Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 10
IX — I wanna be a Mona Lisa




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“Estou tão cansada de ser um livro na prateleira

Cansada de histórias para outra pessoa

Acho que estou pronta para começar um novo capítulo

Eu estive procurando uma maneira de dar a volta por cima

Procurando por alguém para me dar a coroa

E eu quero sentir que finalmente importo

Eu quero ser uma Mona Lisa

O tipo de garota com a qual você pode sonhar”

(mona lisa — mxmtoon)

 ★

O sábado foi repleto de preguiça e de pedidos de serviço de quarto. Alex e Valerie haviam entrado num acordo silencioso de não fazer nada de relevante. Valerie já estava farta de sentir que precisava estar trabalhando a todos os instantes para se sentir útil. Portanto, quando apareceu a oportunidade, Valerie cumprimentou-a como uma amiga de longa data.

Lembrando-se de que tinha feito uma promessa de manter em contato, Valerie telefonou para a mãe e para a irmã, para atualizá-las de seu paradeiro – “sim, mamãe, Fort Lauderdale… Sim, Ronnie, estou viva… Sim, a comida é confiável… Sim, eu estou me hidratando bastante…” –, mas depois disso Valerie viveu para o fazer nada.

Ela e Alex continuaram trocando trivialidades, uma vez que a temporada de confidências havia se encerrado. Valerie conseguiu contar os assuntos do sábado nos dedos: as músicas que tocavam no rádio eram acrescidas de algum comentário a respeito da história da composição ou da opinião pessoal de um dos dois, avaliações da comida do hotel, os clichês comentários sobre o clima e desabafos sobre a rodada de trabalho semanal.

E, por falar em trabalho, no domingo Valerie teve a oportunidade de vê-lo em seu ambiente de trabalho. Com muita gentileza, ele perguntou se Valerie iria se incomodar se ele traduzisse uma página ou duas, simplesmente porque tinha lhe dado vontade de ler. Mais empolgada do que ele, Valerie concordou, esparramando-se na cama enquanto Alex ocupava a escrivaninha improvisada com a máquina de escrever. 

— Sobre o que é o livro? 

— Difícil dizer — Alex riu de nervoso. — Em resumo… É um grande fluxo de consciência, quase não tem pontuações, não há letras maiúsculas, e tem todo o tipo de violência em que você pode pensar. Os personagens são completamente voláteis e parecem apenas um peão na narrativa que a autora quer construir. O que… Na verdade, faz sentido, porque o título do livro é algo como “Somos todos iscas”. Eu ainda preciso verificar no dicionário. Olha, o manuscrito parece uma teoria da conspiração.

Alex mostrou para ela as páginas costuradas do rascunho, repletas de anotações em diferentes cores. Era curioso que ele fizesse todas elas em lápis de cor. E a letra dele era muito bonita; lembrava a Valerie da tipografia Morning Glory, da época vitoriana. Valerie assimilou todas aquelas novas informações com a curiosidade aguçada. 

— Parece ser um romance experimental interessante. 

— Posso pedir uma cópia para você, se quiser um… — Alex sorriu, acrescentando com timidez: — Vai ter meu nome na folha catalográfica.

— Tem cara de ser algo que a Ronnie leria com prazer! Eu aceito!

Alex aquiesceu, abrindo um sorriso lindo para ela. Valerie acariciou sua bochecha, sentindo os relevos e as depressões da pele dele. Como ela gostaria de ter uma câmera em mãos. Talvez, na próxima feirinha que fosse, comprasse uma descartável…

Enquanto vestia uma camiseta emprestada dele – verde, como se agora estivesse aventurando-se pelo mundo das cores –, Valerie pegou as outras páginas, as iniciais, para aproveitar o tempo e ocupar-se também.. O modelo da máquina de escrever dele era manual, uma Royal dos anos 1910, e tudo fazia com que Valerie se sentisse em casa. Ele datilografava rápido e com violência – tec, tec, tec… ding—, fazendo com que a mesa onde a máquina estava apoiada tremesse e não ficasse inteiramente estável. Ela teria rido, se ele não estivesse tão compenetrado.

— Sabe… Minha mãe sempre disse que eu deveria ler menos — ela comentou despretensiosamente. Alex olhou-a por cima da máquina de escrever, sinalizando que estava ouvindo-a. — Ela disse que viver no mundo da fantasia era perigoso. Que corria o risco de criarmos as expectativas erradas para a vida. Disse que histórias eram apenas histórias e que, por mais que os autores se esforcem para criar uma narrativa “realista”, eles são uma espécie de deus, que decide o rumo de cada personagem. A vida real… Bem, ela está longe de ser assim. Cada um escolhe o seu caminho, por mais que siga pelo plano B. 

Alex parou de datilografar na hora. Valerie sentiu-se um tanto culpada por atrapalhar, mas o olhar dele era tão penetrante que a culpa foi eclipsada.

— E-eu sempre disse que não era verdade. Para mim, as histórias têm a sua importância. Elas nos moldam como pessoas. E ninguém vive todos os dias sem consumir algum tipo de arte. Música, filmes, livros, comerciais, jornais, até mesmo roupas, foram frutos da imaginação de uma pessoa. Nada surge do nada. A vida simplesmente não existe sem a arte. Sem as lendas. É o que dizem, não? Lendas nunca morrem.

Valerie suspirou, percebendo ter divagado mais uma vez. Tinha vezes em que os seus pensamentos iam mais rápido do que os próprios pensamentos, e Valerie não podia fazer nada para evitar. Talvez ela também fosse um romance experimental, repleta de fluxos de consciência e pontuação escassa.

— Está me dizendo que acredita em lendas, Valerie Bowman? — ele se apoiou na prensa, usando um tom de voz animado. — Concordo com você. Livros de ficção são momentos de respiro. Viver a vida real às vezes exige momentos de escape.

— Exatamente! — Valerie sentou sobre as pernas, ajeitando a postura. — Não sei se “acredito em lendas” é o termo certo. Acho que eu as respeito. É um pouco como os contos de fadas, sabe? Ninguém sabe afirmar em que ponto eles aconteceram. Ou se aconteceram. A partir do momento em que vira algo folclórico, é algo a se admirar. É isso: eu admiro as lendas em seu valor cultural.

Alex mordeu o lábio, ruminando a fala dela. Não estava de todo errada em se apaixonar por ele; um dos primeiros requisitos para um relacionamento para ela era um bom diálogo. De preferência, sobre quaisquer assuntos que entrassem em pauta.

— Um pouco como as Estrelas, você diz? 

— Um pouco como as Estrelas — ela ecoou, concordando. — Quer dizer… Eu nem acho que isso deveria estar nas aulas de História. Nesse ponto do mundo, a gente já sabe que todos se extinguiram sozinhos. Foi tudo muito feio, acho que já está na hora de respeitar a memória daqueles que se foram. As Estrelas… É complicado. De tantas versões, eu nem sei em quê acreditar. Ou se devo acreditar. Particularmente, preferiria que fosse um conto de fadas. 

Valerie deu de ombros, sorrindo de escanteio.

— E talvez seja. Quem me garante que aconteceu? Quem me garante que não aconteceu?

— É… Eu não acredito que ninguém se sustentaria até hoje — Alex replicou. — Dizem que a qualidade de vida era outra. Podem ter confundido as coisas.

— É… Eu e você poderíamos ser Estrelas. Mas somos só pessoas comuns, não?

Valerie olhou pelo horizonte. O sol do meio-dia já ardia. Era um lembrete sutil de que em breve voltaria para casa. Sozinha.

— John já teria escrito seu livro se minha mãe não fosse tão restritiva com imaginação… Às vezes, eu me pego pensando se meu pai teria causado isso a ela… 

— Como assim? — Alex recostou-se na cadeira, deixando de lado de vez a máquina de escrever. — Acha que o seu pai era do tipo sonhador?

Valerie negou com a cabeça, indo avizinhar-se a ele. Com delicadeza, encaixou o queixo na curvatura de seu ombro. Valerie conseguiu sentir os batimentos cardíacos dele. Mais uma vez, a sensação de estar em segurança tomou conta de seu corpo, ainda mais quando Alex permitiu que ela o abraçasse. Foi em tom baixo que ela esclareceu:

— Ele, não. Ela. Ela era a sonhadora. Meu pai foi o homem que roubou os sonhos da minha mãe. Infelizmente, acho que herdei esse traço de personalidade. Depois de um tempo, você acaba percebendo que sonhar um pouco é bom. Mas viver no mundo dos sonhos te entorpece aos poucos. Quando você percebe, não consegue acordar.

Alex estremeceu. Porém, desta vez, ela não se culpou por ser sincera. Era a primeira vez que dizia aquilo em voz alta. Uma coisa, entretanto, Valerie guardou para si. 

Se algum dia se encontrasse com o pai, o faria pagar caro por todo o sofrimento que ele causara às duas. 

 

A primeira pessoa que reparou que Valerie ainda usava a camiseta de Alex foi Veronica. Francamente, ela sequer se espantava com isso. A conexão que tinha com a irmã era tão forte que Valerie vez ou outra suspeitava que eram mesmo especiais em meio a tanta banalidade. À tanta maldade.

— Nem preciso perguntar se o seu feriado foi bom, pelo visto — Veronica gargalhou com maldade. — Mas acho bom você tirar isso aí antes que a mãe tenha um colapso nervoso. O eu liberal dela também tem limites. Nossa, que cheiro bom! Bonito e cheiroso? Você ganhou na loteria!

— Meu Deus, eu esqueci de devolver a camiseta! Dá um jeito nela pra mim, Ronrom? 

— Dez pratas. E você lava a louça no meu lugar por uma semana. 

Valerie assoviou, mas concordou com os termos. Foi difícil desvencilhar-se da camiseta. Ela era um bem guardado, agora. Será que se fingisse que nada tinha acontecido teria que devolvê-la? Valerie esperava que não.

Três dias longe dos tribunais e Valerie já cometia pequenos delitos. Quem diria?

— Mamãe me perguntou umas dez vezes se eu achava que você estava se protegendo direito — Ronnie comentou, enquanto Valerie se despia para tomar um banho. — Meio esquisito, mas eu só sorria e acenava com a cabeça. 

— Mas é claro que estou. Tomo pílula todos os meses!

— Ah, eu respondi isso uma vez. Falei: mãe, Val é a pessoa mais organizada dessa casa. Acalme-se, senhora.

Valerie escondeu-se atrás da toalha, erguendo uma sobrancelha para a irmã.

— Você chamou a mãe de senhora? 

— Uhum. Chamei. E ela quis me fatiar em duas.

Valerie gargalhou com a resposta da irmã, finalmente entrando debaixo do chuveiro. Algo dizia que precisava se acalmar um pouco, que não era saudável pensar tanto assim numa pessoa. Porém, Alex era tão doce que qualquer pensamento que estivesse relacionado a ele vinha acompanhado de um sorriso. 

Mais do que fazer outras pessoas felizes, Valerie gostava de se sentir feliz. Se a boca fala do que o coração está cheio, como poderia fingir um sentimento? Ela era capaz de fingir ser algo que não era?

Não. Não, Valerie. Valerie era autêntica. 

Ela abriu um sorriso com a lembrança. Jamais tinha estado com uma autoestima tão boa.

Viu só? Impossível desvencilhar.


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