Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 6
V — Ah, you're no gettin' younger


Notas iniciais do capítulo

sejam muito bem-vindas, Fofura e EsterNW ♥ *estendendo tapete vermelho*



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/810659/chapter/6

“Agora parece que algumas coisas boas foram colocadas na sua mesa

Mas você só quer as que não pode ter

Desperado, oh, você não está ficando mais jovem

Sua dor e sua fome estão te levando pra casa

E liberdade, oh, a liberdade é só o que as pessoas falam

Sua prisão é andar por esse mundo sozinho”

(Desperado — Carpenters)

 ★

Alex espreguiçou-se lentamente, expulsando a moleza do corpo. Certo, preguiça não era a palavra mais adequada para a ocasião. Ele sorriu com o pensamento, satisfeito.

Girando as escápulas, Alex olhou para a cama atrás de si pelo canto do olho. Valerie tirava um cochilo, e seus cabelos escondiam o rosto adormecido, em paz. O tom de seus cabelos lembravam-no do pôr-do-sol no verão, quando as nuvens de chuva se aglomeravam no horizonte para presentear os humanos com uma camada de frescor revigorante após um dia escaldante. Os anos de seca ainda castigavam sua memória – às vezes, quando chovia, ele se pegava murmurando um agradecimento. Por mais teimosos que os humanos fossem, a natureza sempre encontrava o seu caminho de volta.

Com um suspiro, ele aninhou-se ao lado dela na cama, cruzou os dois braços atrás da cabeça e pôs-se a observar o sol partindo através do horizonte. Contou até vinte e seis, e só parou quando ouviu o bocejo.

— Já é de noite? — Valerie murmurou, roncando baixo. 

— Ainda não. Na verdade, dorminhoca, se resolver abrir um olho você vai ter uma bela visão.

Ela abriu um sorriso malicioso, fazendo conforme o pedido.

— Mais uma? 

— A de lá de fora — Alex não previu o comentário chegando, portanto sua risada foi sincera. — Estou falando do sol. Venha cá ver.

Valerie esticou as pernas e usou-as para subir alguns centímetros na cama. Então, usou o abdome dele como travesseiro, ajustando-se perfeitamente no espaço. Alex agiu no automático, passando o braço ao redor de seu corpo para aconchegá-la mais. Após titubear por alguns segundos, ele também optou por lhe dar um beijo sutil no monte de cabelos revoltos. Valerie sorriu com o gesto.

— Quando me disseram que o pôr-do-sol da Flórida era bonito, eu não imaginava que era tanto assim — ele segredou, acariciando o braço dela. — Eu imagino como ficaria de um mirante. Ou de uma cachoeira. Tem cachoeiras por aqui?

— Boa pergunta. De onde você veio antes?

De tantos lugares que já nem me lembro. Vai ter de ser mais específica que isso, ele pensou.

— Michigan — Alex optou por algo não tão arriscado. — Uma cidade pequena que costumava ser uma colônia alemã no século XIX. Tenho alguns antepassados que vieram de lá, apesar de eu sempre me perder na árvore genealógica da família.

Ela assentiu com a cabeça, erguendo o olhar para ele depois. Seus olhos brilhavam de curiosidade.

— Seus pais moram lá?

— Ah, não. Meus pais... Morreram há uns anos. 

Seu semblante murchou instantaneamente. 

— Eu sinto muito — ela sussurrou. — Não quis... 

— Tudo bem, Valerie — Alex sorriu, respirando fundo. — Já faz muito tempo. A gente acaba aprendendo a viver com a dor. Ela não vai embora, mas... Às vezes, se a gente finge o suficiente que não lembra que ela está ali, passa a acreditar em algum momento.

Valerie continuou olhando, com os lábios franzidos. Tudo o que ela fazia era digno de observação. Não porque ele queria aprender seus costumes, mas porque ela era interessante. Chegava a ser desconfortável, porém Alex sabia que o desconforto era apenas o prelúdio do abandono. 

— Como eles eram? — Valerie apoiou o cotovelo no travesseiro. — Seu pai, sua mãe? Eram bons pais?

— Os melhores... Quer dizer, eles tinham os seus defeitos como quaisquer outros, mas... Pra mim, eram os melhores. 

Ao notar que sua voz começava a embargar, Alex pigarrou. Nunca tinha falado sobre os pais em voz alta antes. É claro, Levi estava lá para lembrá-lo que ele não havia feito o suficiente durante a Debandada, mas jamais tivera a oportunidade de compartilhar com alguém o luto dos pais. A mãe dizia que seriam eles para sempre até o final dos tempos, e agora... Agora, ele estava sozinho. E merecia que fosse assim.

— Minha mãe era a pessoa mais gentil que eu já conheci — ele continuou, motivado por seu olhar. Aparentemente, ele também poderia ser envolvido pelo magnetismo alheio. — Você podia se enganar pela aparência dela, porque era baixa e muito franzina, mas era muito forte. Era ela quem conduzia nossa família. O meu pai... Meu pai era o oposto. Ria bastante. Apesar de ele ser um homem com muitas responsabilidades, ele não encarava o restante das coisas com aquele rigor de quem geralmente tem bons cargos... Faz sentido?

— Faz sim — ela sorriu. — Você disse que moravam numa colônia alemã... Foi antes ou depois das guerras? Ou sempre moraram aqui?

— Ah, não, foi bem antes. Bem antes. Meus... Meus pais, de alemães, só tinham antepassados. Acho até que era mais austríaco do que alemão. Minha mãe gostava de dizer que era parente direta da esposa de Mozart — ele riu baixo com a lembrança. — Como eu disse, é uma árvore genealógica bem confusa.

— Sei... E vocês tiveram algum problema por conta da guerra? Sabe... Preconceitos, coisas do tipo?

— Quando estava tudo no auge, minha mãe dizia que sim. Eu não teria como me lembrar... — era uma meia verdade. Quando estava tudo “no auge”, Alex estava bem longe de tudo aquilo, trabalhando numa fazenda a troco de um prato de comida. — Era mais o preconceito inicial, até eles mostrarem as identidades e se provarem cidadãos americanos. Ridículo, eu sei.

Valerie revirou os olhos, tomada pela indignação. E ela estava certa. O país da prosperidade era intolerante com os de sua pátria, e mais ainda com os de fora dela. Alex mal via a hora de dar o fora daquele fim de mundo maldito.

— Acha que foi por isso também que não te deixaram servir...? — ela acrescentou, cuidadosamente. — Pelo histórico familiar?

Alex fitou-a com um espanto imprevisto. Para quem podia controlar bem as emoções e reações dos outros, Valerie o deixava desestabilizado e sem controle das próprias ações.

— Nossa, mas você... — ele balbuciou, sentindo as bochechas esquentarem. — Você presta atenção em tudo, mesmo… 

— Claro que eu presto! As pequenas coisas sobre uma pessoa são mais importantes de se conhecer do que as que normalmente todos escancaram… 

— E você acha que minha saúde é uma pequena coisa, Valerie Bowman? Minha saúde sou eu todo!

Ela gargalhou, sacudindo-se no peito dele. Lá fora, o sol já havia terminado de partir. Agora era apenas os dois e mais nada para disputar a atenção. Enfim, sós.

— Você entendeu o que eu disse! 

— Entendi — ele riu, ainda que um tanto rouco. — Respondendo à sua pergunta... De verdade, Valerie, eu não sei. Acho que nem tudo é questão de “sim” ou “não”. Entre o preto e o branco há muita área cinzenta.

Valerie aquiesceu, permanecendo em silêncio por alguns instantes. Parecia estar colocando numa balança tudo o que lhe fora dito e tudo que permaneceu nas entrelinhas. Era uma mulher inteligente. Alex realmente gostaria que seu dom fosse ler seus pensamentos. Assim, quem sabe, ela pudesse enxergar a fagulha de medo que ditava seus passos. Toda aquela conversa era muito íntima. Talvez fosse o modo como Valerie o olhava, com aqueles olhos astutos de corvo, que o amedrontasse. Ou talvez... Talvez fosse como aquele olhar o fazia sentir. Era desprezível, porque Valerie representava praticamente um dia de sua vida, uma pessoa insignificante não deveria provocar tantos efeitos em si. Apesar disso, ele continuou falando, pois queria ouvir o que Valerie Bowman tinha a considerar sobre as futilidades da vida.

— E os seus pais? Sempre foram da Flórida?

— Não sei — ela se aninhou mais a ele, passando o braço ao redor de seu corpo. Alex torcia para que ela não conseguisse escutar seus batimentos cardíacos, uma vez que suspeitava que eles estivessem totalmente descompassados. — Minha mãe não fala muito sobre o passado. Mas eu sou o que o pessoal da idade dela chama de “filha da guerra”. Ninguém questiona de onde os filhos da guerra vieram. Sei que ela teve que mentir muito para conseguir arrumar emprego, mas... Datas, lugares... A gente não fala muito sobre isso. 

— Entendi... 

— Mas John sempre conta como ele conheceu a nossa mãe — Valerie prosseguiu, mais animada. — Ele já contou tantas vezes que eu e Ronnie já decoramos. Era uma vez, um filho de fazendeiros do Colorado, que tinha o sonho de ver o mar e ser famoso. Ele queria ser escritor, era fissurado naquela galera dos anos 20 que era genial e louca ao mesmo tempo, você sabe? É, era isso que o John dizia: todo gênio tem um quê de loucura... Eu sei lá, acho que “louco” é um termo muito genérico. A gente está nos anos 60, tipo... Né? Na época era loucura, hoje em dia já é normal. Enfim… 

Alex riu baixinho. Valerie se perdia muito fácil em sua narrativa para tentar incluir todos os detalhes. Era adorável, ele devia admitir. Poderia ouvi-la falando por horas.

— Aí ele me conheceu e a mamãe, e diz que foi amor à primeira vista. Por ela, não por mim, claro. Mesmo que eu fosse um chaveirinho da minha mãe. Eu tinha seis anos quando eles se casaram — ela sorriu, lembrando. — E tinha oito quando minha irmã nasceu e fomos incluir o nome dele no meu registro. Foi... Foi mágico. Ganhar um pai de presente. 

Ele assentiu, sorrindo de lado. 

— Ele quem me deu a charanga... É o carro que ele usou para vir do Colorado até aqui — Valerie finalizou, baixando o tom. — Ganhei quando fiz dezesseis anos... Mesmo que eu morresse de medo de dirigir, na época. Hoje, não. Hoje os outros comem poeira. Não porque eu dirija que nem uma melindrosa, mas porque come um combustível danado aquela coisinha. 

Alex gargalhou, chegando a jogar a cabeça para trás. Após um esforço enorme, tentou remodelar o sorriso para que ele fosse mais leve. Além de não ter muitos motivos para rir deliberadamente daquele jeito, Alex não gostava de exibir os dentes – a combinação de incisivos proeminentes e caninos afiados não era nada atraente. O maxilar, então? Não, ele não era nada bonito. 

— Não imagino você num racha, Valerie. 

— Eu posso incluir na minha lista de coisas para fazer quando for uma idosa inconsequente — ela riu com maldade. — Por enquanto, já estou fazendo o suficiente. 

Ele ergueu uma sobrancelha, divertindo-se com o tom de flerte. 

— Eu não acho. Se me permite dizer. 

— Nesse caso... — ela apoiou-se nos cotovelos para poder olhar em seus olhos. Os cachos acompanharam seus movimentos, esparramando-se por seu abdômen. — Palavras não seriam capazes de traduzir as ações. Seria como correr atrás do vento. 

Alex afagou seu rosto com as costas da mão, afastando o cabelo para que pudesse vê-la com clareza. Mesmo com as luzes apagadas e a luz natural não contribuindo, Alex descobriu pequenas sardas espalhadas por suas bochechas. Manchinhas de sol. Ela sorriu, fechando os olhos para apreciar o carinho.

— Você me dá medo — ele murmurou, externando os pensamentos. Quase podia sentir o alívio no peito. 

— Eu? Por quê?

— Porque você é autêntica... Autêntica e inofensiva. E você vê beleza em tudo... 

Ela inclinou-se para beijá-lo no pescoço. Alex teve de retesar o maxilar para não fazer nenhum barulho inadequado.

— E você não? 

— Ficaria surpresa com a resposta — ele replicou, inspirando o perfume dela. — Mas até que eu prefiro que você continue achando que eu sou terrivelmente previsível. 

— Gosto de chegar à minhas próprias conclusões — ela riu contra sua pele, arrepiando-o até a base da coluna. — Eu sou inofensiva, de qualquer modo... 

É. Ela era mesmo. E justamente por esse motivo tinha de mantê-la longe dele o quanto antes. Seria melhor para os dois. Alex continuaria desenvolvendo aquele pensamento num outro dia, contudo. Não conseguia enxergar um jeito fácil de sair daquela situação. Mais uma vez, tudo seria culpa dele.

— Você me acha ingênua por ver o lado bom das coisas? Ou tentar?

— Não acho — ele sorriu, gentil. — Na verdade, é... É muito bom estar com alguém que não perdeu a fé nas pessoas. Faz a gente querer… Tentar ver as coisas do mesmo modo.

Por um momento, Valerie o observou como se tivesse todo o tempo do mundo. Será que ela conseguia enxergar seus demônios em seus olhos? 

— Podemos aprender bastante um com o outro — ela sussurrou, voltando a aconchegar-se em seus braços. — Vou tentar não assustá-lo tanto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Um beijão, até o próximo (◍•ᴗ•◍)❤



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Nebulosa" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.