Maldição Soverosa escrita por P B Souza


Capítulo 7
Natureza em alvoroço


Notas iniciais do capítulo

Capítulo novo só pra mostrar que não abandonei, mesmo vocês tendo me abandonado :v
~fingindo carência pra ver se ganho atenção~. hahaha
Boa leitura! :)



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Se esgueirou

Tão quieta que ninguém notou

Não era a cobra

Era algo pior.

Acordou ainda aturdido e sentiu o chão contra a bochecha em uma poça de saliva gelada.

A mão correu no bolso enquanto se sentava no chão, tirou o celular. Ia ligar para sua avó, mas viu que ela havia mandado uma mensagem “a sombra não pode entrar, portanto não saia”.

Kaio se levantou olhando a saliva no chão do corredor, puxou o tapete com o pé em cima desta enxugando a poça. Estralou o pescoço sentindo a dor na nuca e respirou fundo.

Uma sombra. Ainda achava aquilo ridículo. Pegou o celular e ligou para Matheus, mas sem resultado. Então discou para a avó; deu na mesma.

Kaio foi até o escritório no final do corredor, não havia porta, apenas um arco de madeira avermelhada tratada com verniz (não era pau-brasil, como a madeira na casa dos Soverosa).

O chão era de madeira mais escura ainda, quase negra de noite. As luzes. Só então Kaio notou que não havia acendido as luzes, mesmo assim não sentia a necessidade delas. Meus olhos.

Se virou assim que chegou no arco do escritório e correu para o quarto aonde sua mãe havia dormido por anos. A mala de Breno De Avantar estava em cima da cama com uma coxa azulada cheia de riscos ondulares.

Kaio passou rápido pelo quarto sentindo o cheiro de mofo de um ambiente que deveria estar, há muito, fechado. Faz tempo que eu não venho dormir aqui. Não se lembrava quando tinha sido a última vez.

Entrou então no banheiro, as mãos apressadas fizeram a fechadura até mesmo estralar alto. O piso era claro, tal como o azulejo com detalhes em triângulos pequeninos em azul-marinho no centro.

A pia ficava em uma pequena mesa de mármore travertino. Kaio debruçou sobre ela encarando o espelho em proximidade vendo seu reflexo com certo abismo.

Recuou então um passo enquanto encarava seus olhos. A mão foi até abaixo da sobrancelha, com o anelar na pálpebra superior e o médio na inferior Kaio as puxou para cima e para baixo deixando o globo ocular o mais exposto o possível.

Sua íris dilatada cobria quase que por completa a esclerótica deixando seu olho praticamente inteiro verde, o que era ainda mais estranho, pois seus olhos eram castanhos. O que era de fato o mais estranho eram as pupilas em traços verticais finíssimos como as de gato.

— Irado. — Kaio pronunciou, baixinho, abrindo um sorriso enquanto apreciava seus olhos e o fato de conseguir mesclar ambas as visões pela primeira vez.

Fechou-os então, o mundo mergulhou em trevas para Kaio, mas por um curto instante, pois tão rápido tudo escureceu ele pode sentir o ambiente. Como uma cobra. Pensou batendo o pé no chão e foi como se o ambiente ao seu redor surgisse por mágica. Kaio não tinha como explicar, mas sabia exatamente o espaço que tinha entre um lugar e o outro, e como chegar, podia ver, mesmo sem enxergar!

Então abriu os olhos e estes estavam castanhos como antes e redondos como deveriam ser. Por que o som? Cobras são surdas.

Pensou, inconformado em porque podia ouvir tão bem. Podia ouvir tão bem que doía seus ouvidos quando grandes coisas… não é o som. É a vibração. Percebeu com certo fascínio.

Fechou os olhos de novo, bateu as duas mãos em uma palma estralada ouvindo o som comum. Concentração. Repetiu.

A palma ecoou. Pode sentir. As ondas bateram contra o espelho, o mármore, o vidro do box, o chão e as paredes e a porta. Pode sentir cada vibração. Então pulou e quando caiu com os dois pés fincados no chão sentiu as vibrações entrando na sua cabeça pelos ouvidos, combinadas com sua normal audição pareciam um estrondo, mas com um pouco de concentração podia sentir a diferença entre som e ondas, podia sentir e entender seus sentidos.

Então lá fora um balde caiu nos fundos.

Pode ouvir o som de metal do velho balde batendo contra o chão de concreto do fundo. O que?

Kaio se virou para a porta no mesmo instante.

Sombras não podem entrar. Se perguntava o motivo, mas elas não podiam, sua avó havia dito isso e ele acreditava nisto.

Se enchendo de coragem Kaio saiu do banheiro, o quarto vazio. O tapete velho e desbotado no chão era fofo e suas pegadas quase não deixavam vibrações ali. Olhou para a janela, estava fechada. As janelas têm grade, Kaio. Fez-se lembrar.

Ainda tentando se encher de coragem foi até o corredor e deste seguiu para o hall da escada. Eu desço ou vou para a sacada? Se perguntou apoiado nos balaústres da escada. Olhou para baixo, apenas trevas, mas podia enxergar na escuridão tão bem quanto no dia.

Então decidiu olhar primeiro a porta, deu um passo para a frente indo até o final do Hall, nisso algo estralou.

Vidro.

Pode ouvir a pancada contra a janela ressoando contra a casa inteira enquanto o vidro trincava por completo.

Se virou assustado agarrando a madeira encimando os balaústres da escada e tremeu com um calafrio subindo sua espinha quando decidiu que ficar parado era pior. Correu como o jogador que era, mas sentiu-se diferente. Seus passos tocavam o chão com suavidade invejável a uma bailarina e ele mal podia se ouvir mover a não ser pelo vento contra o corpo criando resistência. Chegou no arco do escritório se colando a parede como um quadro pendurado e esgueirou para dentro só para encontrar sangue contra o vidro.

Fez uma careta ao ver o passarinho pendurado, metade para dentro metade para fora, caco de vidro fincado contra seu corpo e ele trespassado na janela, a cabeça ainda virando como se tentasse se libertar

— Pobre azarado. — Kaio se aproximou, mas ao fazê-lo o pássaro o viu. Pensou que o animal fosse se desesperar, mas ao invés disso os pequenos olhos do pássaro miraram Kaio com profundidade enquanto o sangue escorria em duas linhas vermelhas pelo vidro trincado da janela

Ele tá me olhando. Percebeu com temor. Por que você tá me olhando?

Então a pancada veio dos fundos da casa com um estrondo e Kaio, que observava o pássaro de perto, pulou de susto. A porta então começou a ser forçada como se alguém lá fora tentasse entrar e Kaio começou a respirar mais rápido e pesadamente

O pio do pássaro rompeu o ar até Kaio como uma adaga rompendo carne de peixe e ele se virou de novo olhando o pássaro que agora se debatia ferozmente enquanto sangue pingava pelas penas e a porta lá em baixo parou de mexer e o pássaro morreu com seu corpo amolecendo no pequeno buraco no vidro.

Olhou pela janela, não ao pássaro, mas para fora da janela, na rua.

Pegou o celular e tentou discar para a avó, mas agora não havia sinal.

— Ótimo. — Reclamou se virando e indo às escadas. Parou nos balaústres e olhou para baixo, pois a escada dava no corredor aonde ficava a porta…

E tal porta voltou a ser mexida.

— Meu Deus! — Colou-se contra parede levando as mãos na cabeça e fechando os olhos.

Apavorado. Meu Deus, meu Deus, meu Deus.

Pensou em se jogar contra o chão e esperar mas notou a respiração do que estava lá fora.

Visão. Abriu os olhos enquanto expelia o ar dos pulmões e tudo se tornou frio e escuro deixando apenas o calor em sua visão e ele sabia, seu olho estava verde e vertical de novo. Podia ver dezenas de luzes por todos os cantos, pequenas, correndo, fora da casa.

Se pendurou pela escada e pulou a mureta de balaústres caindo nos degraus e correndo para baixo em um ataque de instintos que não sabia ter. No pé da escada girou por ela e no corredor de baixo foi até a porta do quintal dos fundos e com as duas mãos abertas deu uma grande pancada na madeira quando abriu a boca e… não foi voz ou som algum humano que reproduziu. Em seguida viu os riscos luminosos correrem desesperados.

— Malditos esquilos. — Kaio disse, furioso.

O vento surgiu então, furioso e uivando passando pela casa. Pegou seu celular de novo, piscou expulsando a “visão de calor” e digitou o número da avó. Ainda sem sinal.

Furioso, seus passos se esticaram em um deslizar macabro até a sala.

De repente não tinha medo, mas não sabia porque, apenas não tinha mais medo. Tomado nessa onda de coragem Kaio parou no vitral da sala de TV, a parede era côncava e feita com uma janela enorme de ponta a ponta que, durante o dia, deixava a luz entrar de forma fenomenal, mas para possibilitar quem quisesse assistir TV de dia, a avó tinha colocado um blackout, cortina extremamente escura e densa que bloqueava a luz. Kaio puxou-a sem titubear escancarando dois metros do vitral para fora e encarando a rua apenas para seu pavor, pois a coragem se foi como veio, em um piscar.

No chão ele via sombras deslizarem pelo asfalto subindo na calçada e se esgueirando nas árvores, caindo dos galhos, se desfazendo como matéria real e não como sombras, eram matéria existente, não sombras. Eram, porém, negras e densas, de aparência leve e fluida e sem forma.

Então os esquilos na porta dos fundos. Da frente. Kaio recuava passo a passo na sala. E para seu bem, pois um pássaro voou contra o vitral da sala batendo contra ele com violência. A pancada dessa vez apenas fez o animal se estraçalhar, caindo morto ao chão. O vidro não quebrou ou trincou.

Kaio recuou e correu à cozinha tendo uma ideia que poderia ter sido brilhante, mas sentiu a picada no tornozelo. Continuou correndo, apenas alguns passos da cozinha quando um pouco acima, no começo da canela outra picada e ao olhar para sua perna viu dezenas de formigas em seu tênis e calça e parou. Bateu a perna contra a parede, balançando-se, mas ao olhar para trás viu dezenas de formigas, talvez centenas. Elas saiam de dentro dos vãos do piso, corriam todas em direção de Kaio.

Preciso do telefone. Mais dois passos e estava olhando para a cozinha e o telefone estava ali no balcão do armário. Era só pegar, mas o balcão estava cheio de formigas como o chão e elas convergiam para Kaio.

Lançou um olhar para a sala e pediu desculpas para a avó em sua cabeça quando pisou em cima das formigas, saltou pulando em cima da mesinha de centro e desta saltou para o Hall de entrada, louco de pavor, abriu a porta e saiu chutando os esquilos.

Eu não devia sair. Foi o primeiro pensamento quando os pássaros empoleirados nas árvores começaram a piar insanamente e os esquilos a correrem e então as sombras

Três delas rodearam Kaio que se viu fugindo para o meio da rua pois sentia que os esquilos iam o atacar, mas estes apenas o rodeavam e as formigas ainda surgiam, mas igualmente rodeavam a ele e as sombras idem.

Vocês queriam me tirar de lá de dentro. Percebeu. Sem esperar mais um segundo correu para dentro da casa, mas ao pisar na calçada o celular tocou.

Tirou-o do bolso olhando as sombras que se distanciavam. Os pássaros piando sumiam das árvores, seus pios se tornando distantes e baixos. Os esquilos escalavam as árvores e pulavam de uma para a outra, sumindo. E as formigas idem.

Atendeu sua avó tomando por lógica que não poderia entrar na casa, pois a ligação cairia.

— Eu tentei ligar. — Kaio disse antes que sua avó falasse qualquer coisa. — Alguma coisa entrou na casa, vó. Formigas, esquilos, pássaros… me atacaram e eu tive que sair

“Você saiu? ” O grito de Teodora rompeu pelo falante do celular na orelha de Kaio como um trovão.

— Eu to fora ainda, o celular não funcionava…

“Acelera” Ouviu Teodora falar para outrem. “Kaio, entra agora, se protege como puder, o selo que eu fiz na porta… você rompeu quando abriu, agora tudo pode entrar”

— Se eu entrar o celular desliga, tá sem sinal lá dentro…

“Era interferência, Kaio, dos espíritos” Teodora explicou. “No porão, desce lá, tem armas”

— Armas? — Kaio perguntou, abismado, mas então a luz de um farol surgiu. — A senhora tá chegando. —Disse aliviado quando um carro surgiu na esquina.

“Não, não estou” Teodora disse então, preocupada. “Kaio, entra agora”.

Então a ligação voltou a ser interrompida.

— Merda. — Kaio recuou alguns passos andando de costas enquanto o carro parava ainda longe da casa de Teodora, ao menos trinta metros.

Não é aqui. Ele pensou, feliz, mas de dentro do carro duas silhuetas fortes desceram, lavadas pelo farol ainda acesso do carro que queimou pneu virando na rua e saiu sem que Kaio conseguisse ver sequer que carro era e os dois homens em pé na noite fria andavam então na direção dele. Kaio não poderia dizer com certeza, mas sentia que eles olhavam para ele.

Se virou e apressado correu para dentro da casa trancando a porta atrás de si, fechou a trava de cima e foi até a cozinha com pressa pegar a chave. Mas não a encontrou, não sabia aonde estava, desesperado decidiu obedecer ao que a avó havia dito. Voltou da cozinha ao Hall de entrada em um átimo de desespero olhou para a velha e assustadora escada ao porão.

Teodora sempre proibira Kaio de descer lá, e agora proibia Laila de o fazer. O que tem aqui? Armas?

Kaio não conseguia imagina sua avó de tal forma, mas parecia ser isso o que era.

Na porta do porão havia outra tranca manual, ele puxou-a e avançou nas trevas quando o cheiro de mofo invadiu suas narinas com força e ele olhou ao redor em um cômodo cheio de velharias das mais variadas, reconheceu apenas duas.

Na parede dos fundos junto de uma segunda porta aonde de alguma forma Kaio sabia que era aonde devia ir, via dois brasões.

Um dos Soverosa. Um pesado escudo de um metro e meio de altura ornamentado por completo em ouro nas bordas, uma cruz no centro em um fundo verde com coroas de flores-de-lis. O outro era idêntico em forma, mas de fundo negro e no lugar da cruz havia uma espada de prata e no lugar das flores-de-lis havia serpentes.

Um nome lhe veio à mente no mesmo instante: Jacques Vouga Du Soverosa.

O que isso faz aqui? Kaio se perguntou, abismado, enquanto abria a porta e se deparava com uma curta sala, como um armário de casacos, e neste pequeno armário de casacos havia uma única estante na sua frente. A porta abria para esquerda e, portanto, na direita havia um cabideiro aonde um tipo de armadura estava pendurada. Kaio olhou para frente então, na estante havia duas espadas idênticas em cima penduradas em ganchos, horizontalmente. Verticalmente uma terceira espada maior.

Facas em sequência em uma prateleira na estante, adagas pra uso em combate, penduradas acima das facas, abaixo da prateleira das facas um chicote, apenas de couro e outro com estrepes nas pontas. Na base um mangual uma caixa cheia de punhos ingleses distintos. Uma arma… eu pensei que fossem armas.

Kaio se sentiu estúpido. O que faria com aquilo? Não sabia lutar com espadas e adagas ou chicotes e duvidava muito que qualquer pessoa minimamente civilizada soubesse!

Pegou dois socos ingleses na caixa e colocou-os na mão, mas vendo como estes diminuíam a mobilidade tirou um e deixou apenas o da mão direita, a qual usava para escrever e para socar.

Correu até o primeiro degrau quando ouviu a pancada na porta e está foi arrombada com um estralo de madeira se rompendo como árvore caindo.

Parou no primeiro degrau e olhou para cima, piscou vendo as coisas como uma cobra e seus inimigos avançavam pelo corredor.

Kaio soube exatamente o que fazer. Subiu os degraus em silêncio saindo no Hall de entrada. Ambos os inimigos seguiam pelo corredor que daria na escada para cima.

— Você sobe, eu fico aqui em baixo. — Um deles disse.

Kaio aproveitou disso para virar pelo Hall e sair dali pela porta arrombada da entrada.

— Tá aqui!

Ouviu a voz do mesmo homem.

Kaio se virou para o corredor, estava já ao lado da porta de saída.

Quando pensou em correr o segundo invasor surgiu e ambos correram contra ele.

Kaio se virou para fugir, mas eles eram incrivelmente rápidos e o alcançaram sem nenhum esforço ainda na entrada da casa, Kaio apenas dois passos para fora.

Puxão na sua camiseta. O tecido rasgou. Kaio foi jogado de volta para dentro da casa caindo de costas no chão entre corredor e Hall de entrada.

— É ele?

— É! — O outro respondeu.

— Eu não fiz nada. — Kaio resmungou, engatinhando para trás, envergonhado de si mesmo pela humilhação de se resumir àquilo. — Não sou nada.

— Para de falar, facilita para a gente. — O primeiro disse.

Kaio olhou para eles com pavor no rosto

Os dois tinham incrível semelhança, poderia jurar que eram irmãos.

— Eu faço. — O aparentemente mais velho disse, com pesar.

Kaio via que ambos tinham fúria nos olhos, mas pesar em igual medida

— Por favor não. — Kaio enrugou a testa quando sentiu uma lágrima escorrer de cada olho no momento que o maior e mais forte e mais velho dos dois deu um passo à frente.

Não vai me matar. Kaio disse para si mesmo fechando a cara e suas pernas estranhamente haviam se colocado em posição durante o tempo que rastejou. Saltou para cima do homem agarrando seu braço e os dois caíram no chão. Kaio girou pelo corpo dele quando foi agarrado pelo primeiro e mais novo, pelas costas. Moveu seus braços sentindo os ossos estralando, mas, na verdade, estes se deslocaram.

As mãos do mais novo agarraram então apenas o tecido de sua já rasgada camiseta que se partiu enquanto o mais novo puxava com tanta força que caiu para trás.

Ao mesmo tempo Kaio se enrolava de um jeito animalesco no braço do mais forte e mais velho.

— AAAAAAAAAH! — O berro saiu na orelha de Kaio quando este puxou o braço que segurava com as duas mãos, seus pés apoiados no peito e ombro do homem. Ouviu o osso estralar como o seu, mas seus ossos não doíam, já o do homem…

Se levantou com supremacia vendo o homem se contorcer de dor no chão com o braço quebrado ou deslocado. Não saberia dizer.

Então sentiu os passos furiosos atrás de si, mas tarde demais para se virar só tomou a pancada.

O mais novo bateu de ombro em suas costas jogando Kaio contra a parede.

Bateu o queixo contra a parede e mordeu a própria língua arrancando um pedaço e sangue encheu sua boca no mesmo instante que dor invadiu braços, costelas, pernas, e ele caiu ao lado do mais velho, que se levantava.

— Agora! — Ouviu alguém dizer, mas não soube qual dos dois.

Sentiu apenas os chutes enquanto cuspia sangue e seu corpo era acertado. Se encolhia. Havia dado o bote, e havia perdido.

— Lá fora. Aqui não. — Alguém disse, os chutes pararam.

Kaio se virou, encolhido em posição fetal olhando para os seus agressores.

— Que se dane. A gente tem que acabar com isso…

— A mãe dele vai achar ele morto aqui dentro? O que a mamãe…

— Cala a boca. — O mais velho bradou. — Ele nem mora aqui…

— Lá fora. — O mais novo disse, sua opinião imutável. — Vamos fazer isso lá fora!

Kaio foi agarrado pelo pé e puxado para fora da casa, arrastado pela porta, sua cabeça bateu no batente, mas não como se alguém se importasse.

— Mas que merda…

Os faróis de um carro se aproximavam depressa

Vó. Soube!

A porta do carro se abriu antes mesmo deste parar enquanto os dois agressores se colocavam na frente de Kaio.

— Termina com isso, eu cuido deles. — O mais novo disse.

O mais velho olhou para trás, para Kaio, se abaixou e pegou-o pelo pescoço, segurando sua cabeça.

— Me desculpa, mas a gente não tem escol…

O som do tiro rompeu o ar calando todos.

— Solta ele! — A voz de Teodora soou anormal e violenta.

Kaio viu, pelas pernas dos agressores, a avó correndo até ele quando o mais novo, entre os dois, foi jogado para longe, girando no ar como se pego por um tornado e Teodora agarrou o segundo que mataria Kaio.

— Foge! — O mais velho disse quando Teodora o girou em seus braços e mordeu seu pescoço jogando o corpo no chão ao lado de Kaio.

Breno apontou, apontou mas não voltou a atirar no mais novo que saia correndo, desesperado, usando de toda a anormal velocidade que era dotado, para fugir.

Teodora agarrou Kaio pela mão e o colocou de pé vendo o sangue escorrendo pela boca do neto, o rosto passou de raiva para preocupação em um instante.

— Ele…

— Veneno. — Teodora disse enquanto o mais velho se debatia no chão, arfando por ar com o pescoço necrosando rapidamente e morrendo. — Você está bem?

— Deveria ter atirado no outro. Poderíamos pegar informação, quem quer me matar. Por quê?

— Eu sei quem quer te matar. — Teodora disse, séria.

Breno chegava até eles.

— Atirei para cima, rapaz. Não posso abrir fogo no meio de casas. Poderia matar um inocente. — Disse o velho, então olhou para Teodora. — Leva o corpo antes que os vizinhos venham ver a confusão.

Teodora fez que sim para Breno soltando os ombros de Kaio.

— Para dentro você também. — Breno disse para Kaio apontando para a casa. — Eu vou estacionar o carro como se nada tivesse acontecido.

Teodora pegava o cadáver do mais velho pelo pé e puxava para dentro da casa como ele havia puxado Kaio para fora.

— Encosta a porta, querido. Só por encostar mesmo.

Kaio obedeceu, perdido. Entrou atrás da avó e encostou a porta arrombada, só então viu que existia nela um pequeno desenho entre madeira da porta e o batente. O selo. Notou.

— Você precisa começar a aprender dominar suas habilidades, se defender. Mais rápido que eu pensei que fosse.

Kaio engoliu o sangue com saliva na boca.

— O que… vó…

— Antes não precisava me preocupar, estava tudo calmo, pensei que continuaria assim. Enganei-me. Deixei você desprotegido.

O carro entrava na garagem lá fora.

— Sombras, animais lutando por elas, runistas… tudo de novo. — Teodora reclamou consigo mesma. — Está tudo bem?

— Cortei a língua. Dolorido. Só. — Kaio disse, evitava falar muito porque mover a língua lhe doía imensamente a boca, tirando que ainda sangrava bastante também.

— Eu matei o último runista, Kaio. — Teodora olhou para o defunto no Hall de entrada. — Ele era forte? — Perguntou. Kaio fez que sim. Teodora se abaixou e puxou a camiseta do runista morto até o pescoço, mas não havia nada além de pelos no peito. Virou-o de costas e encontrou duas marcas nas costas. — São runas na omoplata. Dão força anormal. O outro devia ter no tarso e metatarso.

— O que?

— Não estudou biologia? — Teodora perguntou. — Ossos, Kaio. — Pegou a perna do runista no chão e no seu pé mostrou os ossos acima dos dedos. — Tarso, metatarso. Nas costas a omoplata é o osso que conecta os ombros, clavícula e úmero. Força e velocidade.

— Tá, por que eu?

— Por que não você? Eu disse que estaria em perigo, não disse? — Kaio abaixou a cabeça. — Eu matei o último deles anos atrás, não deveriam existir mais runistas. Mas aqui estão eles.

— A natureza sempre dá um jeito de reerguer sua legião. — Breno disse, entrando. — Sabíamos que eles voltariam. — Disse o velho em um sorriso tristonho. — Ninguém morreu dessa vez pelo menos… ninguém dos nossos ao menos.

— Os dois atacaram Felipe, tentaram matar ele. — Teodora disse para Kaio. — Inma salvou Felipe e Matheus. Quando me disse que eram runistas eu soube que eles viriam atrás de você. Mas demorariam pra te encontrar, iriam primeiro na sua casa, mas ai você falou das sombras, elas quem os avisaram e eles vieram para cá, atrás de você. Não está seguro agora, toda vez que uma sombra te ver ela vai avisar o runista que sobrou isso se ele não fizer outros runistas agora.

— Outros… como fazer outros? — Kaio perguntou, se encostando na parede e olhando para o cadáver enquanto Breno vasculhava seus bolsos.

— Runistas são caçadores de distorções. Eles têm um livro cheio de runas que usam para se marcar e ganhar habilidades que os permitem combater as distorções, vocês. — Breno tirou a carteira do bolso do runista e entregou para Teodora, se virou e olhou para Kaio. — Normalmente basta alguém com conexão íntima à natureza cravar as runas para que elas tenham efeito. Isso pode ser uma bruxa ou… eu, por exemplo. Tenho conhecimento o bastante para fazer funcionar! Os runistas eram guerreiros da natureza, dedicavam suas vidas a caçar distorções e em troca ganhavam um tipo presente após a morte, pelos seus serviços, como uma passagem para o céu. Suas almas seriam elevadas e eles se tornariam ícones de adoração, eternos. Uma lenda, muito provavelmente. Por isso antigamente, bem antes dos portugueses chegarem até aqui, os runistas originais eram muitos, exércitos índios inteiros eram formados por runistas e eles tinham outros nomes. O mais poderoso e conhecido usava a marca de Tupã e diz a lenda que ele conseguia chamar raios dos céus como o próprio Tupã. A gente acredita que ele era bruxo e não runista no fim das contas. — Breno tomou ar. — O que importa é, qualquer um pode reproduzir as runas, por isso é importante destruir os livros dos runistas quando se encontra um. Teodora caçou vários, mas não encontrou todos.

— Eu falhei. — Ela lamentou. — E meu erro voltou para caçar meu neto. — Disse para Breno.

— Querida, não é sua culpa, oh, não, não é!

— Deveria ter continuado caçando os malditos livros e terminado com isso quando tive a maldita chance. Olha agora o que houve porque decidi viver uma vida comum. — Teodora disse, irritada, se virou e saiu indo à cozinha.

— Mas e as sombras? Os pássaros batendo nas janelas e os esquilos nas portas? As formigas me picando?

— A natureza acordou irritada. — Breno falou para Kaio. — Sombras quase nunca influenciam animais para fazer o trabalho sujo, isso pode ser considerado distorção por ser abuso de poder, os animais são almas inocentes que não devem intervir nos problemas de distorções, para isso há os runistas. Por alguma razão… você causa… alvoroço na natureza.

— Breno. — Teodora chamou da cozinha. — Kaio, não escute esse velho louco.

— Teodora, o menino acordou Nhanderuvuçú! — Breno disse e Kaio viu no velho algo entre o pavor e o êxtase completo.

— Não diga Isso! — Teodora surgiu de volta, no pequeno corredor do Hall à Cozinha e Sala de Jantar. — Esse nome… não diga.

Silêncio.

Kaio olhou da avó para o velho amigo dela. Então abaixou a cabeça pensando no que poderia ter causado aquilo, mas todos seus pensamentos voltavam para si mesmo. Eu sou a única causa, o único possível motivo para isso.

— Eu despertei essa… essa maldição. E agora tudo isso. É minha culpa. — Deu de ombros, triste.

— Não, alguma coisa despertou sim, alguma coisa poderosa e avassaladora, talvez até mesmo bondosa. — Teodora disse, séria, olhou para Kaio com aquele penetrante olhar. — Sabe, Kaio, a natureza é baseada no equilíbrio, do bem e do mal. Se algo muito bom surge, runistas vem destruir. Se algo ruim surge, runistas vem destruir. Não pode haver desequilíbrio. A natureza sempre consegue equilibrar o peso nos pratos. Então sim, querido, algo despertou, algo maior e mais poderoso que nós, algo que apresenta risco tão grande que a natureza está disposta a limpar todos nós do tabuleiro para não correr riscos. Não é você, se fosse eles não teriam atacado Felipe primeiro. Somos nós, os Sorvedores. Nós somos o problema, mas por quê? Algo terrível vai acontecer muito em breve, e eu não sei o que é!

Com isso Teodora se virou e saiu deixando Kaio e Breno sozinhos ali.

— Vou trocar de roupas. Faça o mesmo Breno, e vista uma camiseta velha, Kaio. Precisamos desmembrar e enterrar esse corpo!

Teodora disse enquanto subia as escadas. Kaio lançou um olhar ao cadáver e então para Breno que deu de ombros para ele, se virou e foi indo para o corredor até a escada.

— Breno. — Kaio chamou, aquele nome em sua cabeça, martelando. — Quem é Nhanderuvuçú?

Breno olhou para trás, para a escada. Então para Kaio e falou baixinho.

— É tudo. Outro nome para chamar a natureza.

Se virou e sumiu na dobra da parede, Kaio ouvindo os passos na escada.

Sentiu frio finalmente. A pele nua na noite, cheia de marcas aonde levara os pontapés. A língua já dormente e o sangramento diminuído.

Olhou o cadáver pensando em como raios desmembrariam um ser humano, e sentiu a horrível sensação que aquele seria o primeiro, mas não seria o último que desmembraria!


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Notas finais do capítulo

É isso. Esses foram os seis primeiros capítulos que eu havia originalmente projetado para a fic, o primeiro arco, de ação irrefreada e bastante confusão.
Nos próximos vai ter bastante explicações e as coisas diminuem um pouco de tensão!!
Espero que tenham gostado e até o próximo! :)
Ps. Comentem, ajuda muito a motivar este que vos escreve!



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