvalho. O lugar era enorme, o dobro do tamanho de uma grande campina das Terras de Verão, todo coberto de ervas e grama e flores. As paredes cobriam-se de hera e trepadeiras até os céus, e quase não se podia ver a pedra sob elas.

E no meio de tudo aquilo, bem no centro, erguia-se Liawë. Monstruosa, a maior árvore que um dia fui capaz de ver. O tronco devia ter cinco vezes a minha altura só de largura, e de comprimento... Era mais alta que qualquer coisa que pudesse ser usada para descrevê-la. Olhando de baixo, tentando enxergar seu topo, tive a ilusão de que seus galhos poderiam escapar por cima dos Dedos.

Meus pulmões doeram quando notei que prendia a respiração.

Liawë ― murmurei, maravilhado, quase não acreditando. A magia dela parecia me acertar um soco no estômago, tão forte e interligada ao meu sangue, meus ossos, minha alma ― É simplesmente... linda...

Havia até me esquecido da presença de Freya ali. Sequer havia notado que começara a andar em direção à árvore, quase correndo, a respiração ofegante saindo pela minha boca. Era uma atração sobrenatural, como fossemos polos opostos de um mesmo ser.

Parei apenas quando a Bruxa de Gelo passou em minha frente, sem olhar para mim. Havia amarrado os cabelos em um penteado solto, com a parte da frente presa em tranças, o resto escorrendo livremente naquela cascata de negrume.

― Eu não conheço-a por Liawë. ― disse, voltando a andar. Coloquei-me ao seu lado, pronto para ouvir. ― Quando cheguei aos Dedos, nesse palácio há muito abandonado, eu não era mais do que uma criança. Ou pelo menos me parecia com uma. Liawë se apresentou a mim com outro nome, aqui, nesta sala. ― Freya me olhou, para ver se entendia ― Ela estava morrendo, com os galhos secos e pontudos como picos. Sentei à sua frente, entre as folhas caídas, e deixei que ela contasse a sua história.

A Grande Árvore do Norte não se parecia nada daquilo. Tinha os galhos grossos recheados de folhas frias e úmidas, viva, incandescente, poderosa como um deus antigo.

Permiti que Freya continuasse enquanto voltávamos a andar.

― Não tinha como ouvir sua história inteira, pois ela é antiga como essas terras, mas ouvi sobre vocês, elfos, filhos do sol, do verão e da luz. Ouvi sobre como vocês migraram do Sul e das terras ao Leste, e como enraizaram-se no Norte e passaram a cultuá-la. Naquela época a magia era algo tão vivo e palpável como as paredes, e Liawë permitiu que vocês vivessem sob a sombra de seu poder, protegendo-os como pôde, amando-os o quanto pôde. ― Paramos e erguemos os olhos para a árvore. Apenas ficamos ali, admirando as folhas balançando mesmo que não houvesse vento algum. ― Mas então a magia enfraqueceu ao ponto de quase sumir, e vocês resolveram partir de volta para o Sul, de volta para as terras quentes, e deixaram-na sozinha aqui com as sombras de um povo que amava. ― um suspiro ― Vocês abandonaram-na. E mesmo que jamais possam entender as leis do Norte, todos sabem que nada sobrevive sozinho no inverno. Nem mesmo uma árvore tão antiga e poderosa.

Ela vivia, no entanto. Freya reinava solitária em um castelo de pedra e gelo, com sombras de um passado que não a pertencia. Olhei para seu rosto, a pele feita de alabastro, nada humana, com aqueles lábios palidamente rosados franzidos em seriedade, a postura cheia de nobreza. Me parecera uma rainha mais do que nunca.

Ela continuou.

― Quando ela terminou de me contar sua história, doei-lhe um pouco do meu poder para lhe dar forças, por menor que fosse. Então lhe disse que não precisava continuar a proteger vocês, que estavam longe e viviam de verão e raios de sol. Disse que ela deveria se recuperar, e que os elfos que hoje vivem ao Sul não são os mesmos elfos que ela um dia amou e protegeu. ― Freya virou-se para mim, como se pedisse desculpas. ― Lhe prometi abrigo e proteção, e ela aceitou. Parou de enviar poder à vocês, como fazia havia séculos, pois aquilo a matava pouco a pouco, tanto quanto a solidão.

Olhei para a árvore e quase não pude acreditar que ela um dia poderia morrer. Se erguia grandiosa, impetuosa, eterna e gentil, cheia de poder. A quantidade exorbitante de folhas parecia capaz de cobrir o mundo inteiro em seu manto verde.

Mas Freya não mentia, eu sabia que não. Sentia a própria Liawë confirmando-me sua honestidade, quase como um sussurrar em meus ouvidos, o som de sua magia.

― Qualquer criança nascida do inverno pode buscar asilo aqui nos Dedos, e para eles não sou bruxa alguma.

Assenti, passando a entender mesmo que pouco. Liawë optara por parar de nos abençoar com seu poder. Não havia Bruxa de Gelo. Havia Freya, uma mulher ― não garota, nem humana, nem espírito. Uma filha de Arwan, como parecia gostar de repetir ― de tez pálida e cabelos enormes, negros como carvão líquido. Entendi que os Dedos não eram habitados por vazio e gelo, mas por outros. Cada sombra que eu encarara ao virar os corredores, cada lufada de ar frio que abria a porta e me guiava para a sala de jantar. Todos viviam ali, tal como os espíritos das florestas do sul. A diferença é que eu não podia vê-los, pois não era feito de inverno e sim de verão.

Freya tinha um sorriso fraco quando me virei em sua direção.

― Você é a rainha desse lugar ― concluí ― Uma rainha de gelo, não uma bruxa.

Ela riu alto, quase uma gargalhada. Sua risada era como o badalar dos sinos no centro de Croa.

― Antes eu era bruxa, agora sou rainha? Não, elfo, não sou rainha de coisa alguma. Não há reis no Norte. ― você é tão sulista quase podia ouvi-la dizer.  ― Sou filha e irmã. Não reino sobre súditos, mas luto por meus irmãos. Nestas terras temos que cuidar uns dos outros, porque sozinhos não sobreviveríamos.

As folhas de Liawë cintilaram sob a luz do sol, cheia de graça.

Por fim, suspirei.

― Se Liawë não deseja voltar para nós, não serei eu a fazer guerra por isso. ― Poderia lidar com Elodin, com a vergonha de voltar para Mira de mãos vazias. Iria para os Desertos, se assim tivesse que ser. A árvore permaneceria ali, viva e vibrante no Norte, pois sabia que mesmo que quisesse obrigá-la a nos abençoar, não conseguiria. E não, eu não queria.

Me doía a ideia de voltar para casa sem provar que havia sangue de freixo em minhas veias, que eu era filho de Elodin e que as décadas de libertinagem em nada me diminuíram como guerreiro, mas sabia que batalhar e morrer por aquilo não valeria a pena.

Então sorri, enfiei as mãos nos bolsos, e passei uns bons minutos só em silêncio, contemplando a canção entoada pelos galhos da Grande Árvore, a brisa úmida de primavera ― mesmo que fosse eterno inverno naquelas terras ― agitando meus cabelos, com cheiro de grama recém aparada grudando em minhas roupas. Sentia-me em casa mais do que nunca me senti em Mira, pois ali, naquele pedaço de terra a céu aberto, era primavera, e a magia de Liawë me abraçava como se eu fosse uma criança.

Olhei para o lado, onde Freya respirava calmamente com os olhos fechados, os cabelos esvoaçando ao seu redor como um manto, e soube que se sentia do mesmo jeito.


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