Sem-Coração escrita por Ju Do


Capítulo 5
Capítulo 5: A Ária da Rainha da Noite


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Sem os cavalos, o ritmo do Cavaleiro e da Rainha ao atravessar a floresta foi muito mais lento. O terreno era difícil de andar para ela, que não estava acostumada e frequentemente tropeçava em raízes escondidas e pedras. O Cavaleiro tentava ajudar como podia, caçando sempre que possível para conseguir alguma comida que suplementasse as frutas que eles colhiam das árvores, mas os animais pareciam escassos naquela mata, e diversas vezes, eles foram dormir sem comer.

Na realidade, aquela era a parte mais difícil: dormir. Eles acendiam uma fogueira e se enrolavam em cobertores ao redor do fogo, tentando se aquecer e se manter o mais perto da chama o possível, mas aquilo não conseguia afastar completamente os terrores da floresta, que parecia, se é que era possível, ainda mais barulhenta à noite. Nessas condições, eles não dormiam muito. A Rainha era quem estava se saindo pior: além de quase não dormir, quando dormia, seu sono não era tranquilo. O Cavaleiro a observava se mexer incessantemente nos cobertores, murmurando coisas que ele não conseguia entender.

Depois de uma semana, eles estavam ficando exaustos. A boa notícia é que estavam chegando perto do fim da floresta. A Rainha subira novamente em uma árvore alta e conseguira visualizar, bem longe no horizonte, o fim da vegetação fechada.

Foi no final do sétimo dia, entretanto, que eles encontraram a Feiticeira.

Tudo começou com um acontecimento estranho: a Rainha parou de repente, fazendo com que o jovem quase colidisse com ela.

— O que foi?

Ela apontou para algo no chão. Os dois se aproximaram para olhar. Passarinhos comiam algo que parecia estranhamente com migalhas.

— Farelos de pão? - o Cavaleiro se surpreendeu. - O que farelos de pão estão fazendo no meio da floresta?

A Rainha não tinha resposta para aquilo. Os dois continuaram a viagem, um pouco mais atentos para o que estava ao seu redor. E foi alguns minutos depois que eles foram parar em uma clareira. E, no meio da clareira, havia uma casa, feita completamente de...

— Bacon! - o Cavaleiro comemorou. Estava começando a ficar faminto depois de alguns dias sem uma refeição decente. Ele deu um passo em direção à casa, antes que a Rainha o puxasse de volta.

— Há uma casa. Feita de bacon. No meio da floresta. - ela o encarou firmemente. - Você realmente acha que isso é uma coisa normal?

Ele baixou os olhos, percebendo o seu erro.

— Perdão. Estou com fome.

A Rainha sacudiu a cabeça em desaprovação, voltando a olhar para a casa.

— Definitivamente há algo estranho aqui. E, se tem um lugar em que uma feiticeira moraria, seria nessa casa. - ela mordeu os lábios. O Cavaleiro percebeu qual era o conflito ali. Se evitassem a Feiticeira, passariam mais rápido pela floresta. Por outro lado, ela era a Rainha. Se havia um perigo grande assim no reino, era seu dever resolver...

A Feiticeira decidiu pelos dois. A porta da casa se abriu, e lá de dentro, saiu uma velha. Os dois puxaram as espadas. A mulher apenas apontou para as armas e falou algumas palavras, e o aço queimou em brasa nas mãos do Cavaleiro e da Rainha, que soltaram as lâminas imediatamente, com exclamações de surpresa.

— Bom, vejam só quem não comeu minhas maçãs. - a velhinha sorriu. - Não estavam do seu agrado?

— Você não me engana mais com essa forma. Sei que é uma feiticeira, e não vou ter pena de acabar com você. - o Cavaleiro retrucou.

— É mesmo? E que tal essa forma? - ela fez um gesto com a mão, e de repente, uma mulher adulta, belíssima, se encontrava na frente deles, usando uma coroa negra extravagante. - Prefere assim?

O Cavaleiro apenas a encarou.

— Bom, aqui está um homem que não se deslumbra com a beleza. - ela desdenhou.

— Ela pode criar ilusões, mas fisicamente, ainda é fraca. - a Rainha murmurou. - Somos dois contra um, podemos vencê-la no corpo a corpo.

— Fraca? - a Feiticeira riu. - Minha querida, eu sou a Rainha da Noite! Sou uma das três feiticeiras mais poderosas do mundo. Vocês não vão sair vivos daqui. E, quer saber o melhor? Eu nem precisarei lutar para garantir isso.

— Você não é rainha nenhuma. - a Rainha retrucou.

A Feiticeira lhe lançou um sorriso. E, com isso, ela abriu a boca e começou a cantar. Era uma canção com notas agudas, em uma língua desconhecida. O Cavaleiro não reagiu. A Rainha, entretanto, levou a mão à cabeça e fechou os olhos.

— Está tudo bem? - o rapaz perguntou, se aproximando dela. Ela abriu os olhos e o fitou. Então, com um grito de guerra, puxou a faca de osso que levava em sua cintura, com a qual arrancara o próprio coração, e partiu para cima dele.

O Cavaleiro tropeçou tentando recuar, assustado.

— O que você está fazendo?!

Ela não pareceu ouvi-lo. Seus olhos estavam cheios de ódio, e ela continuou a tentar esfaqueá-lo. Foi direto para sua garganta, e ele conseguiu, por pouco, desviar o pulso dela para lançar o golpe para longe. A canção continuava, cada vez mais aguda, enchendo seus ouvidos. Foi então que o Cavaleiro percebeu. A Feiticeira estava encantando a Rainha.

Ele virou-se para a mulher, furioso, e tentou partir em sua direção. Se ao menos conseguisse parar aquela música... Ela lhe sorriu, e um milésimo depois, a Rainha colidiu com ele e o levou ao chão.

— Morra! - ela gritou, feroz, tentando enfiar a faca no crânio do Cavaleiro. Ele gritou e moveu a cabeça no último segundo, fazendo com que a lâmina afundasse na terra ao lado de sua bochecha. Empurrou a Rainha para que ela saísse de cima de si e conseguiu ficar de pé novamente.

A situação era grave. A moça com certeza era uma combatente melhor do que ele que, além de tudo, estava desarmado. Aquela luta não poderia durar por muito tempo. Mas o que mais poderia fazer? A Rainha não o deixaria se aproximar da Feiticeira, que continuava a cantar para manter a ilusão.

Sua linha de pensamento foi interrompida quando a moça voltou a atacá-lo. A faca de osso quase se enterrou em suas costelas dessa vez, e ele recuou apressadamente. Cambaleou e bateu com as costas em uma árvore. A Rainha puxou a mão para um golpe, que certamente o atingiria na garganta dessa vez...

E a Feiticeira gritou. A Rainha cambaleou e levou a mão à cabeça, largando a faca. O Cavaleiro virou-se para ver o que havia acontecido.

Incrivelmente, atrás da Feiticeira, havia uma menininha com um machado na mão, que ela conseguira enfiar nas costas da mulher. Com a ajuda de um menino que estava ao seu lado, ela conseguiu puxar a arma do corpo da Feiticeira, que caiu de joelhos. Aproveitando a oportunidade, os dois giraram o machado juntos e atingiram a cabeça da inimiga, que revirou os olhos e caiu de cara no chão.

— Mas o que...?

— Nós matamos a Feiticeira! - a menina gritou, erguendo as mãos para o alto. O menino gritou de alegria de volta e os dois começaram a dançar ao redor um do outro, cantando: - Matamos a Feiticeira, matamos a Feiticeira!

O Cavaleiro os observou, boquiaberto. Um gemido da Rainha chamou sua atenção de volta, e ele se ajoelhou ao lado dela.

— Está tudo bem?

— O que aconteceu? Eu não entendo. - ela perguntou de volta.

— Bom, aquela Feiticeira começou a, hmn... Cantar. E aí você tentou me matar. - ele acrescentou.

A Rainha o fitou, confusa, e então seus olhos se arregalaram quando ela entendeu o que tinha acontecido.

— Sinto muito. Achei que você fosse outra pessoa. - ela resmungou, desviando o olhar.

— Tudo bem, foi uma ilusão. Mas... Nós temos um problema. - ela apontou para as crianças, que ainda dançavam e cantavam.

A Rainha os olhou, surpresa.

— E, sim, eles realmente mataram a Feiticeira.

Após alguns momentos, a moça pigarreou. As crianças pararam de dançar e a olharam.

— Posso saber quem vocês são?

— Eu sou Hansel. E essa é minha irmã Gretel. E nós somos os mais jovens caçadores de feiticeiras do mundo!

A menina concordou efusivamente.

— Caçadores de feiticeiras? - a Rainha questionou. As crianças deviam ter sete, oito anos, no máximo.

— Sim! Ela estava fazendo coisas ruins na floresta, e eu tive a ideia de virmos atrás dela. Então eu e o Hansel viemos para cá para encontrá-la. O Hansel deixou migalhas de pão para trás pra gente encontrar o caminho pra vila de volta. Mas aí deu errado, porque quando a gente chegou aqui, tinha uma casa de chocolate...

— Chocolate? Era uma casa de bacon! - o Cavaleiro protestou.

— Era uma ilusão. Olhe. - a Rainha apontou. Os quatro olharam para o que antes seria a casa. Agora aparentava ser um barraco feito de madeira podre e um pouco de tecido remendado, quase caindo aos pedaços.

— Eca. Mas enfim, - a menina continuou. - Tinha uma casa de chocolate com uma velha dentro, e eu não sabia que a Feiticeira podia se transformar em velha, e o papai e a mamãe sempre disseram pra gente ser educado com os idosos, então a gente foi e quando ela pediu ajuda com uma coisa dentro da casa, a gente entrou, né? Só que aí ela lançou uma magia na gente, e prendeu o Hansel numa jaula e me botou numas algemas. Ela dizia que ia comer a gente, e já estava me mandando aquecer o forno, quando saiu, acho que porque vocês chegaram. Então o Hansel usou um ossinho que ele achou no chão pra abrir a fechadura da jaula e me soltar das algemas, e a gente saiu atrás dela com um machado que ela tinha deixado na casa. Eu achei que a gente ia ter que lutar com ela, mas vocês estavam servindo de distração, então eu cheguei por trás e dei uma machadada nela! E aí, quando ela caiu, a gente deu uma machadada de novo, só que dessa vez na cabeça, e eu acho que ela morreu.

Gretel apontou para a Feiticeira, que jazia no chão, com sangue saindo de sua cabeça. A Rainha suspirou e colocou uma mão na testa.

— E onde estão os pais de vocês?

— Acho que na aldeia. - Hansel respondeu. - Fica a uma tarde de caminhada daqui.

— Ótimo. Acho que já está na hora de vocês voltarem para lá. Querem vir comigo e o meu amigo aqui? Podemos levar vocês até a aldeia, se nos disserem o caminho.

— Vocês levarem a gente até lá? É a gente que vai levar vocês pra lá! Nós que acabamos de matar a Feiticeira.

— Sim, sim, claro. Nos levem até a aldeia. - a Rainha consentiu, com um breve sorriso.

— Mas primeiro, vamos passar na casa da Feiticeira. Tinham umas coisas interessantes por lá que eu queria pegar.

— Não! - a Rainha ergueu a voz, imperiosa, pela primeira vez na conversa. As crianças se encolheram. - Essa casa está cheia de magia negra. Fiquem longe dos objetos dentro dela. Só irão lhes trazer mal.

Os dois irmãos assentiram, ainda temerosos. E, assim, o Cavaleiro e a Rainha seguiram as duas crianças pela floresta. Haviam sobrado algumas migalhas de pão, o suficiente para que Hansel e Gretel achassem mais ou menos a direção de casa, e eles andaram pelo que restava do dia. Quando chegou a noite, pararam e fizeram uma fogueira.

— Agora, me escutem. - a Rainha falou para as crianças. - O que vocês fizeram foi muito corajoso. Mas também foi muito burro. As duas coisas às vezes se confundem. Da próxima vez, talvez fosse melhor pedir ajuda a outra pessoa. Pensaram em mandar uma mensagem à Rainha?

— A gente não faz mais parte do Reino da Rainha. Somos parte do país do Imperador agora. E ele não responde as mensagens que a aldeia manda.

A Rainha suspirou.

— De qualquer modo. Não foi uma boa ideia. Seus pais devem ter ficado mortos de preocupados. Essa Feiticeira era uma adversária grande o suficiente para uma aldeia inteira. Vocês tiveram sorte de sobreviver a um encontro com ela.

— Mas nós matamos ela! - Hansel protestou, efusivamente. A Rainha sorriu.

— Sim. Mataram. - ela suspirou. - Mas agora é hora de descansarem.

Ela deu seu cobertor às crianças, que se enroscaram nele e, logo, estavam dormindo. O Cavaleiro e a Rainha ficaram em silêncio fitando as chamas.

— Quando você me atacou... - o Cavaleiro começou, após alguns minutos. - Você achava que eu era ele?

Ele a encarou.

— Achava que eu era o Imperador?

A Rainha enterrou os dedos no solo.

— Sim. Me desculpe por isso.

— Era um feitiço. Não foi culpa sua.

Eles permaneceram calados por alguns momentos. O Cavaleiro queria fazer uma pergunta, mas não sabia se teria ousadia para tanto.

— Como ele roubou o coração? - finalmente, sua curiosidade venceu.

— Ele... Não roubou. - a moça falou, a contragosto.

— Não? Então como...?

— Eu o dei.

— Deu o seu coração para ele? Mas por quê?!

Com aquela pergunta, ele parecia ter ultrapassado uma linha invisível. A Rainha o encarou com firmeza, até que ele desviasse os olhos. Então, ela deu de ombros.

— Eu só queria sentir algo. Achei que ele fosse alguém que merecia aquilo.

— Sentir algo? - o Cavaleiro perguntou, confuso. Então, algo clicou em sua cabeça. - Você... Amou ele?

Com aquilo, ele viu o primeiro lampejo de raiva nos olhos dela.

— Não acho que essa seja uma pergunta adequada de um cavaleiro fazer para sua rainha.

O Cavaleiro a fitou, surpreso, mas concordou de leve com um aceno de cabeça, dando um fim à conversa. Claramente, aquele não era um tópico confortável. A Rainha virou-se e deitou-se para dormir, e ele não falou nada. Mas, ao fitar as costas dela, não conseguia afastar seus pensamentos. Mesmo que ela o tivesse amado... A Rainha era claramente uma pessoa inteligente. Mas dar o seu coração para outra pessoa parecia algo extremamente estúpido de se fazer.

 


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Notas finais do capítulo

E aqui temos mais um capítulo com mais referências, para aqueles que pegaram! Espero que tenham gostado do capítulo! Tem dúvidas? Críticas? Elogios? Todos serão bem-vindos.

Obrigada por ler! =D



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