Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 13
— Oito anos antes




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— Oito anos antes

O cróceo manto ainda não abrira totalmente no Reino de Órion a solícita aurora quando Kin entrou em casa, a fria escuridão da madrugada precedente pirraçava para pelo seu imenso céu ficar. A pequena retalhadora trabalhou a noite toda, ficou de guarda na fronteira norte do Reino, mas, muito nervosa, deixou o posto inteiro a cargo de seu companheiro para ver o que aconteceu em seu lar, durante sua breve ausência. Mari ligou para ela há poucos instantes, tão desesperada que mal conseguia falar, explicar-se.

Na sala de estar, a olhou e soube imediatamente que se tratava de algo sério. Mari estava mais branca do que as pétalas de uma flor de jasmim. Temerosa de saber o que perturbava a amiga, que com as mãos bambas unidas cérceas do rosto volteava o sofá, pôs a bolsa que levava no ombro em cima da mesinha de aço. Não queria assustá-la, então após vasculhar rapidamente o cômodo com seus curiosos olhos castanhos escuros, Kin a conduziu devagar para o sofá. Ela nem notou que eu entrei, pensou a menina.

— Mari, relaxa e me diz o que foi que aconteceu. — Pediu, valendo-se de um tom de voz que transmitia confiança. Muito depois do que gostaria de reconhecer, viu que ela estava com um corte ensanguentado no ombro direito e que ele se estendia até o fim de seu delicado antebraço. — Meu Deus, Mari, você tá sangrando! Quem fez isso?

A moça prorrompeu num choro angustiante de olhar. 

— Mataram o Haru, Kin! O nosso menino! — Contou, para espanto da guerreira. Tonta, a ouvinte da notícia se colocou de pé. — Bem aqui na minha frente, aqui nessa sala! 

Kin de pronto estranhou essa fala. Se houvessem feito o que ela disse bem ali, alguma evidência deveria ter restado. Mari estava assustada demais para conseguir limpar tudo antes de sua vinda, ainda mais considerando que Kin não levou nem um minuto para estar ali. Todavia, tinha uma certeza: alguém invadiu sua casa. Imbuída dessa fiança, tomou Mari pela mão e subiu as escadas com ela. Foram até o quarto de Haru. O berço de cor cereja viva estava vazio. Mari, gemente e triste, nada falava. 

A guerreira parou as mãos nos quadris, enquadrou o teto numa olhada e deu um suspiro de exasperação. Em seguida, sacudiu a cabeleira encaracolada com as mãos. Mari, que aguardava uma reação mais enérgica dela, finalmente sentiu um pouco de calma se apossar de seu coração. Se bem conhecia a loira, ela estava a tentar pensar no que fazer. Isso significava que havia alguma saída. 

— Mari, fica calma, tá? — Voltou-se para ela e falou, a fim de tranquilizá-la. — Eu ainda não sei o que fizeram com meu irmão, mas não mataram ele. Algum bandidinho deve ter sequestrado ele pra arrancar dinheiro de mim, alguém que vai se dar muito mal! 

Um grande alívio fez as feições de Mari recuperarem um pouco da aparência hodierna. Ela agora analisava Kin, que tocou o aparelho na orelha esquerda para se comunicar com Arashi. A camiseta branca com o símbolo de Áries no centro e nas mangas, o jeito de falar, a impavidez na postura. Quem quer que tenha posto as mãos no irmãozinho dela iria pagar muito caro. Mas não estava tão surpresa com isso quanto com a tranquilidade que a presença daquela garotinha de dez anos impôs sobre seu tempestuoso peito. 

Contudo, como explicar o que seus sentidos testemunharam mais cedo? Viu perfeitamente alguém matar o indefeso Haru. 

— Mas eu me lembro de ver... O que foi que eu vi? — Indagou. 

Ainda em ligação, Kin estendeu a mão, fez um gesto que lhe dizia para esperar uma resposta. 

— Isso. É, fica aí e avisa pros outros. — Transmitiu suas ordens para a pessoa com quem falava. Por fim, falou para a amiga: — O Haru vai ficar bem, vamos trazê-lo de volta. O que você viu... provavelmente foi sob o efeito da energia dele, o chikara pode provocar alucinação em humanos normais se eles ficarem muito tempo exposto a ele. Vem comigo, eu vou te deixar na casa da Mahina pra tu não ficar sozinha, pode ser perigoso. 

As duas retornaram apressadas para o primeiro andar.

O sequestrador escolheu a pior rota de fuga possível. Para a sorte de Kin, no entanto, ele seguiu pela Fronteira do Norte, uma região que, não fosse pelos tufos de mato amarelado que de seu solo cresciam, os que ali ficavam descreveriam como totalmente árida. Seus portões eram de centenas de metros de altura, de um ferro instransponível, resistente até aos golpes de um ser de essência, e antes de ultrapassar suas muralhas, quem quisesse invadir o reino seria forçado a atravessar dezenas de camadas de rocha firme. 

O solo, muito embora não vicejasse nada além de um capim que morria em poucos dias, era qualificado como resistente por todos os retalhadores que ali passavam. Sua abertura só se franqueava para quem falava antes com o Primeiro Ministro, e quem queria entrar por ele devia pedir com quinze dias de antecedência. Quem queria sair de Órion, no entanto, bastava avisar ao líder, o líder advertiria os guardas no mesmo dia e eles dariam a permissão — procedimento que não foi obedecido pelo desavisado intruso que corria na direção da saída com Haru nos braços. 

Ele olhou adiante e não viu guarda nenhum no portão. Ingenuamente acreditando que teria uma passagem fácil, o homem sorriu quando pensou na quantia que lhe foi oferecida e saltou o mais alto que pôde. Quando o gatuno estava para completar o salto e ficar de pé sobre a muralha, Arashi apareceu e o socou com tanta força e agilidade que o coagiu a usar uma das mãos para se proteger. O devolveu para dentro do reino do qual ele ambicionava sair com Haru nos braços. 

Um suave vento gélido soprou a arena adiante dos portões. Assim que seus pés tocaram a terra, Arashi retirou dos olhos a fina mecha de seus cabelos negros soprada pela brisa. Armou a guarda em frente a camiseta branca, com facas de gelo nas mãos. Fixou a atenção no inimigo. Ouviu um riso de deboche, típico de seus oponentes quando o encaravam e se apercebiam de sua idade. 

— Nunca me disseram que Arashi Suzume, o guerreiro glacial, é só um pirralho de uns seis anos. Mas isso não interessa... depois de te matar, não vou contar isso pra ninguém. 

— Quanta honra da parte de alguém que sequestra bebês por dinheiro. — Retrucou o garoto, não por ter se sentido alfinetado pela fala que escutou e nem por gostar de discutir, mas porque queria ganhar tempo para fazer algo que lhe possibilitaria eliminá-lo sem arriscar a vida de Haru. — Me entrega a criança antes que eu te transforme no adubo pro capim daqui. 

O retalhador que Arashi ameaçou fez o gesto de alguém que atacaria, sem soltar Haru. Antes que ele se locomovesse, o guerreiro glacial fez brotar da terra alguns metros a sua frente uma lança que apontava para seu pescoço. Para sair vivo da investida, o sujeito escapou para a esquerda e pôs o pé precisamente onde Arashi queria que ele pusesse. Uma enorme armadilha de urso pegou-o pelo tornozelo tão velozmente que não lhe deu tempo nem de olhar, tão agressiva que encravou-se com brutalidade em sua carne. O susto e a dor quase o fizeram largar o bebê. 

Vem mais, o menino anteviu consigo mesmo e, com um meneio sutil de cabeça, afrouxou tanto a armadilha que seu adversário foi capaz de arrebentá-la. Arashi se divertiu quando detectou nele um riso de superioridade. Ele acha que conseguiu isso sozinho, inferiu. Vai ser mais fácil do que eu pensava. Permitiu que o invasor se achegasse, impressionado com o quanto ele era ágil apesar de ter um bebê nos braços e uma ferida feia na perna. Se você não estivesse com o Haru nos braços, talvez tivesse uma chance.

Arashi se esquivou dos socos dele, mais uma vez chocado com a habilidade por ele demonstrada. Prosseguiu recuando e desviando, sem contra-atacar, sem, também, perder de vista que o sangue do tornozelo ferido dele pingou por todo o campo de batalha. Parou de desviar-se quando sentiu suas costas tocarem a parede. O sequestrador sacou célere um punhal e o moveu na direção de seu peito, crente de que assistiria seu fim. Não foi capaz de completar o movimento. 

Da poça de sangue que os cortes em sua perna deixou atrás de si, saiu uma corrente de gelo que segurou-o pelo pulso e salvou a vida de Arashi. O guerreiro glacial lhe deu um cruzado de direita tão forte na cara que ele, enfim, largou Haru, Arashi pegou o pequenino nos braços e o reteve junto a si. O bandido tentou se erguer, intentava atacá-los, mas um par de correntes circundaram suas pernas e um outro par enrolou seus braços. Estava a mercê do jovem de Órion. O quê?!, se questionava. Mas quando?!, buscava entender sua presente situação.

Arashi pacientemente deixou Haru num canto escondido perto dos portões, não porque temesse outra investida do oponente, mas porque não achava apropriado um bebê presenciar o que estava para acontecer. Marchou para o local no qual deitou o invasor, parou diante dele, ergueu uma das mãos e construiu uma adaga de gelo para ela. 

— Entendi! — Disse o homem caído. — A armadilha de urso que prendeu meu pé... seu objetivo não era me deixar preso, era me perfurar para enviar fragmentos do seu gelo para dentro de mim... e então, quando o meu sangue infectado pelo seu gelo respingasse pela arena, você faria essas correntes saírem dele para me prender... — Explicou. Arashi não esboçou reação, pôs a outra mão na adaga alçada. Prendeu-a entre os dedos mais potentemente. O ladrão sorriu. — Morrer pelas mãos do guerreiro glacial deve me redimir, de certa forma. 

Sem dizer uma palavra, nem dar um só sinal de emoção, agachou e, sem dificuldade alguma, enterrou toda a lâmina da adaga no coração do rival derrotado. Usou dois dedos para limpar a bochecha manchada pelo sangue dele e se colocou de pé. Olhando-o naquele instante, muitos o condenariam. Chamariam-no de impiedoso, presumiriam que ele gostava de matar os adversários. Nada mais distante da verdade. Antes de executar o intruso, por exemplo, pensou em mil cenários possíveis caso o deixasse vivo, nenhum lhe pareceu bom para o Reino de Órion. Para Kin. Ele invadiu a casa dela, sequestrou Haru, feriu Mari. Não podia sair com vida. 

A culpa não podia freá-lo, portanto ele conscientemente a empurrava para as zonas mais abissais de sua alma e vivia como se não tivesse feito nada. E hoje, mais uma vez, se decidia por fazer isso. Tomou Haru nos braços e se foi. Kin lhe pediu por ligação para levar o irmãozinho dela para a casa de Mahina quando o recuperasse, sua única surpresa foi não encontrá-la lá ao ser recebido por Mari e pela moradora da casa.

Quem o atendeu foi a mãe de Mahina. A moça o conhecia, e a filha lhe falou que ele viria. A instruiu para deixá-lo entrar imediatamente. Ele agradeceu quando a mulher abriu a porta e seguiu para a direção indicada por ela. Deu com Mari na cozinha pouco iluminada, sentada a mesa de forro verde claro, bebendo chá numa espessa caneca branca de porcelana.

A bem da verdade, derramava mais nas pernas por causa dos tremores nas mãos do que bebia. Não que estivesse com medo. Sempre foi uma mulher corajosa, Yume a descrevia como a humana mais corajosa que já conhecera. O que a deixou naquele estado foi a alucinação que teve. Foi achar que viu Haru morrendo. 

Mensurando o quanto Mari estava apavorada, a primeira coisa que fez foi entregá-lo nas mãos dela, envolto nos mesmos panos rubros entre os quais ele estava quando o raptaram. A mulher se levantou e recebeu o bebê com todo o amor e carinho do mundo. Tão feliz que nem agradeceu o herói.

— Cadê a Kin? — Foi a primeira coisa que Arashi perguntou. Algo lhe dizia que a loira estava em perigo. 

— Ela não quis me dizer pra onde ia, mas eu consegui rastreá-la. — Respondeu Mahina. — E o cara que sequestrou o Haru?

Arashi desviou os olhos para Mari, que mimava Haru e repetidamente se desculpava com ele por não ter sido capaz de protegê-lo. 

— Não vai mais causar problemas. — Limitou-se a dizer. 

— Vem comigo. — Pediu, dirigindo-se a porta. — Mari, vou com o Arashi procurar a Kin, se precisar de alguma coisa é só chamar os meus pais. Não sai daqui. 

Feliz demais por ter Haru nos braços, Mari só ouviu o essencial. Os dois saíram com pressa. 

Aquela foi mais uma das muitas vezes que Arashi desejou estar errado, e que, infelizmente, não estava. Seu pressentimento sobre Kin foi correto. A retalhadora ficou tão furiosa por terem posto as mãos em seu irmão que, depois de se certificar que Mari estava em segurança, saiu pelas ruas sem pensar muito. Sabia que fizeram aquilo para atingi-la, resolveu-se, então, por fazer-se um alvo fácil, imaginando que atrairia quem estava por trás daquele teatro e que poderia pegá-lo. Grave erro seu. 

Erro que teria custado sua vida, não fosse sua incrível resistência. Foi acorrentada pelas pernas e pelas mãos nas alturas de uma imensa região subterrânea e, a seu redor, inúmeras explosões aconteciam o tempo todo. Até o presente, nenhuma delas foi forte o bastante para matá-la. Provocavam uma dor insuportável, algumas feridas, faziam-na sentir que sua cabeça estava girando, mas, por mais poderosas que fossem, nenhuma delas a fez sentir na pele o hálito frio da morte.

Ali fazia um calor que não dividia espaço com nenhuma forma de vida, que exigia para si até as áreas mais esquecidas do enorme recinto rochoso no teto e no piso. Não havia local na Terra tão semelhante ao inferno. Kin sentia como se sua pele fosse começar a virar vapor a qualquer minuto. Tão severamente flagelada, deitou a cabeça para frente. A explosão ulterior jogou-a para atrás, a despertou. A lutadora que armou aquilo tudo só para vê-la morrer apareceu. No rosto, tinha apenas incredulidade. Olhava para o alto como quem outrora tinha certeza de que, ao voltar para rever a retalhadora acorrentada, a teria morta. 

— Ainda está viva...? — Disse, atraindo a atenção dela para si. Com isso, completou, com desdém: — Acho que eu mesma vou ter que te fazer esse favor. 

— Lire... — Kin resmungou, exausta. — Por que é que eu não tô surpresa?

Trajada de uma camiseta preta com mangas curtas, numa saia xadrez preta e branca, Lire sorriu. Havia certa raiva em seu coração, não negava. Pensou que sua adversária já estaria morta a aquela altura do campeonato. Ela é só uma fedelha de dez anos, tremia de furor, dizendo isso como um mantra para si mesma. 


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