Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 3
— A comunhão real




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— A comunhão real

No terceiro dia de trabalho, Kin descobriu que adorava crianças. E que esse sentimento era recíproco. Ela teve uma breve reunião com o rei do Reino de Órion, o monarca pediu isso para compartilharem as ideias que tinham para ajudar o país a sair da crise, no final da conversa a esposa dele bateu na porta, pediu licença e entrou na sala com um lindo bebê de colo. Ninguém conseguiu fazer a primeira ministra desgrudar da criança. Vendo a alegria das duas, ninguém nem queria separá-las.

Um sujeito forte, alto, negro, de aspecto e feição amigáveis, com quarenta anos o rei tinha a aparência de alguém de trinta. O homem mais cobiçado da nação. Não só por ser o rei, mas pela beleza de seu rosto, de seus olhos castanhos. A rainha não ficava para trás. Tinha a mesma idade do esposo, duas filhas, mas o corpo de uma menina de dezoito anos, igual ao de Kin. Um belo rosto, olhos verdes claros como duas esmeraldas e volumosos cabelos pretos cacheados. Uma bem nutrida pele caramelo clara. Os dois formavam o casal mais invejado do mundo.

Depois de dançar e voltear os pisos verdes de sua sala inteira com a menina deles nos braços, a loirinha retornou para a mesa onde os pais dela conversavam. A fralda da criança estava cheia, nem teve que contar isso para a mãe dela, o cheiro que infestou a sala falava por si só. Imaginando que a retalhadora iria apenas entregar a bebê, a rainha deixou o marido, esticou o vestido vermelho de renda que usava e se levantou, no entanto, se surpreendeu com o pedido que ouviu.

— A senhora por favor me ensina a trocar a fralda de um bebê? — Disse a primeira ministra. Não havia um traço de fingimento em sua expressão facial ou em sua voz, só sinceridade.

— C-claro, Kin! Mas temos que ir pra um banheiro. — Respondeu a moça.

— Tem um ali do lado. — Sugeriu rápido, apontando a direita de sua mesa.

As duas foram e não demoraram a voltar. Kin aprendeu de primeira. Quando saíram de lá de dentro, a ministra carregava a criança, jogava ela para o alto e pegava. Sorrisos brilhavam entre elas. Aquele era um lado de Kin que o casal real nem imaginava que existia. A campeã das mais conceituadas competições de retalhadores no mundo, a guerreira que com somente dez anos de idade participou da Grande Guerra Interestelar, a ex-líder da equipe dos retalhadores de elite e dona das mãos que manejou espadas que acabaram com temíveis assassinos derretida por um bebê a ponto de fazer a voz de um.

Colocou a garotinha sentada na mesa frente a qual antes dialogava com o respeitado pai dela. Voltou a brincar com a pequenina, rindo e fazendo-a rir. Como se estivessem a sós ali dentro.

— Você tem os olhos da sua mamãe e a cor do seu papai, é a fusão dos dois! Você é tão perfeita! — Exclamava, mexendo os bracinhos da pequena. Há muito tempo não sentia uma felicidade tão pura, limpa de angústias.

Por mais que gostassem do que viam e escutavam, e trocassem olhares de admiração durante todo o tempo da interação das duas, as majestades viram no relógio que a hora de ir já chegava. Mina, sua menina mais velha, estava sem eles no palácio e avisou que precisaria de sua atenção naquele dia. Kin nem teve que ouvir isso deles, não lhe foi necessário nem olhá-los diretamente para saber que os dois estavam de saída. Assim que se apercebeu, devolveu a recém nascida para a mãe e fechou a mochila verde água que puseram sobre a mesa com os pertences dela.

Alinhou as alças da bolsa e pendurou ela no ombro da rainha.

— Obrigada, Kin! — Agradeceu a mulher. Voltando-se para sua filhinha, pegou na mãozinha dela e falou: — Dá tchau pra titia Kin, dá!

A loira exibia um sorriso gigantesco para as duas enquanto, inclinada em sua mesa escura de madeira maciça, as via se distanciar na direção da porta. O rei as deixou ir e ficou um pouco para trás, queria dizer algo a Kin e esperou tanto porque sabia que só teria sua total atenção depois que sua filha fosse embora. A retalhadora cruzou os braços frente à camiseta cor de abóbora que trajava e encostou na mesa.

— Lembra do que nós conversamos, Kin. — Disse o soberano. — Pode apresentar suas ideias, elas são ótimas. Gostei de todas. E se os outros ministros te ignorarem, se rejeitarem sem nem ler, implementa assim mesmo. Quem não gostar pode vir falar comigo depois. — Concluiu. Sabia muito bem como os ministros eram difíceis de lidar, que, por serem todos de idade avançada, não gostavam de receber conselhos de pessoas jovens. Contou a ela que até Hayate foi menosprezado por eles nos primeiros dias de trabalho.

Aquela fala dele e a reunião tranquilizaram tanto o coração da primeira ministra que por muito pouco ela não saiu gritando e pulando de alegria. Devolveram-lhe toda a confiança que ela possuía, pela qual era conhecida entre os amigos. Um filme passou pela sua cabeça, recordou-a de seus muitos momentos gloriosos, vitoriosos. A fez saber de novo o quanto era incrível. Sob controle, tudo o que fez em resposta foi sorrir e dizer:

— Entendido.

Estava feliz pelo Rei de Órion ter gostado de suas ideias, mas isso queria dizer que vinha mais trabalho pela frente. Significava que precisava pensá-las melhor para achar uma forma de aplicá-las, até aprimorá-las. Droga. Respirou fundo. Descobriu porque Hayate mandou Arashi e ela dividirem o posto de primeiro ministro. Ele sabia que ela era mais preguiçosa para essa parte da função, muitas vezes a viu dormir de pé em reuniões, Arashi, ao contrário, não só gostava desse lado do trabalho como estudava ele em horas vagas, entendia dessas coisas desde os oito anos. Ficou um tanto insatisfeita. Só descobriu porque seu parceiro ganhou o cargo, faltava saber sua razão de estar ali. Ou seja, sabia as coisas pela metade.

Mas sua confiança retornou. Tinha certeza absoluta de que saberia em breve porque foi elevada a tal posição.

Fugindo desesperadamente de algo ou de alguém por uma rua deserta, um homem alto, rechonchudo e bem vestido tropeçou e caiu de cara no asfalto. A estranha sombra de quem o perseguia esticou-se sobre ele. Apavorado, o sujeito se recuperou e, mesmo exausto, arfando de cansaço, continuou a correr. Dessa vez ainda mais veloz. Mil pensamentos enchiam sua cabeça, desordenados. Sentia terror, tristeza. Regredia pouco a pouco ao lado animal da espécie humana.

 Bateu na porta do edifício mais próximo. Salivava de horror. Não atendido, olhou para atrás e correu. Seu algoz andava devagar, não tinha pressa. Seu desespero era uma delícia para ele. Prazeroso como um espetáculo. Os passos do torturador ficavam cada vez mais fortes, mais ágeis, à medida que o fim da estrada ficava visível. O desalento do fugitivo também crescia. Sabia que só permanecia vivo porque seu agressor queria, que só estava naquela rua porque ele queria. O que não sabia, porém, era o que seria de si caso fosse alcançado. 

De repente, o perseguidor sumiu. O perseguido procurou-o em volta e não o viu em parte alguma. Chegou a checar até debaixo dos próprios pés, a bater os pés na terra. Nenhum sinal dele. Viu-o, repentinamente, bem ao seu lado. Manto preto, chapéu preto e máscara amarela com bico de arara. Quase sofreu um ataque cardíaco, caiu sentado. Viu-o dar um passo em sua direção, reergueu-se, girou para a frente e correu. Fosse quem fosse o indivíduo debaixo da máscara, ele trucidou na sua frente seus retalhadores mais poderosos. Precisava continuar correndo. 

As nuvens, todas brancas como a neve, avançavam calmas pelo céu, azul como o mais limpo dos oceanos. O clima não era de calor e nem de frio, formava um equilíbrio satisfatório para os habitantes do Reino de Órion. O sol estava tímido naquela tarde, escondia sua brilhante face das pessoas. Os ventos, quando apareciam, se exibiam com pouco pudor, imbuídos da vontade de derrubar qualquer coisa em seu caminho quando a natureza permitia que eles se manifestassem. O frio ameaçava acompanhá-los, dava as caras envergonhado. 

 Yamatohito estava tão concentrado em quem queria pegá-lo que nem viu que se aproximava de uma pequena ladeira. Rolou metade dela e bateu a cabeça. Ficou inconsciente por dez segundos. Quando se deu por si, virou-se para a frente e viu o portão do condomínio. O porteiro estava morto dentro da cabine, foi assassinado como os outros. Avistou o matador mascarado lá no topo da ladeira. Sabia que não teria tempo para entrar na cabine, descobrir como ela funcionava e abrir o portão. Precisava escalá-lo e pulá-lo. Foi o que tentou fazer.  

O homicida se cansou de brincar de gato e rato: o alcançou num piscar de olhos, o puxou pela traseira de seu terno cinza e o atirou no chão com violência. Estava caído, perdido. Sem esperanças.

— Socorro! Alguém me ajude! — Gritou. Quando seu algoz sacou uma espada e andou um passo em sua direção, implorou: — Por favor, não! Não faça isso! Não precisa fazer isso! Pago quanto você quiser, só não me machuque! 

O assassino retirou a máscara com a mão livre e largou-a no chão. Tratava-se de Sora Raikyuu. Friamente, o olhou nos olhos e alçou a espada. 

— Seu nome é Yamatohito Sokuro. Você era um dos sádicos que pagava o Kikuchi para assistir crianças lutando e se matando. Eu era uma dessas crianças que teve que lutar com outras pra sobreviver. Nunca matei nenhuma delas, estou aqui pra vingar as que morreram. Diga adeus. — Ordenou. Em seguida, ignorando seus gritos e pedidos de misericórdia, tirou-lhe a vida.

Sora não queria vingança, só queria viver em paz. Diferente dos outros sobreviventes dos jogos de Kikuchi. Esses queria guerrear contra o Reino de Órion, o consideravam culpado pelo que sofreram, odiavam-no por tê-los esquecido no submundo. Para evitar algo como um atentado, como um ataque terrorista, o Raikyuu conversou com eles. Convenceu-os de que mesmo no período frágil que atravessava, o Reino de Órion contava com poderosos retalhadores em seu alto escalão, que nem juntos seriam páreos para esses retalhadores. Fizeram um acordo. Jurou-lhes que se eles desistissem da vingança, os ajudaria a pegar os desgraçados que financiaram o submundo de Kikuchi. Estava cumprindo com sua parte no acordo. 

Pensar no seu próximo alvo enchia sua testa de rugas de preocupação. Ninguém mais, ninguém menos que o pai de Yue. Além disso, sabia que ela e Haru foram designados para o caso pela primeira ministra, para pegá-los. A sorte realmente não estava do seu lado. Não sabia o que fazer. Já considerou falar com eles, explicar o que estava acontecendo, pedir ajuda, mas os ex prisioneiros de Kikuchi não queriam ajuda. Queriam vingança. Isso significava que pessoas iriam morrer de uma forma ou de outra, se os entregasse, porém, inocentes sofreriam. Paralisado pela confusão, também pelo remorso, pela culpa por causa do que acabou de fazer, deu com as costas no portão e escorregou-as nele até sentar-se. Desolado, ali ficou a refletir. 

Em casa, já de noite, Kin contava animada para Haru como foi o seu dia. Os dois sempre se sentavam no sofá para conversar quando encerravam seus afazeres do dia a dia. 

 — Ah, legal! — O ruivinho bateu punhos com a irmã quando ouviu que o rei elogiou todas as propostas dela. — E sabe a parte que vai deixar aqueles velhotes de cabelo em pé? Tu nem precisou pedir a reunião com o rei, foi ele que te chamou!

— Demais, não é? — Kin concordou. Já pensou naquilo, só não lhe disse. Haru era um garoto muito esperto. Ouviu alguma coisa caindo na cozinha, logo a direita da sala de estar, separada dela por um muro amarelo como todas as paredes da casa e por uma abertura onde deveria haver uma porta. Deu uma risada. — Tá tudo bem aí, Naomi?

— Tá! — Respondeu a garota. — Esbarrei no fogão pensando que a panela ia cair, mas a pipoca tá a salvo. 

O cheiro veio suave para a sala.

— Hmm! — Haru gostou dele. — Traz pra cá!

Jogaram pedra, papel e tesoura para decidir quem faria a pipoca, Naomi perdeu. Mas aceitou numa boa. Ela voltou para a sala com uma vasilha enorme e cheia de pipoca e sentou-se entre os irmãos. Haru encheu as mãos e a boca, quando ia pegar mais um monte, a campainha tocou. Pela hora só podia ser Yue, com notícias sobre o caso em que trabalhavam juntos, então se levantou e atendeu. Tinha razão, era ela mesmo. Parecia atordoada com alguma coisa, perturbada com as teorias que sua cabeça teceu. 

Haru escancarou a porta e a convidou:

— Entra aí, tem pipoca!

— Valeu. — Ela entrou. Deu duas voltas na sala, na frente de Kin e Naomi.

— Tá tudo bem, Yue? — Kin, com a boca cheia, perguntou.

— Sabe aquele caso que você deu pra gente? — Indagou. A loira respondeu que sim com uma mexida de cabeça. — Eu tava certa, não é só um assassino. Acabei de saber que mataram mais um. Eu finalmente encontrei um padrão nas vítimas. 

— Qual é o padrão? — Kin, esfregando as mãos sujas de sal umas nas outras, quis saber. 

— São todos os homens muito ricos que foram processados, que foram acusados de financiar aquele submundo horroroso do Kikuchi e de contratar os serviços dos retalhadores que ele escravizava. — Revelou, chocando todo mundo. — Eles tão mesmo atrás de vingança, todos os que nós libertamos... E eu acho que meu pai é o próximo, então podemos pegar mais um deles e dar um fim a essa história.  

Kin até parou de comer. Nos últimos meses o Reino de Órion passou por tantos problemas, teve tantas coisas para resolver, que se esqueceu desse caso. Se esqueceu que os acusados eram homens ricos, tão ricos que podiam pagar os melhores advogados, subornar pessoas, que, portanto, o processo iria requerer sua inspeção pessoal para receber uma solução justa. Tinha que fazer alguma coisa o quanto antes. Haru se jogou no sofá com os braços cruzados. Não tinha a menor dúvida de que Sora estava metido naquilo. Nem ele e nem Yue. Precisavam pará-lo antes que ele fosse mais longe do que já foi. 

— Yue, eu vou ligar pra Kande e pedir pra ela vir pra cá. Espera ela aqui. Quero que vocês duas vão pra casa do seu pai e que montem guarda até o assassino dar as caras. — Disse Kin. Yue assentiu. — Haru, Naomi, vocês dois vêm comigo pra delegacia, vão me ajudar a conseguir mais informações daquele que já tá preso.


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