Roderick e seus doze irmãos escrita por Wi Fi


Capítulo 4
Sangue e brutalidade


Notas iniciais do capítulo

Hello! Este é um capítulo que eu também me diverti muito escrevendo. Vamos saber mais da Blair!



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Estava feito. As cartas haviam sido escritas, para lá e para cá, e o rei José VII havia concordado em dar a mão de sua irmã, a princesa Francisca, em casamento para Roderick Donne.

A cada carta que Fionna trocava com o rei, Roderick sentia sua ansiedade crescer. Haviam lhe dito para não escrever demasiado para Francisca –o sucesso da aliança política entre Daire e Saye estava naquele casamento, e quaisquer desconfianças acerca da farsa que pretendiam apresentar ao resto do mundo poderia causar sua destruição. Tudo era parte de um plano, Roderick tinha que se lembrar. Aquele não era um casamento estritamente por amor.

Se permitiu escrever uma pequena carta para ela, entretanto. Sentia falta de Francisca, de seus comentários espirituosos, de sua risada. Tinta em papel não as substituiriam, nem matariam as saudades, mas seriam um paliativo.

Escrever cartas era tudo o que Roderick tinha feito naquela semana toda. Ficara surpreso em descobrir que a lista de pessoas que não odiavam Saye era maior do que ele esperava. Fionna o havia encarregado de contactar todos os possíveis aliados, e discretamente mencionar que com o novo governo de Fionna, talvez estivessem a visar um futuro no qual os pássaros de Saye pudessem voar mais livremente. Também escrevia para os amigos em Saye, convidando-os para seu casamento.

No meio disso tudo, havia esquecido de comunicar uma pessoa: Blair. Entretanto, se tivesse que pegar numa pena novamente, Roderick só o faria para espetá-la nos próprios olhos e se livrar do tédio. Decidiu usar Blair como uma desculpa, e partiu em viagem para o local que sua irmã habitava havia dezoito anos – o convento das Irmãs da Claridade.

Era lá que ele se encontrava, três dias de viagem depois, numa tarde úmida de degelo e orvalho. O convento se encontrava na lateral da montanha mais baixa da Serra Piedosa, a cordilheira que ocupava o Oeste de Saye.

A subida até o convento tinha-lhe ocupado algumas boas horas, e a única coisa que impediu Roderick de cambalear até os portões foi o orgulho. A dor nas suas costas o afligira na subida, e agora latejava na base de sua coluna.

O convento erguia-se colado à escarpa da montanha, e acabava na beira de um penhasco, com suas torres e edifícios subindo perigosamente pelo terreno íngreme. As Irmãs da Claridade viviam lá havia séculos e séculos, desde que Saye era Saye. Uma muralha protegia a sua fronte, voltada para o Sul e seu lado voltado para Leste, uma vez que a face Oeste estava na montanha e a face Norte acabava no precipício.

Ver a enorme serra que se erguia, atrás e pelo horizonte, dava a Roderick a mesma sensação de paz que ele sentia ao estar em alto mar, onde não havia nada além de água ao seu redor. A imensidão da natureza podia assustar muitos, mas Roderick a apreciava. Lembrava-o de que seus problemas eram pequenos, e que ele também não era nada para as rochas e ondas gigantescas. Era estranhamente reconfortante.

Os guardas da muralha eram os únicos homens que frequentemente interagiam com as religiosas. Roderick anunciou quem era, e suas intenções de visitar a irmã. Os guardas acenaram-lhe, e abriram os enormes portões de madeira, que o levaram para o interior do pátio frontal, e em seguida, para uma sala de visitantes escura e abafada na lateral do pátio.

Um guarda o vigiava enquanto ele esperava pela chegada de Blair, sentado numa cadeira desconfortável. Uma pequena janela no topo da parede que estava voltada para o pátio permitia alguma luz e ventilação entrarem na sala. Tirando isto, o local parecia uma cripta. Longos minutos se passaram até que a porta se voltasse a abrir, e uma figura encapuzada entrou.

— Obrigada, senhor, pode nos deixar a sós agora. A madre superiora me deu este privilégio – disse a figura, e foi só pela voz familiar que Roderick conseguiu reconhecer a irmã.

O guarda saiu sem pronunciar uma palavra, e Blair sentou-se na cadeira à frente da cadeira do irmão – eram estes os únicos dois móveis na sala – e tirou o capuz que cobria seu rosto.

— Roderick, fico feliz em ver-te depois de tanto tempo – disse ela.

Não havia nenhum tom de surpresa ou felicidade em sua voz, era como se estivesse apenas a constatar um facto. Roderick não pôde responder, entretanto, porque assim que ela abaixara o capuz ele havia levado um susto.

— O que aconteceu com o teu cabelo? – perguntou ele, ultrajado.

Ela tinha a cabeça raspada, com o cabelo muito curto, como o de um homem.

— Ah, isto – Blair passou a mão pelo cabeça, distraída – Não é nada. Foi só uma demonstração de abnegação que fizemos este ano… sinceramente, acho que prefiro.

— Até que eu e tu estamos parecidos – comentou Roderick, ainda tentando processar a nova imagem de sua irmã.

Isso conseguiu extrair um riso dela. Ela tinha tinta em suas mãos e em seu rosto, sinal de que tinha andado ocupada com algum manuscrito ou iluminura. Tirando o cabelo sumido, Blair pouco tinha mudado desde a última vez que Roderick a vira, tendo ganhado apenas algumas rugas na face. Sempre haviam dito que ela era a mais bonita das filhas do Conde Ewan. Parecia um pecado condená-la a uma vida modesta, vestida naqueles feios trajes castanhos de plebeia.

— O que te traz aqui, irmão? Imagino que não fizeste a viagem toda apenas para admirar a vista da montanha e reclamar do meu cabelo – perguntou Blair, agora parecendo mais descontraída.

— Bem, para ser sincero, trago grandes notícias, Blair. Eu vou me casar com uma princesa do Sul.

Blair sorriu levemente e tomou uma das mãos de Roderick, de maneira quase carinhosa.

— Oh, Roderick, isto é excelente! – ela exclamou, agora sorrindo abertamente – Fico muito feliz em saber que finalmente vais ter alguém contigo. Ficavas tão solitário nas tuas viagens, mais um pouco e eu sugeria-te que te juntastes a um monastério também.

— Acho que se eu pisasse em um monastério eu iria entrar em combustão…

Blair riu de novo, e Roderick sorriu também. Conseguia ver a velha Blair ali, a Blair com quem crescera em Gayern, uma eternidade atrás.

— Quando vai ser o casamento?

— Em um mês. Francisca não deve demorar para chegar, e tudo será feito em Gayern, nas festas das colheitas. Vai ser uma festa e tanto.

Blair abaixou a cabeça, um pouco melancólica.

— Saiba que quando quiseres trazer a tua noiva para conhecer o lado selvagem de nosso belo país, eu estarei parada aqui à vossa espera – disse, e depois franziu a testa – Mas eu tenho de perguntar, e desculpe-me por ser indelicada… uma princesa, Roderick?

Ele ergueu uma sobrancelha.

— O que queres dizer com isso?

— Nada, é só que… parece muito acima do teu nível, se é que percebes. O que uma princesa do sul iria querer conosco?

Mesmo sabendo que não havia ninguém na sala além deles, Roderick instintivamente olhou ao redor, e espreitou pela janela para garantir que não havia nenhuma freira a espiá-los.

— Daire quer nos ajudar, Blair – Roderick sussurrou, se inclinando para mais perto da irmã – Eles apoiam nossa causa, e vão nos fornecer dinheiro e homens quando a hora chegar. Meu casamento é o selo de nossa aliança, Fionna e o rei deles acordaram tudo.

Blair assentiu, seriamente.

— O que isso significa… para a família?

— Seremos governantes de facto, como já somos…, mas agora de um reino.

— Seremos a monarquia, então?

Roderick deu de ombros.

— Ou podemos aderir à legislação antiga, de clãs – ele respondeu, simplesmente – Fionna ainda não chegou neste ponto.

Foi a vez de Blair ficar confusa.

— Por que Fionna está a arranjar isto tudo?

— Como assim?

— O que o pai pensa desta aliança? Desta revolução? Não estão a fazer isso pelas costas dele, pois não?

Alguma coisa ali falhava. Roderick remexeu-se na cadeira, com uma possibilidade desagradável formando-se em sua mente. Ele torceu para estar errado.

— Blair, quando foi a última vez que recebeste uma carta de Gayern? – perguntou.

Ela pensou um pouco, apoiando o queixo na mão.

— No outono, perto do dia dos meus anos – respondeu – Por quê?

Oh não. No outono? Não seria propriamente estranho. As estradas para o convento eram perigosas, tanto pelo efeito imbatível da natureza, quanto pelos eventuais bandidos que espreitavam pelos bosques. O mensageiro poderia ter morrido a meio da viagem. Roderick respirou fundo e passou a mão pela testa, pensando em suas próximas palavras. Havia agora preocupação nos olhos de sua irmã.

— O pai… o pai morreu, Blair. Faz dois meses – ele contou, depois de respirar fundo.

O queixo dela caiu, e ela cobriu a boca com as mãos, em choque.

Dois meses? O pai está morto há dois meses? Como é que eu não soube disso?

— E-eu não sei. Fionna enviou cartas a todos os irmãos, eu voltei de Daire por causa disso… não cheguei a tempo do funeral…

Lágrimas escorreram dos olhos de Blair, e ela enterrou o rosto nas mãos. Roderick tirou um lenço do bolso do casaco, e lhe ofereceu. O choro, misturado à tinta, deixara suas bochechas azuladas. Blair aceitou o lenço, e depois de alguns instantes, respirou fundo e secou sua face.

— Queria ter me despedido dele – murmurou Blair, com a voz ainda um pouco trêmula – Queria lhe ter dito… queria lhe ter dito que não guardava rancor. Eu acho que isso o magoava muito.

— Muitas coisas magoavam o pai, Blair. Ele não era uma pessoa fácil – assegurou Roderick.

— Eu sei. Mas eu ainda sou filha dele. Não queria que acabasse assim.

Um silêncio desconfortável tomou conta do ambiente, enquanto Blair dobrava e desdobrava o lenço. Roderick não tinha nada a lhe dizer.

— O que foi que levou ele? Houve outra peste? – perguntou ela.

— Os nossos médicos não souberam dizer. Febre, tosse com sangue…

— A mesma coisa que levou a mamãe?

— Não sei. Talvez – respondeu Roderick, sentindo também sua voz embargar – Isso seria poético, não?

— Uma poesia muito trágica, mas sim.

Mais algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto, que ela voltou a secar furtivamente, desviando-se do olhar do irmão.

— Quem ficou em Gayern? – Blair perguntou de novo.

— Só os bastardos, mais Tom, Elsbeth e a mãe deles. Cat e Moira estão com a mãe delas desde o funeral, eu ainda não as vi. Também não tenho notícias da Griselda desde Daire, mas Fionna deve ter falado com ela.

— O marido da Griselda ainda está vivo?

— Vivo e saudável. Infelizmente.

Blair bufou.

— Imagino que venham todos para o teu casamento, sim?

— É o que eu queria – respondeu Roderick, dando de ombros – Todos os Donne… bem, quase todos os Donne, juntos depois de tanto tempo, seria um presente de casamento e tanto. Sem falar no que isto significa para nossa… causa.

Blair balançou a cabeça, lentamente, e contorceu o rosto numa expressão dolorida.

— O pai nunca quis uma luta pela independência, e a primeira coisa que a Fionna faz após a morte dele é começar planos para fazer exatamente isso…

— O pai nunca teve as forças para a luta, Blair, mas tu és cega se achas que a luta não é o que ele mais queria na vida – Roderick retrucou.

— Tu não sabes o que ele queria. Ele nunca tocava no assunto.

— Isso para mim já é evidência o suficiente.

— Foi a guerra que matou boa parte de nossa família e centenas de sayenos – Blair insistiu, parecendo quase ofendida – Faz menos de setenta anos, nós somos uma geração sem avôs, e vocês acham que está na hora de repetir tudo de novo?

— Em oposição a quê? Deixar os últimos duzentos anos de opressão continuarem? A humilhação e a violência de Breator contra nós é preferível? Os sayenos que eles mataram na última guerra terão morrido em vão? Os assassinatos de nosso avô e nossos tios avós serão esquecidos?

— Matar mais pessoas não resolve nada!

Os dois estavam numa discussão aos sussurros, querendo gritar, mas sem poder. Roderick batia um dos pés no chão, como se aquilo fosse descarregar alguma da apreensão e tensão que sentia.

— Se for para matarem alguém – Blair retomou – que matassem o rei de Breator de uma vez, e não centenas de camponeses analfabetos que nem sabem por que estão a pegar em armas.  E mesmo assim, isto não é justiça, é vingança.

— É de vinganças que a História é feita – Roderick disse.

— Não, é de vinganças que histórias são feitas. A História é feita por pessoas, e os líderes que as comandam. Por isso pense bem para o quê tu e Fionna estarão a liderar nosso povo.

— Fionna não é burra, Blair. Ela sabe disto tudo. Ela conhece a história de Saye melhor que qualquer um. Todos os conselheiros do pai estão de acordo. Isto é o desejo do povo.

— Eu nunca disse que ela é burra. Mas digo que vocês estão cegos pelo poder, e pelo rancor, e o povo deseja aquilo que vocês dizem que eles desejam – Blair interrompeu – Se há algo para aprender com a vida do pai, é que o rancor não vos leva a lugar nenhum. Sangue e brutalidade, é só isto que acontece na guerra, Rod. Já paraste para pensar que teus filhos poderão morrer numa guerra que tu começaste?

Foi a gota d’água. Roderick se levantou da cadeira, e suspirou pesadamente.

— Esta discussão não vai a lugar nenhum. Eu respeito tuas opiniões, mas tu não tens direito de intervir em nossas decisões – disse – Abdicaste do teu lugar na linha de sucessão e na nossa família para te esconderes do mundo todo aqui. A guerra não vai atingir as montanhas, tu podes passar os próximos anos sem ouvir uma palavra do que se passa, mas não vai mudar o facto de que nós estamos a lutar pelo país.

Blair levantou-se também e cruzou os braços, encarando Roderick como se ele fosse novamente uma criança birrenta que precisava de um sermão, mas não disse mais nada por algum tempo. Sua expressão era suficiente.

— Está bem, concordamos em discordar. Obrigada por me visitar – ela cedeu, com um suspiro – Eu sinto a falta de vocês todos, Rod, acredite ou não.

— Se tu me disseres neste momento que queres voltar para casa, nós dois saímos agora pelo portão e eu te trago de volta para Gayern – Roderick ofereceu - Os deuses…digo, Deus sabe que Fionna ficaria contente em estares de volta.

Blair balançou a cabeça.

— Minha vida no convento tem mais sentido do que teria na corte. Eu só queria poder ter estado com o pai em seus últimos momentos. Ele não merecia tudo que lhe aconteceu. E eu te desejo tudo de bom em teu casamento – ela disse – Casamentos costumam ser desastrosos para os Donne, mas tu és mais esperto que a maioria. Acho que vais ficar bem.

— Obrigado, Blair – Roderick agradeceu.

Os dois trocaram um olhar compreensivo, e um aceno de cabeça que traduzia mais do que as palavras poderiam dizer. Compaixão, ou pena, pelas suas respectivas situações. Um tratado de paz.

 Sinos tocaram lá fora, e era hora de Blair ir.  Ela voltou a cobrir-se com o capuz, e despediu-se do irmão com uma pequena reverência. Parou na porta, e disse:

— Mande minhas lembranças a todos que encontrares. Tome cuidado na estrada, está bem? E escreva-me quando eu tiver mais sobrinhos a caminho.

Saindo do convento, sozinho e irritado, Roderick voltou a olhar para a cadeia de montanhas ao seu redor. Elas agora lembravam-no do mar de tempestade, prestes a afundá-lo.


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