Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 21
Batismo de fogo 4:4


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora, caros leitores! Sinto muito por andar meio desaparecido por aqui... mas prometo que tentarei ser mais presente. Se caso eu não for, com certeza receberei uma senhor puxão de orelha de uma certa leitora número um! He he he!!!



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“Então, ela seguiu o coelho branco através do buraco...”

“Mas como ela conseguiu passar?”

“Ela simplesmente passou, bom, isso é uma história, não precisa ser tão real assim”

“Ok, não precisa ser real, entendi”

Abriu os olhos lentamente. Seu braço estava esticado, a mão levemente aberta. Tentou movê-la, era doloroso, mas funcionava. Essa era uma dor boa, pois provava que ele ainda estava vivo.

“Isso mesmo! Então, seguindo o coelho através da toca, ela foi parar num mundo completamente distorcido, mas maravilhoso em sua essência”

“Esse mundo não parece tão legal assim. Eu sei onde essa história termina”

“Claro que é, isso é a nossa história, lembra? Na nossa história, o coelho branco a levará para um mundo maravilhoso, onde tudo o que ela quiser poderá ser verdade”

O corpo estava dolorido, fraco. Os indicadores da interface visual reluziam em vermelho, um aviso de sincronismo baixo acendia em algum canto. Ele piscou tentando focalizar a coisa que se mexia diante dos seus olhos. Ela o olhava assim como ele a observava. A visão estava embaçada, tudo parecia turvo, mas era fácil distinguir sua cor. Um branco tão puro quanto a neve.

“Isso seria maravilhoso mesmo!”

“Por isso que é o país das maravilhas. E pensar que tudo o que ela fez foi seguir um coelho branco, não é engraçado?”

O coelho branco o olhava com seus pares de olhos violeta, o nariz pequeno e rosado farejava algo, mesmo que a Cidade Silenciosa não possuísse odores. A criaturinha saltitou até chegar bem perto da mão de Adam e parou ali. Por que aquele animal estava lá? Ele não sabia o quanto aquele lugar era perigoso? Havia um devorador ali, uma criatura assassina e sanguinária que certamente o mataria. Animal estúpido, por que não percebia o perigo iminente?

No final das contas, os dois não eram muito diferentes. Ele havia acreditado que poderia ganhar, havia pensado que aquele uniforme e a coragem que sentiu seriam capazes de vencer qualquer adversário. Estava terrivelmente enganado. Desde que chegara na Rede, Adam tinha aquela sensação de controle, de que naquele mundo seria diferente, que ele não seria o garoto estranho que recebe olhares de pena, que não seria perseguido pelos maiores babacas do colégio, mas não, uma vez mais ele estava errado. Não havia nada de bonito na Rede, era doloroso, frio e solitário. Não havia diferença no final das contas. Sentia medo, um tão grande que quase o impossibilitava de pensar.

Tentou mover a mão, espantando o coelho que ainda o encarava, mas ele desviou de seus dedos e permaneceu imóvel. Será que não conseguiria nem mesmo salvar a vida de um animalzinho indefeso?

Coelho estupido.

Realmente estava determinado a morrer, assim como ele estivera a alguns minutos atrás?

— Memento Mori — sussurrou.

A frase de um jogo que Eriza adorava jogar com ele, chegou suave como uma brisa, amaciando seus pensamentos aflitos. Era um lembrete de que todos são mortais, de que um dia ele também iria morrer e que não havia nada de errado com isso. Lembrou-se de quando conversou com os Helldivers através do chat, da maneira natural como eles lidavam com a morte, da maneira que ele mesmo achou que pudesse lidar. Era parte do ciclo, uma parte importante, pois toda história tinha que ter um final, isso era algo do qual ele jamais poderia fugir.

Pensar dessa forma fazia com que não tivesse motivos para temer, assim como aquele coelho parado em sua frente, indiferente ao perigo que o rodeava. O animal vivia sua vida como ela tinha de ser vivida. Adam era um Usuário Final, ele se arriscaria todas as noites na Rede, lutaria para proteger a si mesmo e aos outros e mesmo que não parecesse se importar com ninguém, aquela era sua tarefa, daquele dia em diante aquela seria sua vida.

Assim como aquele coelho, ele deveria viver a sua vida como ela tinha que ser vivida. Sem medo.

Com esse pensamento ele se forçou a levantar vagarosamente, sentindo o corpo reclamar a cada segundo. O coelho branco se afastou saltitando para longe dele, pulando entre entulhos e ferragens. Adam olhou ao redor, mas não fazia ideia de onde estava. Tudo o que podia deduzir vinha de um rastro de pedregulhos e restos de placas amareladas, indicando que havia rolado de algum lugar bem alto. Acordara nas margens de um mundo desolado e vazio, as cinzas ainda se depositavam melancolicamente sobre tudo, enquanto o vento soprava seus lamentos para quem ainda pudesse ouvir. Acima e por toda a parte, construções imponentes seguiam para longe, vítimas de um tempo do qual as horas haviam se esquecido de contar. Quebradas e partidas, ruínas de um ontem eterno, vestígios de um amanhã que jamais chegaria.

Em meio a tudo aquilo, Adam se encontrava ferido, reduzido a um ponto minúsculo em meio àquela imensidão deserta. A dor era extrema e tudo o que ele queria era que ela parasse logo. O ouvido zumbia num apito agudo, irritante, tocou levemente o rosto e descobriu que sua bochecha estava machucada, repleta de farpas de metal e cacos de vidro. Apertou o punho e lentamente tentou retirá-los, um por um, era como se agulhas em brasa fossem arrancadas de sua carne. Uma pequena trilha de sangue começou a escorrer e ele nem se preocupou em limpá-la. O estado da bochecha dizia que era melhor ele não tocar na orelha ferida. Tentou andar, mas uma dor ainda mais aguda o atravessou, havia um pedaço de navalha espetado na lateral da barriga. Adam respirou fundo e sem pensar duas vezes, arrancou-a com um único puxão. As pernas fraquejaram e ele quase caiu, quando um filete de sangue saltou do ferimento. Tapou o local com a mão e só então percebeu que ainda segurava a pistola semiautomática, que agora estava quase translúcida, piscando como uma TV fora de sintonia.

Precisava de ajuda. Prestou atenção aos indicadores, o cronometro marcava 21:40:15, o sincronismo estava abaixo de 60% e sua AC subia lentamente, passando dos 37%. Em breve receberia um alerta de que seus níveis estavam perigosos e teria suas solicitações para criação de equipamentos negada. Mas havia outra mensagem na interface visual que lhe chamou a atenção, localizada no centro e acima, “AVISO: SEM CONEXÃO”. O que seria isso? Mais um problema dentre tantos outros... seria por esse motivo que sua IA estava ausente? Quanto mais pensava a respeito, mais a situação parecia se complicar. Mesmo assim, em momento nenhum pensou em sair, se tivesse que morrer, seria lutando por sua vida, não seria um covarde novamente.

Caminhou lentamente, na medida que seus passos lhe permitiam e adiante, avistou novamente o coelho. O animal parecia esperar por ele, ainda farejando o nada com as narinas rosadas, o pelo branco contrastando com todo aquele cinza. Branco.

“Há apenas duas coisas que não existem na Rede: seu reflexo e a cor branca”

Ou Beatriz estava terrivelmente enganada, o que parecia ser impossível, ou ele acabara de ver uma alucinação, se é que aquilo também fosse possível. Realmente, desde que acordara na Rede, não havia visto nada na cor branca, nem mesmo os olhos ou dentes dos Usuários parecia branco, mesmo que ele os visse dessa forma, era como se fossem um milésimo de uma tonalidade diferente, imperceptível mas real, o suficiente para que ele soubesse que aquele coelho não poderia existir.

Ouviu um grunhido ao longe e sentiu um arrepio subir pelas pernas até a nuca. O Devorador estava a sua procura, com certeza seria apenas uma questão de tempo até que a criatura o encontrasse. Olhou novamente para o coelho.

“E pensar que tudo o que ela fez foi seguir um coelho branco, não é engraçado?”

O que ele tinha a perder?

O coelho branco correu por entre os entulhos e destroços daquela paisagem desolada e Adam seguiu em seu encalço, mantendo uma distância razoável fosse pela lentidão que andava, fosse para não espantar o animal, mesmo que soubesse que isso jamais aconteceria.

Atravessaram um galpão completamente enferrujado e na curva de um beco tortuoso, ele percebeu que agora haviam dois coelhos. Como aquilo era possível? Parou por um instante observando os bichos saltitarem e em seguida, recomeçou a perseguição a passos apressados. Passou por fábricas em ruínas, casas destruídas e a cada esquina, a cada curva, mais um coelho se somava ao grupo. Quando deu por si, estava rodeado de dezenas deles, correndo num enorme beco, por entre aqueles destroços de um mundo que parecia ter sido esquecido em algum sonho ruim, as fábricas enferrujadas eram altas e rangiam com o vento que passava veloz entre suas tubulações e ferragens, ecos de uma terra deserta e hostil.

Quando finalmente saiu do beco, Adam deu de cara com duas pessoas, que prontamente apontaram suas armas para ele, num movimento que ele instintivamente copiou. Seus uniformes diziam que também eram Usuários Finais, mesmo assim algo fez com que Adam não se sentisse seguro perto deles. Olhou de relance e percebeu que os coelhos haviam desaparecido.

Avistou uma cartola rolando pela rua enevoada e se não estivesse tão ferido, teria rido da piada.

— Opa, opa! — anunciou o mais próximo, os cabelos eram curtos e azulados, os olhos profundos, de um tom anormal de azul claro e pareciam querer decifrá-lo a todo instante. As linhas do USV acompanhavam o mesmo tom de azul, emanando um brilho fraco.

— Vai com calma, amigo! — avisou o outro, um homem negro, razoavelmente alto e corpulento, com olhos cor de caramelo, seu cabelo fora cortado tão rente que parecia inexistente. A barba bem delineada, acompanhava sutilmente as feições de seu rosto, como se alguém a tivesse desenhado com um lápis. Adam prontamente percebeu que ele não possuía um Link — Aparentemente estamos do mesmo lado, não estamos?

— Sim... estamos — respondeu Adam, num sussurro. Sentiu algo quente escorrer pelo rosto e começar a pingar, mas preferiu não tirar a mão do ferimento da barriga para limpar, de nada adiantaria no final das contas.

— O que raios aconteceu com você? Achei que esse lugar fosse seguro — perguntou o homem de cabelos azuis, ainda apontando a arma para Adam. Os dois homens pareciam extremamente calmos, demonstrando uma certa frieza com o estado de saúde de Adam.

— Foi a mesma coisa que me disseram — respondeu — Tem um devorador aqui, e não é de nível um! Ele deve estar atrás de mim... droga... É a minha primeira noite aqui... — a voz foi sumindo aos poucos e ele quase se abaixou, mas se manteve firme ainda empunhando a pistola na direção dos dois.

— Isso é um setor de treinamento! Abaixe logo essa arma! — resmungou o outro, de forma ameaçadora, abaixando sua arma. Adam não se moveu.

— Marcus, parece que vamos ter um pouco de ação aqui! Finalmente cara!

— Vinn, vai com calma! Até onde sei ainda é um local seguro, provavelmente não cuidaram bem desse novato! Com quem você está, garoto desconfiado?

— Com os Helldivers.

— E desde quando os Helldivers aceitam novatos? — O homem que foi chamado de Marcus, novamente apontou a arma para Adam. Algo em seus olhos dizia que ele não hesitaria em atirar — Melhor me convencer de que você é um Usuário Final!

— Merda... eu não estou em condições para isso — resmungou Adam, não pediria ajuda para aqueles homens mesmo que precisasse — Minha parceira está morta, tem um Devorador atrás de mim. Isso realmente importa?

— Com certeza! — respondeu Marcus, se afastando de Adam — Vinn, cheque os dados dele! Quero saber quem ele é!

Vinn, o homem de cabelo azul, guardou a arma e prontamente materializou uma tela translúcida como a de Valéria, que ficou pairando no ar na altura de seus olhos azuis. Ele observou a tela por um instante e apontou a mão na direção de Adam, em seguida, levantou os olhos da tela e fez sinal para que Marcus se aproximasse.

— Mas que porra é essa? Ele não tem dados de registro? Como isso é possível? — indagou Marcus, perplexo.

— Cara, ele é um Devorador nível três! Vamos detonar ele agora! O desgraçado tá tentando enganar a gente! Olha só, ele está desconectado!

— Droga garoto! — esbravejou Marcus e arma pareceu hesitar em suas mãos.

— Eu não sou um Devorador! Mas de que droga vocês estão falando! — gritou Adam, e mesmo que a Beretta estivesse danificada, não hesitaria em atirar se fosse para salvar sua vida.

— Marcus, mata antes que ele tenha uma reação!

— Cala a boca! Ele parece bem humano para mim! Você checou esses dados direito?

— Você mesmo viu! Mata ele logo!

— Vocês estão... cometendo um erro!

— Operador! Temos um problema aqui! Encontramos um Usuário Final sem registro, não sei confirmar se ele é...

Um grunhido assustador cortou a discussão, o estrondo de algo sendo partido acompanhou aquele som tão familiar para eles. Vinn virou-se com a mesma expressão de felicidade que demonstrara antes, enquanto Marcus apenas olhou de relance e voltou a atenção para Adam logo em seguida.

— Eu disse que tinha um Devorador atrás de mim. Vai lá, mata ele agora.

Marcus encarou Adam seriamente e logo em seguida se voltou para a rua, que assim como todas as outras, era ladeada por construções inúteis e colossais. Um silêncio mortal se fez valer por alguns segundos, até que Vinn o quebrou.

— Acho que vi alguma coisa! Deixa esse comigo, Marcus! — Com emoção na voz, Vinn se apressou adiante, com a arma apontada para a rua coberta de névoa. Um capacete escuro, com a viseira clara como vidro se formou em sua cabeça.

— Vinn, vai com calma! Espera! — pediu Marcus, partindo na direção de Vinn.

Era óbvio que Adam sabia o que ia acontecer. O enorme Devorador surgiu num emaranhado de tentáculos disformes, girando pelo chão como se fosse um polvo deformado, abrindo-se no formato de um guarda-chuva. Um tentáculo se desprendeu da massa disforme e numa velocidade impressionante decepou a perna direita de Vinn, antes que ele pudesse ter tido qualquer tipo de reação, o jogando violentamente no chão. O rapaz gritou de dor e Marcus se preparava para atirar na criatura quando o mesmo tentáculo atravessou Vinn pelo ombro e o ergueu na frente do corpo do Devorador. O monstro o estava usando como escudo.

— Marcus! Marcus! Me ajuda! Por favor! — Vinn gritava desesperado, enquanto a criatura o agitava de um lado para outro. Marcus acompanhava o movimento e tentava inutilmente fixar sua pontaria em algum lugar do qual não acertasse Vinn. A esfera no centro da coisa, exibia um brilho mórbido de vermelho, deixando vazar um liquido da mesma cor por uma rachadura que a cruzava.

Adam tentava seguir na direção contrária de Marcus, tentando acertar um ponto em que a criatura não pudesse se proteger, mas era inútil. Desviou de uma investida e foi atirado pesadamente ao chão, fazendo com que o corte na barriga sangrasse ainda mais.

— Garoto! Cai fora daqui! — gritou Marcus, disparando próximo demais de Vinn. Ele não arriscaria um segundo tiro.

O Devorador grunhiu quando a esfera brilhou com mais intensidade, largando o corpo do rapaz indefeso e retrocedendo para as sombras de uma estrutura vazia, seus tentáculos se agitaram e ele se contorceu ainda mais, inflando o corpo como um balão.

Vinn, fique aí não se mova! — gritou Marcus, correndo na direção do amigo. Adam se forçou a levantar, mas não acompanhou Marcus, sua respiração estava pesando e o corpo começava a reclamar.

Quando Marcus chegara a pouco mais de dois metros de Vinn, o Devorador saltou sobre o corpo do rapaz, esmagando seu tórax como se fosse uma latinha de refrigerante, o capacete rachou fazendo um ruído de gravetos quebrados, tingindo a viseira de vermelho. O impacto jogou Marcus no chão e Adam cambaleou na direção dele. O Devorador se ergueu imponente, agora, assemelhava-se a um gigantesco lobo de duas caudas, a boca escancarada ainda conservava um leve sorriso diabólico, entrecortado pelos dentes pontiagudos. As patas eram enormes e fortes, com pequenas e afiadas garras, tão negras como o restante de seu corpo. Ele não possuía olhos, mas as narinas abriam e fechavam, farejando aquele mundo sem odores. Ao invés de pelos, haviam fragmentos como vidro, oscilando como se existissem em dois planos existenciais simultaneamente.

— Filho da puta... — sussurrou Marcus, ainda no chão, encarando a fera que rosnava à sua frente — Garoto... — chamou, se levantando lentamente — Fuja daqui...

Mesmo que quisessem matá-lo há alguns segundos atrás, Adam não estava disposto a abandonar ninguém para morrer, mas nas suas condições, não seria de nenhuma utilidade naquele confronto. Contrariando suas convicções, fez um leve aceno de cabeça para Marcus e antes mesmo de saber se o gesto havia sido retribuído, correu o máximo que pode. Às suas costas, ouviu o som da batalha rugir junto com a criatura. Não demorou muito para que o som da arma de Marcus cessasse.

— Sistemas restabelecidos. Você está conectado — anunciou a IA, fazendo com que diversas informações surgissem na interface visual de Adam. Ele já havia corrido por um tempo considerável, mas algo lhe dizia que a criatura ainda estava em seu encalço.

— Aviso: suas condições estão instáveis. Reajustando suas taxas de AC para um melhor aproveitamento e iniciando medidas emergências.

— Ok... o que foi aquilo? O que... aconteceu com ele? — perguntou, respirando pesadamente.

— Devoradores de nível dois podem reestruturar seu corpo para se adequar a diversas condições de batalha — começou a IA — o alvo em questão tem excelentes capacidades regenerativas. Verifico que o núcleo não foi destruído, desta forma, sua capacidade regenerativa ainda está ativa.

— Como eu mato aquela... coisa — E as palavras saíram geladas de sua boca, como se ele não quisesse pronunciá-las

— O núcleo deve ser destruído e o corpo deve sofrer danos significativos, incapacitando qualquer tipo de função motora.

— Parece fácil... — riu da ideia, mas a risada foi amarga como café sem açúcar — Eu ainda tenho capacidade de criar alguma coisa?

— Restaurar sua munição poderá prejudicar sua recuperação. Deseja prosseguir assim mesmo?

— Sim, mas somente... se eu encontrá-lo de novo. Mande uma mensagem para o Gabriel, diga que estou com problemas. Você sabe... o estado de saúde da Carla? Minha... interface não mostra nada...

— Este distrito está passando por uma anomalia sistêmica, solicitações e requerimentos podem não funcionar de acordo com o esperado. O status de Carla ainda está indisponível.

Respirou fundo e reduziu o passo, o cansaço e a dor começavam a se depositar pesadamente sobre ele, arrependeu-se de ter tocado a orelha, percebendo que o estrago havia sido bem maior do que imaginava, precisava de um lugar para parar e avaliar a situação. Por entre os becos estreitos que entrecortavam as construções desoladas, seguiu por um pequeno túnel e saiu em uma ruela razoavelmente aberta. Máquinas ainda funcionavam nessa parte do distrito industrial e postes de iluminação piscavam desordenadamente. A neve cinza se depositava cada vez mais sobre tudo, como um cobertor gélido e sombrio.

Adam cambaleava pela rua deserta e os sons do maquinário em funcionamento eram como tambores, cada batida sendo sentida como uma martelada na cabeça já dolorida. O ouvido esquerdo apitava com um zumbido agudo e irritante, a orelha era um emaranhado vermelho escuro e havia tanto sangue, que era difícil diferenciar se ele escorria dela ou da bochecha, igualmente ferida. Se aquilo fosse no mundo real, seu rosto estaria tão inchado que talvez ele nem tivesse mais um rosto, seria algo como um bolo de carne e sangue, um que recebeu fermento demais na massa. Porém, ele estava na Rede e por mais que a dor fosse real, ali, as regras não funcionavam da mesma forma. Enquanto arrancava outro pedaço de vidro da sobrancelha, pensou na tremenda sorte que teve dos estilhaços não terem acertado seu olho. Em seu campo de visão, as taxas de sincronismo caíam vertiginosamente e segundo por segundo, ele tentava se manter consciente, o que não era uma tarefa tão difícil já que a dor dos ferimentos ultrapassava qualquer coisa que ele já tivesse sentido. A semiautomática que segurava ainda falhava como a TV quebrada que lutava para manter as imagens tão vivas quanto já foram um dia. Ele duvidava que naquelas condições, ela fosse capaz de disparar um tiro sequer, então, agradeceu mentalmente o fato da katana ser um item padrão do USV, mesmo que não fosse de grande ajuda contra aquela coisa.

Encostou-se num poste de iluminação e lutou para não se deixar cair, pois se o fizesse, tinha certeza de que não conseguiria se levantar novamente. As cinzas ainda caíam feito neve, vindas das enormes torres que liberavam a fumaça escura sobre o distrito industrial. Àquela altura, os flocos acinzentados já haviam formado uma camada de alguns centímetros sobre o chão e foi impossível não pensar na beleza daquela cena, mesmo tudo sendo tão terrível e mortal.

— Aviso: danos ao usuário detectados — informou a voz robótica do USV, as notas mais agudas se somavam ao zumbido, tornando-se indistinguíveis — você deseja ouvir o relatório detalhado? — perguntou.

— Não... — respondeu num sussurro — Me dê algo... para a dor...

— Liberando endorfina. Aviso: o uso poderá prejudicar suas funções motoras e causar uma queda considerável em seu sincronismo. Dadas as oscilações em suas taxas, uma dose de adrenalina será liberada em intervalos regulares.

— Ok... — ele respondeu, se recostando mais. Era só uma questão de tempo até o Devorador encontrá-lo novamente. Resolveu tirar a mão da barriga, por onde a navalha havia cortado. O sangramento já havia parado e no local do corte, havia uma dezena de fios entrelaçados que saíam do uniforme rasgado e enrolavam o ferimento. Respirou fundo. O medicamento havia começado a fazer efeito, amenizando, mesmo que pouco, as dores dos machucados.

Inevitavelmente pensou em Carla e no fato de que não conseguia odiá-la pelo que havia feito, pensou que ele faria o mesmo se fosse a vida de Eriza que corresse perigo. Se Carla ainda estivesse viva — e torcia para que estivesse — teria um bom motivo para que ela o respeitasse de agora em diante.

A IA já havia sugerido duas vezes para que ele saísse da Rede naquela noite, mas ele recusara gentilmente a oferta. Por mais que suas mãos estivessem trêmulas, por mais medo que tivesse, não desistiria tão fácil. Não era uma questão de honra ou coragem, dentro dele algo havia mudado, como sentira naquela manhã cinzenta, algo que se debatia e agora, naquele lugar, ele entendia do que se tratava.

O que quer que fosse, precisava ser liberto, como se sua caixa torácica fosse uma prisão, contendo algo maior que sua alma, algo tão grande que aquela cidade infinita seria pequena para tal.

— Anomalia sistêmica detectada. Ativando modo de combate. — As palavras, apesar de pouco ditas, possuíam uma sonoridade já conhecida. Um farfalhar se agitou em sua barriga e ele se reergueu, temendo o que viria a seguir. Caminhou para o centro da rua, onde as cinzas pareciam se agitar numa espiral. Ele sentiu o vento frio bater em seu rosto, apertou a arma quase translúcida numa mão e pousou a outra sobre o cabo da espada ainda embainhada. A construção a frente se estilhaçou numa explosão de concreto, fios e metal retorcido, quando a fera sombria a atravessou, girando o corpo e caindo pesadamente à sua frente, obscurecida pela poeira e as cinzas que caiam com maior intensidade agora.

O Devorador urrou como o lobo que aparentava ser, anunciando que estava pronto para a batalha. Somente um dos dois sobreviveria àquela noite.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Até breve!



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