Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 2
— O segundo dia de trabalho




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— O segundo dia de trabalho

Quando o relógio marcou cinco horas da manhã e o despertador tocou, Kin imediatamente levantou da cama e começou a se arrumar para ir ao trabalho. Faltando apenas uma bota para estar pronta, a crise existencial veio. Ela desceu para a sala e se largou em cima do sofá. Dali ficou olhando para o teto. Pensando. Sentindo. Toda vez que tentava sair para continuar se vestindo, uma pressão emocional imensa a convencia a permanecer deitada. Era como se uma casa, um edifício inteiro — ou os dois — a esmagasse.

Tinha mesmo que ir? Os conselheiros deixaram bem claro que não precisavam dela para gerir o reino. Que ela não tinha competência, que foi um erro de Hayate. Para que iria? Só se estressaria sem motivo. Com o pouco que dormiu naquela noite, acabaria agredindo alguém. O primeiro que fizesse mais alguma piadinha sobre sua idade. Perderia a calma, mostraria que eles estavam certos. Pior: choraria na frente deles. Deixaria a impressão de que nem para líder dos retalhadores de elite serviu. E talvez eles estivessem certos mesmo. Não servia para liderar. Foi enquanto encabeçava a equipe de elite que Kenichi morreu, afinal.

Por que Hayate lhe daria toda essa responsabilidade? Essa pergunta a perturbou a noite toda. Nem nos sonhos a deixou em paz. Kin não passava de uma retalhadora muito poderosa e talentosa. Era apenas força bruta, todo mundo sabia disso. Ao menos era o que achava antes. Talvez Hayate não a conhecesse tão bem. Arashi, sozinho, poderia lidar muito bem com aquilo. E o que deu nos conselheiros para incumbirem Arashi da missão em Taurus e deixá-la ali? Na sua opinião, eles só fizeram isso para torturá-la. Sabiam que ele não cairia nos jogos mentais deles, que saberia até dar respostas a altura. Queriam brincar com ela para fazê-la desistir. Viram nela o elo mais fraco.

Começou a pensar em sua mãe. Várias vezes a viu descer com pressa de madrugada, se arrumando enquanto descia aquelas mesmas escadas, muitas delas bastante aflita. Se aquilo foi muito até para a lendária guerreira Yume, o que a fez pensar que conseguiria? Só pode ter ficado louca. Aqueles coroas conseguiram mexer com a cabeça da retalhadora que não fraquejou na frente dos lutadores mais temíveis do universo. O comprometimento inerente ao posto tirou o sono da mulher que enfrentou Kaira e Santsuki. Mensurava agora quão arrogante foi quando aceitou liderar Órion sem questionar.

Deixou o braço cair para o lado, fora do sofá. Seus dedos tocaram o tapete amarelo mostarda de sua sala de estar. Seu rosto ficou inexpressivo, parecia um peixe fora d'água. Um suave vento frio soprou sua camisa branca com listras rosas de mangas longas. Não queria sair. Achava que seu lugar era ali, deitada, mas a disposição do reino quando ele precisasse de seus poderes. Não tinha mais nada a oferecer.

— Anda logo, senta aí, cê vai se atrasar! — Haru, com sua bota na mão, a chamava. Ele vinha descendo as escadas porque também tinha que sair cedo e logo que a viu deitada entendeu exatamente o que aconteceu. Naomi avisou que isso podia acontecer. Conseguindo que a loira se sentasse, ofereceu a bota para ela e disse: — Estica o pé logo, primeira ministra.

Roboticamente fez o que o ruivo mandou. Com a mesma cara de tacho de quando deitou no sofá. Olhou-o fracassar em amarrar os cadarços, fazer uma bagunça inacreditável neles. Normalmente teria rido muito, mas estava mesmo sem vontade nenhuma. Ele desistiu depois de mais alguns minutos tentando e desfez todos os nós. Encarou-a como se não a reconhecesse. Realmente nunca a viu daquele jeito. Ombros para frente, olhos no nada. Não tinha nada a ver com a Kin que ele cresceu admirando.

Se entreolharam. A viu finalmente sorrir, com visível esforço.

— É uma gracinha você tentar me ajudar, maninho, mas eu acho melhor eu ficar. — Disse, desanimando-o. — E você tem que ir logo, sabe que a Yue detesta atrasos.

Haru deu de ombros.

— Eu me explico pra ela, ela vai entender. Qual é, nossa missão não é tão importante quanto motivar a primeira ministra a ir pro trabalho! — Argumentou. Kin sorriu e abaixou a cabeça, ele prosseguiu: — Vamo lá.

A loirinha respirou fundo e desviou a atenção para o topo das escadas, de onde muito viu seus pais descerem nervosos.

— Tenho medo de... sei lá, de cometer um erro, de fazer alguma coisa que decepcionaria a mamãe. — Confessou.

O ruivinho sorriu e andou até a porta. Realmente estava muito atrasado, Yue o mataria.

— Eu não conheci a mamãe, mas pelo que você me fala dela, não acho que ela ficaria decepcionada com você por cometer um erro. Ela ficaria decepcionada se você desistisse no segundo dia de trabalho. — Opinou. Colocou a mão na maçaneta para abrir a porta e sair, mas antes avisou: — Naomi tá vindo pra cá, amarra logo essa bota, ela não vai ser tão gentil quanto eu.

Claro que ele tinha toda a razão, tanto sobre Naomi quanto sobre sua mãe. Olhando para o passado agora, lembrou de uma vez que desceu para a sala no meio da noite e a viu ali, sentada naquele exato lugar, com uma expressão idêntica à sua. Era ainda mais nova do que Haru nessa ocasião. Yume pouco lhe contou sobre o motivo de estar assim, mas depois de uns breves minutos conversando com a filha, saiu de casa como que revigorada. Parecia incrível que até a grande Yume tivesse enfrentado inseguranças no trabalho. Mas aconteceu. Se ela tivesse desistido de tudo só por causa disso, de palavras desencorajadoras, maldosas, a Terra de Áries poderia hoje nem existir.

Naomi chegou, abriu a porta e se deparou com a versão de sua amiga que estava acostumada a ver. Abriu um sorrisão.

— Nem precisei dizer nada! Eu sou boa! — Se gabou. Kin riu.

— Vamos antes que a minha cabeça comece a me sabotar de novo. —Falou, jogou a bolsa no ombro e saiu.

Ainda não respondeu para si mesma o motivo de ter sido escolhida para chefiar uma nação tão importante, o que descobriu, no entanto, foi uma razão para persistir: as pessoas que amava. Aquela posição era sua chance de ver por si mesma e de garantir que tudo no seu reino aconteceria da melhor forma.

Desde que escapou da prisão intergaláctica na qual o trancafiaram quando ainda era apenas uma criança, Toshinari não desceu em planeta nenhum. Ficou voando pelo cosmos, saltando de asteroide em asteroide. Vez ou outra aterrissava numa colônia espacial para pedir água, comida, conseguir roupas novas e tomar um banho. Mas não teve muito descanso no último mês. Só sabia que era a Terra de Áries o planeta mais próximo de suas coordenadas e mal via a hora de chegar lá.

Antes de ir adiante e não parar mais até chegar em seu destino final, parou numa pequena colônia, instalada, porém, em um asteroide frio e consistente. Povoavam-na algumas das pessoas mais gentis que ele já conheceu. Deram-lhe de comer, de beber, de vestir e, não contentes, ensinaram-lhe a rota mais fácil para a Terra de Áries. Saindo na manhã seguinte, se seguisse as recomendações deles chegaria lá no fim da semana. Nunca ficou tão empolgado.

Um fato importante a ser mencionado sobre essas colônias é que elas eram construídas sobre asteroides e que não passavam de simples barracas, só que envoltas em bolhas de oxigênio e outras propriedades artificiais. Quem as habitava eram homens e mulheres que se voluntariavam para experiências científicas financiadas pelo governo, muitos em parceria com empresários. Tinham por ambição fazer do espaço sideral um lar acolhedor, dominá-lo, acabar com sua hostilidade.

Toshinari acabava de beber uma sopa quando uma senhora correu barraca adentro. Estava aterrorizada. Como ele, todos a olharam, esperavam ela dizer o que a deixou daquele jeito. Por ser o único retalhador ali dentro, Toshinari foi o primeiro a notar a presença ameaçadora e se pôr de pé. Conhecia aquela energia. Sim, tinha certeza de que sabia a quem ela pertencia. A pessoa que podia levá-lo para a Terra de Áries num piscar de olhos. Andou ansioso para fora da barraca antes de ouvir da mulher quem a assustou.

— Santsuki Raikyuu. — O saudou, fitando-o de cima a baixo. Dez metros os mantinham afastados.

— Adolescente, franja loira, alto, magro... — Respondeu Santsuki, abotoando com uma das mãos o terno negro que trajava. — Você deve ser Toshinari, a criança que quase matou o Kaira.

— É. — Toshinari confirmou, encurtou a distância entre eles a cinco metros e continuou: — E você vai me teletransportar pra Terra de Áries, se não quiser morrer aqui.

Houve um demorado silêncio. Santsuki desavisadamente irrompeu numa alta gargalhada, acabou com a quietude. Toshinari se irritou e cerrou os punhos.

— Desculpa, desculpa, eu não quis rir da sua cara... — Alegou. Quando recuperou a seriedade e seu rosto perdeu a vermelhidão por causa do tanto que riu, prometeu: — Tá bem, agora eu vou ficar sério.

— Qual é o problema? Acha que eu não poderia acabar com a sua raça? — O desafiou.

— Não, não me entenda errado, eu sei que poderia! Em circunstâncias normais. Mas essa daqui não é uma circunstância normal... É, você ainda é muito poderoso, mas não luta ou treina há tanto tempo que está sem prática, vai levar um tempinho pra conseguir voltar a se mexer igual antes. — O informou. — Mas não se preocupe, o tio vai fazer o que você pediu. Foi pra isso que eu vim! Vem, chega mais.

Toshinari hesitou.

— Por que vai me ajudar? — Quis saber.

— Porque as coisas andam meio chatas por lá desde que Kikuchi, Kazu e Kurama morreram, quero ver se você agita as coisas por lá um pouco. Sabia que eu libertei o Kurama, há pouco mais de um ano? Tem que ver a confusão que rolou lá no Reino de Órion por causa disso!

Aceitou a proposta de Santsuki, passeou até ele. No entanto, achou bom o facínora ficar sabendo:

— Não se iluda pensando que vou provocar o caos por você ou que vou te ajudar em alguma coisa, entendeu? Eu não vou lá pra lutar com ninguém, vou pra viver em paz.

Santsuki o tocou no ombro, liberou energia e, enquanto suas figuras eram ofuscadas por um forte clarão azul misturado com correntes elétricas, concordou:

— Eu também não vou lá pra lutar... Alguém melhor do que nós dois está indo fazer isso.

No minuto que o fulgor se desfez, os dois desapareceram. Já não estavam mais ali.

A tarde no Reino de Órion já encontrava seu fim quando Haru e Yue localizaram o alvo que saíram cedo para procurar. A dupla achou melhor se dividir quando o avistou vagando solitário por uma extensa rua, o ruivo foi para o telhado do prédio à esquerda e a garota para o da direita. Por mais distantes que estivessem dele, mesmo invisíveis graças aos poderes de Haru, ambos permaneciam tão sutis quanto possível. Foi o mais próximo que chegaram dele em uma semana, não podiam deixá-lo escapar. Prometeram para Kin que o pegariam hoje.

O retalhador mais estranho que já viram. Vestia um grande manto preto, um chapéu de mesma cor que cobria toda a sua cabeça e uma máscara amarelada com um longo bico semelhante ao de uma arara. Como um médico da idade média. Pela forma como caminhava, não tinha pressa alguma de chegar ao seu destino. Ou sabia que foi rastreado e só estava esperando eles irem para cima. Uma trilha de sangue fresco seguia a ponta da lâmina da foice que ele arrastava pela terra.

Parou sua marcha quando chegou no fim da rua, ao se deparar com um cruzamento que dava para três outras vias. Yue acenou para Haru. Concordaram que ela faria a abordagem. Antes do meliante dar mais um passo, a garota desceu lá e, pelas costas, pôs a espada que portava no pescoço dele. O rendeu. Aparentemente. Mostrando-se mais veloz e letal do que seus dois jovens adversários imaginavam, o assassino girou e a atacou com a foice, tudo tão rápido que ela foi obrigada a se defender usando a arma com a qual pretendia pará-lo.

Tem início uma impassível troca de ataques. De refém, o encapuzado se converteu na ameaça. Yue e Haru não esconderam a surpresa. Como alguém podia se mover tão rápido vestindo roupas como as dele? Ela tentava responder essa pergunta para si mesma, procurando nele alguma brecha, verificando se, de qualquer forma, aquelas vestes restringiam os movimentos dele, se o atrapalhavam. Foi com esse intuito que modificou seu padrão de golpes, moveu a espada na direção das pernas do assassino mascarado. O alvo recuou, um tanto desajeitado por causa dos trajes que o cobriam.

É agora, Yue alçou a lâmina para a altura do rosto do inimigo, ele escapou da morte por pouco, por tão pouco que teve parte da máscara fatiada e ficou com um corte ensanguentado que subia de seu pescoço até a bochecha. Yue não parou por aí. Após quase matá-lo, ela girou e desferiu um chute contra o peito do misterioso serial killer, atingindo-o em cheio. Arremessou-o contra a parede e o viu cair sentado. Quando reparou que o oponente ia ficar de pé e insistir na luta, correu lá e acertou uma joelhada na testa dele. O desmascarou.

— Você... não bate com a descrição das testemunhas! — Exclamou, surpresa. — Quem é você?

O derrotado riu.

— As testemunhas podem ter ficado confusas, podem ter mentido pra vocês por causa do medo. Vai saber. — Replicou e deu de ombros.

Haru desceu até lá. Tão confuso quanto a amiga.

— Ele não tem nada a ver com o retrato falado das vítimas. Quem será que é esse cara? — Perguntou, caminhando até os dois.

— Sou só um retalhador se vingando. — Olhou para Haru. — Mas acho que acabou, vocês venceram.

— Beleza! — Haru festejou e bateu punhos com sua companheira. Ela não se mostrava tão satisfeita quanto ele. O bandido lhe pareceu tranquilo demais para quem acabou de ver os planos de vingança irem água a baixo. — Vamo logo levar esse cara e contar pra Kin, isso vai levantar a moral dela!

— Foi demais, Yue! — Poucos passos longe, Kyoko comemorava a vitória dela. Pela forma que se vestia, com as roupas da equipe de líderes de torcida, acabava de sair da escola. — Eu não imaginava que você lutava tão bem!

— Kyoko! Você não devia estar aqui, é muito perigoso! — Yue a repreendeu.

Aconteceu o que a retalhadora temia. O adversário se aproveitou de sua distração, correu até Kyoko e tentou fazê-la de refém para ameaçá-los, mas antes que ele chegasse nela Haru o puxou com força pela gola da camisa, o atirou para trás e Yue o nocauteou com um chute. No final, ninguém estava satisfeito. Haru pensou melhor e, sem ter que conversar com a amiga, concluiu o mesmo que ela. Será que havia mais por aí? Por hora, foi o bastante. Prenderiam o assassino e dariam a boa notícia a Kin. A loira precisava de uma boa notícia. Esperavam pelo menos conseguir tirar alguma informação daquele que capturaram.


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