Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 1
— Você se foi e eu tive que ficar




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Você se foi e eu tive que ficar 

Kin Iminari descobriu naquela tarde como era ser uma garota de dezoito anos liderando o reino mais poderoso da Terra. Não viu nada do glamour esperado, imaginado. A honra, a glória e o poder podiam ser atraentes, a realidade era outra. A pressão sobre quem assumia o cargo acabava por ofuscar tudo isso. Depois de compartilhar com os outros onze ministros os seus planos para a nação, só ouviu desaforo e palavras sarcásticas como resposta.

A reunião com eles foi um verdadeiro teste de paciência para ela. Entre os atributos que a faziam conhecida, não constavam "calma" e "frieza" quando desrespeitada. A sorte dos velhotes foi que Keiko estava ali para controlá-la.

Alguns sorrisos falsos e frases feitas depois, despediu-se dos coroas. Keiko os guiou até a porta de saída da grande sala branca de reunião, dando à loira tempo para respirar e esfriar os ânimos. Estava ali por Kin porque já passou pelo que ela estava passando: sabia como era difícil o primeiro dia na liderança de um reino, especialmente sendo jovem. E porque a conhecia. Se não estivesse ali, provavelmente ela teria batido em alguém. Ou em todo mundo. Torcia pelo sucesso de Kin, afinal quem lhe confiou esse cargo foi Hayate, um grande amigo seu. Isso queria dizer que não existia ninguém melhor para ele.

Quando o último participante da reunião saiu, deixando-as a sós, Kin nervosamente pôs, com as mãos, os cabelos encaracolados para atrás dos ombros e respirou fundo. Depois, segurou a cintura e parou o cotovelo do outro braço em cima das costas da cadeira na qual se sentou durante a conferência. Vestia uma camisa social vermelha amaranto de mangas longas e uma saia preta, sapatilhas. O mais formal possível.

Foi respeitosa com todos, gentil na maior parte do tempo. Começou a perder a compostura lá para o quinto comentário irônico sobre a relação entre sua idade e os eventos históricos mencionados.

Com seus trinta e dois anos, Keiko ainda tinha presente na memória a sensação de lidar com aquela gente. Seus expressivos olhos cor de mel deixavam-na ver no rosto de Kin a frustração que sentiu um dia. Bateu a porta e foi sutilmente até a garota.

— Ei. — A chamou, tocando-a de leve no ombro. Tinham praticamente a mesma altura, Kin talvez fosse mais alta. Conseguindo a atenção dela, perguntou: — Tudo bem?

A jovem primeira ministra pensou bem antes de responder. Não que não confiasse em Keiko, é que tinha por regra não demonstrar fraqueza na frente de um colega de trabalho, menos ainda na de um superior. Jogou os olhos castanhos escuros para um lado, depois para o outro, por fim mirou sua chefe com eles, fez a expressão de quem perguntava "por que não estaria?". A Guardiã da Terra se viu nela. Sabia que ela não ia ser sincera.

— Tudo. — Mentiu. Só porque sabia que ia falar com uma amiga, abriu uma pequena fresta para o que realmente sentia: — Muito obrigada por ter vindo... sem você aqui, eu não sei o que seria de mim.

— Imagina. — Replicou. — Quando assumi o Reino de Bellatrix, sua mãe estava lá na sala comigo. Só retribuí um favor.

Kin resolveu brincar para quebrar a tensão:

— Usei todo o meu charme com eles e não adiantou de nada! Isso quer dizer que eles são duros mesmo na queda, porque eu sou bem charmosa!

As duas deram risadas. Keiko juntou os papéis que estavam em cima da mesa, colocou-os dentro da bolsa bege clara de Kin e a entregou para ela.

— Essa é a Kin que eu conheço! Não se cobre muito, a reação deles não tem nada a ver com você. Tenho certeza de que conseguirá o respeito deles até mais rápido do que eu. — Foi sua previsão. Bem baixinho, a aconselhou: — O segredo é ser mais dura! Tá tudo na entonação.

— Entendido. — Riu e segurou a bolsa pelas alças.

— Vou pra cafeteria, você vem? É por minha conta.

— Obrigada, mas minha amiga Naomi ficou de vir aqui, vou ficar mais um pouco. — Educadamente rejeitou a oferta.

Sozinha finalmente, desistiu da fachada de autoconfiança que teimosamente exibia. Física e emocionalmente. Começou a pensar se eles estavam certos no que insinuaram. Se em breve cometeria algum erro muito grave, se não estava a altura de tais discussões, se não seria melhor apenas posar de primeira ministra para o público enquanto os mais velhos conversavam sobre o que realmente importava. Se não passava de uma criança. Uma verdadeira batalha de sentimentos se dava dentro de seu coração. A raiva contra a tristeza. Não sabia o que queria mais: chorar ou jogar longe alguma daquelas cadeiras.

Sua batalha interior terminou em empate. Quando lágrimas desceram de seus olhos, deu uma mãozada na cadeira em cima da qual apoiava o cotovelo e jogou-a longe. Pensou em Hayate. Por que ele faria aquilo? Por que daria um cargo tão importante pra uma menina de dezoito anos? Confiar-lhe seu reino amado. Pensou também em Arashi. Péssima hora para ele fazer uma viagem interplanetária. Mal via a hora do guerreiro glacial chegar. Pensando melhor, não devia tê-lo deixado ir. Devia ter ido no lugar dele. Ele teria lidado com aquela situação melhor do que ela. Ao menos não estaria chorando e jogando as coisas longe.

Colocou a bolsa em cima da mesa e enxugou os olhos com o braço. A vontade que tinha era de quebrar a sala inteira, de usar seus poderes para destruir tudo. Sempre foi uma retalhadora orgulhosa, nunca deixou um insulto passar batido. Em toda a sua vida, não abaixou a cabeça nem nos momentos que a morte fora mais certa. Hayate sabia disso. A conhecia muito melhor do que Keiko. Como ele não pensou que esse traço de sua personalidade a atrapalharia? Talvez fosse melhor deixar o cargo só com Arashi, não fazê-los dividi-lo. Nunca esteve tão confusa.

Sem fazer muito esforço, virou a grande e pesada mesa da sala. Quebrou-a quase inteira. Os pedaços de vidro dela se espalharam por todo o canto.

— Eu com certeza teria vindo pra cá antes se soubesse que aqui era permitido jogar as coisas pro alto! — Naomi chegou bem em tempo de ver aquele surto de fúria dela, seu gracioso sotaque francês só deixou essa sua fala mais engraçada. Desviando dos cacos de vidro, caminhou até a amiga e a abraçou. — Tá tudo bem agora?

Chorando e rindo ao mesmo tempo, devolvendo o abraço que recebeu, Kin balançou a cabeça em sinal afirmativo. Naomi puxou uma cadeira para ela e as duas se sentaram. Uma coisa que nunca contou à Kin foi que esbarrou com Arashi antes dele partir, ele lhe pediu que ajudasse a loira. Sabia dos sapos que ela precisaria engolir, que a amizade, a conexão das duas, lhe seria de grande ajuda na ausência dele.

— Droga, olha a bagunça que eu fiz aqui! — Reclamou de si mesma, olhando ao redor. — Talvez eu não sirva pra isso...

— A bagunça nós arrumamos em cinco minutos, não ligue pra isso. — A tranquilizou. Prendeu para atrás seus longos e lisos cabelos negros, procurou, com os olhos, uma vassoura pela sala. — Quanto à segunda coisa, para de dizer isso, ouviu? Quem te deu esse cargo foi Hayate em pessoa! Você serve, sim!

— Ele deixou o cargo pra mim e pro Arashi. — Objetou. — Não era pra eu estar nisso sozinha!

— Arashi teve que deixar nosso planeta pra ajudar um planeta amigo. Hayate sabia que cedo ou tarde vocês dois teriam que se separar pra esse tipo de coisa! — Argumentou. — Você acha que seu namorado teria te deixado sozinha se achasse que você não podia segurar as pontas? Se achasse que você não podia, ele teria ficado!

Kin ponderou por alguns segundos.

— Acho que você tem razão. — Concordou.

— Qual é. É claro que eu tenho! — Exclamou, fazendo-a rir. — E o Arashi volta pra casa essa semana, não é como se você fosse ficar sozinha no cargo pro resto da vida, é só não fazer besteira até lá...

— Naomi!

— É brincadeira! — Justificou-se. Kin revirou os olhos em reprovação e sorriu. — Vem, vamos arrumar essa bagunça toda antes de anoitecer.

— Anoitecer? Disse que nós arrumávamos tudo em cinco minutos.

— Eu só disse aquilo pra você parar de chorar. — Se explicou. — Se alguém entrar aqui e vir isso, você assume toda a culpa.

A noite envolveu todo o Reino de Órion com seus braços gélidos. Algumas lojas abriam, outras fechavam, na cidade toda, entretanto, sempre restava alguma funcionando. Entre essas estava a que Yue abriu ano passado. Uma humilde butique, um sonho que realizou graças a um grande amigo. Desde pequena quis ser estilista. Ter uma marca de roupas com a inicial de seu primeiro nome. Aprendeu a costurar sozinha, fez para si mesma suas primeiras peças, suas tiaras e prendedoras de cabelo. Nasceu com a delicadeza, a criatividade e o senso estético que o trabalho exigia.

Terminando de consertar o broche dourado do cordão que uma cliente lhe confiou, Yue o guardou dentro da caixinha na qual a moça o trouxe e a colocou debaixo do balcão de um metro de altura atrás do qual podia ver toda a loja. Os sons que ouviu no firme piso de madeira maciça indicavam que sua jovem ajudante estava voltando dos fundos do estabelecimento. Kyoko Miara. A pobrezinha vinha carregando uma bolsa de roupas maior do que ela. Diferente de sua chefe, não tinha a força sobre-humana de um retalhador, então estava tendo dificuldades com o peso. Muita dificuldade.

Por passar a maior parte de seu tempo com pessoas bem mais fortes do que ela própria, Yue volta e meia esquecia que Kyoko não era uma dessas pessoas. A retalhadora estilista se olhava no espelho distraída, admirando as madeixas rosa claras de seus lisos e curtos cabelos azuis. Retocava com as mãos os clips coloridos que prendiam para atrás os cabelos do lado direito de sua cabeça. Parecia nem suspeitar que sua funcionária precisava de ajuda. De repente olhou para o lado e se deu por si. Antes que a menina caísse junto com a bagagem, a socorreu.

— Desculpinha! — Sorriu sem graça e pegou a carga para si. — Juro que essa foi a última vez que eu esqueci que você não tem nossa força!

Kyoko esticou os braços para ver se a dor os deixava. Apesar da baixa estatura, de não passar muito dos um e cinquenta, sempre foi uma garota de atitude. Uma encantadora moreninha de pele escura como chocolate, volumosa cabeleira castanha encaracolada, chamativos olhos verdes claros, fazia parte da equipe de líderes de torcida do colégio, cantava no coral e tinha as melhores notas. Achava que não havia nada que não podia fazer — até voltar dos fundos da loja de sua patroa com aquela sacola de roupas.

Levou a mão até o ombro esquerdo e o estalou. Não escondeu a cara de dor.

— Fez eu me sentir uma inútil. Eu não sabia como era isso! — Reclamou. Tirou a jaqueta preta que usava sobre a camiseta branca de alças finas para fingir que só não conseguiu porque suas roupas inibiam seus movimentos.

— Agora entende como eu me sinto quando você chega aqui bonitona sem nem precisar de maquiagem! — Yue deixou o lote de roupas atrás do balcão e retrucou. Olhou a hora no relógio de pulso. — Acho que já podemos fechar a loja, tá tão frio e tão tarde que é improvável que alguém venha. 

Foi quando um garoto de cabelos ruivos espetados entrou apressado. Haru Iminari, seu melhor amigo e irmão mais novo de Kin. Uma camiseta preta sem mangas com capuz e uma bermuda bege compunham seu visual de sempre. Não era a primeira, nem a segunda e nem a terceira vez que ele entrava ali assim, mas assustava Kyoko toda vez que fazia isso. Yue já avisou, pediu para ele chegar como uma pessoa normal. Não adiantava falar. Quando percebeu que tinha feito de novo e tentou se desculpar, Kyoko já estava com a mão no peito se recuperando do susto. 

 O que tá feito, tá feito, se justificou. Era tão avoado que se perdesse tempo pedindo desculpas, esqueceria porque veio.

— Dá licença, Kyoko. Foi mal pelo susto. — Passou por ela e foi até Yue. Empolgado, revelou o motivo de sua vinda: — Consegui mais algumas pistas do paradeiro daquele serial killer que a Kin pediu pra gente pegar!

— "A gente"? Achei que ela fosse dar o caso pra Erika. — Yue estranhou.

— E ela ia, mas ontem eu insisti pra ficarmos com ele! — Contou. — Além disso, cê sabe que ela não gosta da Erika. Anda! Se sairmos rápido, acho que conseguimos pegá-lo hoje!

— Tá bem, tá bem, relaxa! Antes vou ter que guardar tudo e fechar a loja, me espera lá na ponte.

— Beleza! — Concordou, depois correu porta a fora.

— Não vá sem mim! — Gritou para ele. 

Kyoko nunca pensou que escutaria tanta loucura. Sim, sabia que as questões e os desafios enfrentados pelos retalhadores eram tão diferentes dos seus que parecia que eles eram de outro mundo, só não imaginava que um dia veria alguém chegar tão empolgado porque ia sair pra pegar um assassino em série. Também não achava que sua chefe fosse tão doida quanto eles. Se ficou assustada? Nem tanto quanto se esperava. Estava muito mais curiosa, mais afim até de fazer parte disso. Sim, queria participar daquela loucura.


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