Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 15
XIV — Her secret heart, that's my favorite part


Notas iniciais do capítulo

Mais uma terça-feira veio aí ♥ eu tô amando ler as teorias de vocês!



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“De vez em quando eu vislumbro

Das coisas mais verdadeiras que ela mantém escondidas

Seu coração secreto, essa é minha parte favorita

Eu vejo o que ela não pode ver

Sua luz só pousou em mim

Mas há um brilho em seus olhos castanhos

Os que ela deu para mim

Então eu sei que nós duas podemos ser brilhantes”

(Shiny — Sara Bareilles)

 ★

Miami, Flórida — setembro de 1969

Voltar para casa com Frank havia se tornado um hábito ao longo do tempo. O velho Pontiac, estacionado na garagem aberta, agora recebia cuidados frequentes do senhor Gerard, o vizinho, e de seu filhote de daschund, Kurt. Por mais que o que Kurt chamava de cuidado fosse urinar nos pneus, Valerie sentia-se grata.

O cansaço agora fazia parte de sua rotina. Para variar de vez em quando, Valerie tentava abrir bem os olhos, na esperança de que o ânimo lhe fosse recobrado milagrosamente. Se olhasse bem, talvez o brilho no fundo de seus olhos retornasse. Tudo que mais amava agora era repulsivo – seus livros, suas músicas, o pôr do sol, sorvetes, sessões de cinema. Para variar de vez em quando, Valerie gritava contra o travesseiro, como se isso de alguma forma fosse trazer a partícula que lhe trazia vida de volta. 

Valerie despediu-se do “moreno bonito”, como Victoria o chamava, e do carro, ele acenou – um aceno curto e respeitoso. 

— Oi, mamãe — Valerie cumprimentou-a com um beijo na bochecha, sorrindo com moleza. — Como vai?

— Muito bem, e você?

 — Hum… Cansada. 

— Sei… e o seu moreno bonito?

— O nome dele é Frank, mamãe, e ele não é nada meu.

— Minha filha, dormir com um homem na minha época era reservado apenas para o matrimônio… Se você pensar um pouco, isso é bastante avançado. 

A cabeça dela girou. Por sorte, estava segurando-se na mãe, do contrário era bem capaz que Valerie fosse ao chão. Ah, céus, se a mãe apenas soubesse o que tinha feito durante todo o verão… 

— Puxa, você está mal mesmo, não está…? Ah, querida, me desculpe, eu não quis constrangê-la. Venha, vamos entrar… 

— Não me constrange — Valerie garantiu, acariciando o braço dela como forma de redenção. — Desculpe, eu acho que é o sol… Está muito quente para essa época do ano, a senhora não acha? 

— Acho. Estou suando. Vou preparar um banho bem fresco para você. E uma limonada.

Valerie sorriu, apreciando ser mimada um pouco. Não sentia vergonha de ser a filhinha da mamãe. Era um fardo difícil de carregar a longo prazo, porém de tempos em tempos era um fardo bem-vindo. Como ousaria jogar fora tudo o que tinha conquistado até ali?

Ainda assim, o cotidiano exigia que ela tirasse um final de semana inteiro para não fazer nada e não ver ninguém, para recarregar. Valerie precisava continuar sendo inofensiva e responsável. Com Alex, ela tinha se sentido tão acolhida, tão livre de rótulos… Tão viva.

Era inevitável sentir um pouco de inveja da irmã. Veronica era uma alma livre. Não é que Ronnie não tinha nenhuma cobrança – é claro que o pai e a mãe queriam o melhor futuro possível para a filha, com boas notas e uma boa carreira, possivelmente um bom marido quando fosse mais velha –, porém ela não dava a mínima para o que pensavam ou deixavam de pensar dela. Veronica Bowman apenas existia, e fazia disso um momento apoteótico. Valerie não sabia desvincular sua própria existência de suas obrigações. Mesmo que algum dia se casasse, seria do tipo que esquece dos próprios princípios e abraça os deveres como a um velho amigo. 

Vendo para onde aquilo estava a levando, Valerie suspirou. Sua mãe olhou-a de soslaio, e Valerie censurou-se por não conseguir manter-se no personagem. Das duas irmãs, Valerie era a mais comedida, mas nem de longe tão séria quanto naqueles últimos dias. Ficava cada vez mais difícil manter o controle da própria sanidade. 

 —Tem alguma coisa errada com Frank, querida? — a mãe indagou, em tom baixo. — Ronnie não está aqui, se você quiser conversar… 

— Ah, mamãe, eu conto tudo pra Ronnie. Ela é minha melhor amiga. Não teria problema se ela escutasse. Ela saiu com a Laurel?

Victoria assentiu um com um sorriso. Então, abriu a torneira da banheira e deixou a água escorrer. Valerie sentou-se na privada, aguardando. Normalmente iria se voluntariar para pegar as toalhas, mas no estado em que se encontrava, até pediria para a mãe despi-la.

— Saiu, sim. Foram andar de bicicleta. A mãe da Laurel disse que deixaria ela aqui em casa na volta. 

— Que bom. Qualquer coisa, se ela demorar para aparecer, liga pra casa dela… Posso ir buscá-la com o carro. Você sabe que a Ronnie não é lá muito atlética. Tirando a bicicleta e malhação de língua.

Victoria riu suavemente, fechando a torneira de água fria e abrindo a de água quente. Mamãe tinha aquele dom especial de encontrar a linha tênue entre um banho fresco e um morno. E o dom também de sempre falar e agir como se fosse uma pluma. Valerie não conseguia pensar em alguém que fosse tão delicada quanto a mãe.

— A amizade de vocês é tão bonita… — Tori comentou em tom aéreo. — Sabe, quando a Ronnie nasceu eu achei que vocês duas iriam brigar muito. Porque a diferença de idade entre vocês é grande… Pensei que você fosse ficar com ciúmes, mas não… Desde que ela nasceu vocês foram sempre muito unidas. 

— Eu lembro que quando ela era uma bebê eu achei que você tinha me comprado uma boneca — Valerie riu com a lembrança. — E que eu carregava o carrinho dela para cima e para baixo, e ai de quem olhasse um pouco mais torto. 

— É… Você é como uma segunda mãe para ela, Val.

Valerie anuiu, tão distraída quanto a mãe. Com moleza, ela desabotoou o terninho e pendurou-o na porta do armário. E aí vieram os sapatos, as meias, as roupas íntimas. E, quando entrou na banheira, os grampos de cabelo. Sem hesitar, Valerie submergiu todo o corpo, permanecendo ali por alguns segundos. Victoria sentou-se na privada, tomando o lugar onde Valerie esteve até então.

— Delicioso — Valerie balbuciou assim que ergueu a cabeça. — Obrigada, mamãe. 

O problema foi que a mãe permaneceu quieta, observando-a com insistência. Mesmo não entendendo, Valerie esticou os pés e encostou-os na banheira, tentando relaxar. Victoria respirou fundo e pegou o caneco de banho para poder umedecer os fios cacheados da filha, por mais que já estivessem encharcados. 

— Mãe? O que foi? 

— Bem, eu… Eu posso lhe fazer uma pergunta, querida? 

— Claro que pode — Valerie arrumou-se na banheira, tentando não escorregar no processo. — É… Aconteceu algo com o papai? A senhora parece meio distante… 

— Não, não. Nada disso. Eu… Quis perguntar justamente porque a Ronnie não está aqui porque pensei que pudesse constrangê-la. 

— Mãe, por favor… Está me deixando ansiosa.

Victoria mordeu os lábios, pensativa. 

— Qual foi a última vez que suas regras vieram?

— Ah… Semana passada — Valerie franziu a testa. — Por quê?

— Quanto? E de que cor? Por quanto tempo? 

Valerie soltou o ar pela boca, não entendo o propósito de tudo aquilo. Quer dizer, por mais que fossem bem amigas, não era lá muito comum que Valerie escutasse perguntas sobre seu ciclo. Ela conhecia, inclusive, mães que ficariam horrorizadas apenas de explicar o que era sexo para as filhas. Os rapazes, no entanto, eram incentivados a praticá-lo como e quando quisessem. 

— Não lembro muito bem, mas foi pouco… Uns três dias, meio marrom… Ando bastante estressada, é normal vir dessa cor quando está estressada, não? 

Victoria ofegou, passando a inspecionar o corpo da filha minuciosamente. Valerie assustou-se com a brusquidão do gesto. 

— Mãe, você está me assustando… 

— Você tomou suas pílulas direito, Valerie? 

— É claro que tomei, por que eu iria querer engravidar agora? — Valerie respondeu erguendo a voz. Arrependeu-se automaticamente ao notar a expressão da mãe.. — Desculpe, não quis ser grosseira. Eu… Você pode, por favor, me dizer em que é que está pensando?

Victoria massageou as têmporas, balbuciando algo ininteligível. Valerie aproximou-se para tentar compreender, ouvindo apenas a sentença fatal:

— Você está grávida, Valerie. Olhe só para os seus seios, para como tem agido ultimamente… Não há outra resposta, é tudo muito óbvio.

Ela prendeu a respiração, zonza com o choque. Não via nada de errado com o próprio corpo – se fosse levar em consideração, tudo nela estava sempre mudando e inconstante, engordando e emagrecendo feito uma sanfona, não era lá muito parâmetro para qualquer coisa que fosse. Mas, agora que a mãe estava pontuando, os seios dela tinham mudado. Diferentes. Doloridos. Com as aréolas escurecidas. Valerie achava que era culpa dos sutiãs apertados que andava usando… Agora a mãe dizia que o estresse dela era uma gravidez? 

— Não, eu… Eu tomei as pílulas certo — Valerie riu de nervoso, abraçando as próprias pernas. Sentia os olhos enchendo d’água. — Não pode ser isso, mãe… Eu menstruei semana passada… 

— É normal, no começo… É o jeito que o seu corpo tem de explicar que está esperando um filho — Victoria sentou-se no chão, e passou a acariciar as costas da filha. — Não é sangue de menstruação. Tem mulheres que sangram a gravidez inteira.

Valerie não conseguiu mais reprimir o choro. Tudo estava dando errado… Como é que ela criaria um filho? Elas mal tinham dinheiro para sustentar a si mesmas, que dirá mais uma pessoa! Uma criança! Quanto gasto uma criança dá? Valerie não podia perder o emprego, porque ele era o que sustentava toda a família… 

Ah, meu Deus. O que ela faria com uma criança sem pai? 

Em meio a soluços, Valerie gaguejou:

— Me desculpe, mãe… Eu não queria… Eu sinto muito… 

— Por que está pedindo desculpas? — o tom dela foi gentil, mas Valerie esperava uma reprimenda. De alguma forma, aquela gentileza foi o que deixou-a ainda mais transtornada. Como é que a mãe conseguia estar tão calma num momento como aquele? — Calma, meu amor… Respire um pouco… 

— Eu decepcionei você… Você e o papai… Eu vou perder o emprego, e o papai vai voltar e ficar decepcionado comigo… Porque ele foi servir e o que eu fiz enquanto isso? Me comportei feito uma vadia — ela gesticulou exageradamente, derrubando o frasco de shampoo na banheira. — Desculpe, eu… 

Victoria segurou o braço dela com firmeza, forçando-a a olhar para a filha. Valerie tremia-se toda, incapaz de controlar os nervos. Pela primeira vez em sua vida, o toque da mãe não trazia conforto algum. Tudo o que passava por sua cabeça era o pânico. Todas as vezes em que a mãe a disse para tomar cuidado com o que fazia, com quem andava, com as escolhas que fazia… Valerie em três meses havia jogado fora uma vida inteira de lições, galgando degraus altos demais para a sua realidade. Esperando demais, arriscando demais. 

— Filha, escute — e então, Tori usou seu tom autoritário. Valerie reprimiu um soluço.. — Só me escute, tudo bem?

Mesmo hiperventilando, ela assentiu. Com muita calma, Victoria resgatou o frasco de shampoo perdido e passou a aplicá-lo nos cabelos da filha. Tomando seu tempo e permitindo que Valerie chorasse em silêncio, Victoria massageou todo o couro cabeludo dela e começou:

— Você sabe… Quando eu engravidei, a época era muito, muito diferente… Meus pais ficaram furiosos. Me colocaram para fora de casa. Eu estava sozinha, com uma criança para cuidar, sem emprego e sem comida. Naquela época, mulheres sequer trabalhavam em larga escala como é hoje. 

Valerie escutou sua narrativa em silêncio, absorta pelas palavras. Era a primeira vez que a mãe tocava no assunto de maneira mais ampla. Fungando, Valerie soltou as pernas. Subitamente, um medo se apossou dela. E se esmagasse o bebê fazendo isso? 

— Fui acolhida por uma pensionista, quando a gestação já estava bastante avançada. O nome dela era Sofia. Ela era italiana, imigrante. E mãe, também. Luca, esse era o nome dele. Eu não o conheci, mas… — Victoria suspirou, escolhendo as palavras. — Ela me disse que o pai dele havia dito que era para ela tirar aquele filho, porque não tinham condições de ter uma criança naquela crise. O pai disse que, se ela o tivesse, não o assumiria. Aquilo estragaria a vida dos dois. Sofia fugiu da Itália até aqui para ter seu filho. Ela, como eu, veio por algo que ouviu dizer, não chegava a ser uma certeza. Então, eu fiquei com ela na pensão. Sofia não me cobrava nada.

Tori passou a enxaguar os cabelos dela e desembaraçá-los com os dedos. Valerie observou o shampoo escorrer pelo corpo e voltar para a água. Em algum momento, havia parado de chorar. 

— Você crescia mais e mais, e a cada dia eu experimentava novas sensações. No começo, eu tive tanto medo… Estava sozinha no mundo — Victoria sussurrou, repousando o caneco na ponta da banheira. Valerie ergueu o olhar para ela, os lábios trêmulos. — Mas, depois de um tempo, eu vi que aquilo não era verdade. Eu tinha você, minha menina… E, por você, eu seria corajosa. Era você que não tinha ninguém além de mim. O medo deu lugar a um amor tão forte… Você vai ver. Vai acontecer o mesmo com você.

— Não sei se sou corajosa como a senhora — Valerie encostou a cabeça no corpo da mãe, e ela sequer reclamou de ter ficado com as roupas ensopadas. — Nunca vou ser… 

Victoria inclinou-se para dar um beijo na testa da testa da filha, que aceitou-o de olhos fechados. O coração pulsava, e Valerie podia escutar os próprios batimentos. Logo, escutaria dois.

— A coragem habita em nós desde que nascemos, minha menina querida. Ela só é tímida demais. Se chamar por ela, ela vai atendê-la. Algumas pessoas confundem timidez com falta de educação ou de iniciativa. Mas ela está lá, eu prometo a você.

Valerie abraçou a cintura da mãe, inspirando o cheiro dela. Mamãe cheirava a limonada e, agora, a shampoo de coco. As duas permaneceram ali, em silêncio, apenas deixando que o momento se consolidasse. Ela amava tanto a mãe que o coração chegava a doer.

Será que era possível morrer por tantas emoções simultâneas? Há poucas semanas, a vida havia pego o coração dela e atirado ao chão. Pisoteado. Valerie aceitou passivamente o fato de que o coração estava em cacos, porém quando a mãe encontrou os cacos que ela havia varrido para debaixo do tapete, Valerie entendeu que a tarefa de limpá-lo e consertá-lo era apenas dela. 

Instintivamente, Valerie abraçou o próprio ventre. Havia alguém ali que precisaria dela. Que dependeria dela. Podia ser muito egoísta de sua parte em pensar nisso, mas Valerie estava ansiosa por ter quem dependesse dela. Sempre ficou a impressão para ela de que era como uma sanguessuga para a mãe, contudo as palavras a animaram. Conhecer mais do passado da mãe havia ampliado seus horizontes.

— Você nunca seria uma vadia aos meus olhos — Tori acrescentou, num tom que Valerie apenas conseguiu escutar por estar próxima aos lábios dela. — Você é o meu maior orgulho… Estaremos todos aqui por você. Eu, o seu pai, a sua irmãzinha… E eu amo você mais do que tudo nessa vida, Valerie… Foi você quem me ensinou o que era o amor de verdade.

A voz dela embargou conforme falava, o que motivou Valerie a abraçar a mãe com mais firmeza. Se dependesse dela, jamais teria soltado a mãe. Aquele abraço era seu perdão. Sua vida perdoando sua existência. 

Chamaria sua coragem e esperaria por ela à porta do coração. Não importava que ela fosse demorar. Valerie era uma mulher paciente. Teria de ser.


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Notas finais do capítulo

É, gata, deu ruim... Mas finalmente a Victoria falou mais um pouco sobre o passado dela... será que é suficiente?
E, talvez seja um spoiler ou não, mas daqui para frente não teremos mais capítulos narrados pelo Alex. Só no segundo livro agora, galeris (que vai ser consideravelmente menor que este, se tudo correr como o planejado *risos nervosos*)
Um beijo e até o próximo!



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