Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 10
— A última decisão




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A última decisão

A massagem cardíaca que Kin fez no ministro deu certo e, quando notou que o velho estava vivo, Keiko chamou uma ambulância. As duas acompanharam os paramédicos, entraram no veículo. Foram com ele para o hospital mais próximo do palácio. Sem esconder nada, contaram o que aconteceu. Perguntaram o percurso todo sobre o estado de saúde do paciente, se a coisa era grave. Os enfermeiros nada responderam. Kin e Keiko tinham tanto medo dele morrer que nem ousaram indagar se ele sobreviveria.

Duas horas na recepção e nenhuma notícia. Kin tremia de apreensão, ia, inquieta, de uma ponta da sala de espera para a outra. Comeu as unhas de todos os dedos da mão esquerda e agora terminava de comer os dos dedos da esquerda, mordia a do anelar. Na última volta pela sala, esbarrou na cadeira azul escura de plástico e acordou Keiko dos devaneios dela. Até então, a guardiã imaginava a crise que o ocorrido desencadearia, pensava em como se explicariam para os outros reinos. Nas pesadas consequências geopolíticas que implicaria. 

A polícia estava chegando. Keiko olhou para Kin e soube que precisava acalmá-la o quanto antes. Com esse intuito, entrou secretamente em contato com Naomi e pediu que ela deixasse de lado o que quer que estivesse fazendo para ir até lá. Por sorte, a francesa retornava para Órion quando ela ligou. Prometeu estar ali em meia hora. Mas, pelo que parecia, Kin teria uma crise de nervos muito antes disso. Tentou pensar em algo para tranquilizá-la nesse curto espaço de tempo. Então lembrou de uma história envolvendo Yume. 

Sorriu e, nostálgica, puxou conversa:

 — Você e sua mãe são iguaizinhas! Como não lembrei disso?

Kin se interessou pelo que ouviu, voltou para ela, transbordantes de curiosidade, seus olhos castanhos escuros. Parou de morder a unha do mindinho, cruzou os braços e andou até a chefe. 

— Do que tá falando?

— Na primeira semana com o cargo de guardiã, ela bateu na cara de um guarda porque ele falou do pai do Arashi. Eu estava lá na hora. Foi uma confusão! — Contou, contente por observar que isso devolveu um pouco de cor ao rosto pálido da loira. As duas encararam o piso e riram. Omitiu a parte que Yume quase perdeu o cargo por causa disso. Se bater num guarda causou toda aquela algazarra, o que fariam com a retalhadora que atacou um dos ministros? Evitava pensar nisso.

A história ajudou um pouco, isso deu para notar, no entanto, não bastou para esfriar completamente o coração em chamas da jovem primeira ministra. Ela colocou as mãos na cintura e bufou de preocupação. Em seguida, passou a mão pela testa, foi até o fundo da salinha de piso xadrez com paredes verdes e voltou para a porta. Olhava para a entrada na esperança de algum médico chegar com boas notícias. Toda hora se frustrava. Se odiando pelo que aconteceu. Nunca teve tanta certeza de que não foi feita para o posto e nada, nem saber que sua mãe passou pelo mesmo, a fez pensar diferente. 

Naomi passou pelo balcão das recepcionistas e avistou Keiko de longe. A guardiã a olhou e chamou. 

— Oi! — A francesa saudou Keiko e apertou as mãos dela. Estava aflita e ofegante. Kin correu até lá para abraçá-la. Ao final, quis saber: — Alguma notícia?

— Não, nada...!! Isso não pode ser bom! Se tudo fosse ficar bem, eles teriam vindo aqui falar alguma coisa, mas a gente tá aqui há horas e não falaram nada! 

Keiko ia ficar com elas, mas pediu licença e foi até os policiais quando eles chegaram. A primeira ministra se afastou de Naomi, foi até o final da sala e voltou. Calada. A morena nunca a viu tão transtornada. 

 — Loira, eles vão vir falar contigo também, você tem que estar calma quando vierem. — Naomi a alertava. 

Kin balançou a cabeça em concordância. Claramente ainda fora de si.

— Certo, eles vão vir. — Raciocinou por uns breves segundos, como que ensaiando o que diria. Bateu as mãos uma na outra e anunciou: — É, e eu vou entregar o meu cargo.

— O quê? Não! — Naomi segurou os pulsos dela e os ergueu. — Você não vai entregar o seu cargo! Não precisa!

 Kin olhou para baixo. Em poucos instantes toda a sua briga com o velho Isaho rodou como um filme em sua mente, reviveu-a inteirinha na imaginação. Seu coração explodiu de culpa, de horror por si mesma.

Tirou os pulsos das mãos de Naomi, balançou a cabeça como que para expulsar tais memórias dela e deu as costas para a amiga. Deu tapas na própria testa. Procurava uma maneira de se convencer de que tudo não passou de um pesadelo muito realista, de que em breve acordaria aquecida em sua cama e sentiria seu coração mais leve, descomprimido de tantos sentimentos ruins. Mas não podia. Nenhum argumento ou artifício mental removia aquela esmagadora pressão de seus ombros. 

— Naomi, eu não posso mais fazer isso! — Virou-se para a morena e falou. — Hayate estava errado, o Arashi estava errado! Isso é... é demais pra mim! Não viu o que eu fiz hoje?! Eu... — Nem se atrevia a recontar a história. A pensar que pôs tudo a perder, que jogou no lixo a confiança de Hayate. As esperanças de todos. 

 Naomi levou uma mão à testa e a outra à cintura. Sabia que nenhum argumento a faria mudar de ideia, que, se quisesse que ela pensasse melhor, teria que lhe falar ao coração. 

— Kin, você está em choque, não está pensando direito! Não tome uma decisão dessas agora, se fizer isso não estará agindo muito diferente do momento da briga! Você lembra que tudo isso começou porque você agiu por impulso, não lembra? Não faz isso de novo!

A jovem ministra a ouviu atentamente. Incapaz de discordar. Nada disse, no entanto. Piscou muitas vezes, ainda assustada. Como sinal de que a escutou e viu senso em suas palavras, respirou fundo e esperou. As duas miraram a recepção e viram Keiko voltar. No rosto brônzeo e na firme expressão corporal da guardiã não encontravam indícios de se eram boas ou más as notícias que ela trazia. Só sabiam que ela tinha notícias. Saber disso só dificultava as coisas para as duas, as fez sentir como interminável o caminho entre Keiko e elas. O tempo correu mais vagaroso. 

 Ansiosas demais para aguardá-la, atravessaram o corredor e foram nela.

— Boa notícia: o senhor Isaho vai ficar bem. — Informou-as, para começar. A novidade fez tão bem à Kin que, instantaneamente, as tremedeiras dela pararam, que seus traços faciais, esfriados pelo medo, retomaram o calor. Por um segundo, Naomi sentiu que a tinham de volta. — Kin, os policiais querem te ouvir, vai lá. 

 A guerreira de Órion assentiu, as deixou e foi dar seu depoimento aos dois homens fardados que esperavam por ela no espaçoso balcão da entrada. O ministro sobreviver resolvia muitos dos seus problemas, mas não todos. Kin ainda corria sérios riscos de perder o cargo. Para mensurar a gravidade da situação e entender a dura realidade que viria ao encontro da sucessora de Hayate, Keiko teria, antes, de falar com os outros ministros de Órion. E com o rei e a rainha. Imediatamente. Explicou-se para Naomi antes de sair, pediu-lhe que não abandonasse Kin e foi para o castelo ver o casal real. 

Os ministros estavam com tanta pressa para decretar se Kin poderia continuar liderando o Reino de Órion que se reuniram naquela mesma noite. Finalmente conseguiram a chance que tanto queriam de derrubá-la, não a perderiam. Keiko, o rei e a rainha estavam lá na sala com ela. A lei dizia que um retalhador só seria destituído do cargo de primeiro ministro por votação se a decisão fosse unânime — o que incluía a realeza do reino. A Guardiã da Terra não tinha poder de voto, mas era seu dever assistir e registrar por escrito o essencial da conversa. Já o do retalhador que seria julgado era escutar tudo quieto. 

Cada um sentado atrás de uma pesada mesa marrom escura de madeira, os ministros argumentavam e, ao concluir, diziam seu voto. Dez ministros presentes, devido a ausência de Isaho. Onze, contando com ele. Cinco mulheres e seis homens. Em uma hora, sete votaram. Nenhum a favor de Kin. Mesmo se lhe dessem permissão para contra-argumentar, ela não conseguiria. Sua mente virou uma folha em branco. No meio da sala, a guerreira, de rosto ereto e ombros para trás, parou os olhos num ponto branco aleatório na parede azul turquesa do fundo da sala. Atrás da mesa onde Isaho estaria. 

Inconsequente, impulsiva, instável. Agressiva, autoritária. Mimada. Caprichosa. Foi chamada de tudo isso e de mais um pouco, mas com uma frieza que invejava até Keiko. Talvez porque, no fundo, concordasse com eles. Se via assim. Morria de medo de descobrir que não diferia em nada de Lire. Que, como aquela louca disse uma vez, eram "faria do mesmo saco". Depois do que fez naquela noite, só pensava nisso. Não sabia por que estava angustiada: se porque podia perder o cargo ou se porque descobriu que era igual à psicopata que a perseguia.

Uma massa informe de impressões, emoções e perturbações se agitava dentro de Kin. Na hora do décimo voto, a loira levantou os olhos para a face da última ministra a votar naquela noite. Uma mulher com idade para ser sua avó. 

 — Tendo tudo isso em vista, voto pela destituição. — Foi tudo o que Kin ouviu. — Podemos discutir outro dia o que será feito, já que são dois retalhadores ocupando o cargo... digo, se escolheremos mais um ou se deixaremos Arashi Suzume governar sozinho. 

Um efêmero burburinho sucedeu essa fala. Quando o decoro foi restaurado, Keiko falou suas primeiras palavras desde que cruzou aquela porta:

— Majestade, os senhores têm o parecer decisivo. 

Nada no rosto do casal dava uma pista do que eles resolveram. Mesmo sem precisar, os dois se colocaram de pé. Kin, envergonhada de si, não os olhava. Respeitava-os demais. A conheciam desde que ela era uma bebê de colo. Tê-los ali numa situação daquelas, depois da tremenda besteira que fez, era o pesadelo dela se tornando realidade. Sempre se gabou de ter no seu reino os reis mais sábios e razoáveis do mundo. Concordaria com o que quer que os dois falassem e os parabenizaria.

Num vestido simples, amarelo e de mangas curtas, a rainha segurou o braço do esposo. Ele, sob um fino terno preto e uma bela camisa social azul celeste, segurou na mão da esposa com o braço livre. 

— Ouvimos todos os argumentos, as queixas e chegamos à uma conclusão. — Começou o soberano. Inflexível, prosseguiu: — Porque também ouvimos toda a história. Uma retalhadora que não mede esforços para defender aqueles que ama, que, para manter íntegra até mesmo a memória dos que se foram, não se importa com perder a posição de maior poder e prestígio de sua pátria de nascimento. Lamentamos muito pelo conselheiro Isaho e torcemos pela sua melhora, mas Kin Iminari tem o perfil que sonhamos que o líder de nosso amado reino tenha. E não encontraremos no mundo inteiro alguém melhor do que ela. — Pausou o discurso quando viu lágrimas escorrerem dos olhos da garota elogiada e descerem todo o rosto alvo dela. Quando se deu conta de onde chorava, a Orioniana enrubesceu e esfregou as vistas com o braço. Sorrindo como um pai orgulhoso, o rei encerrou: — Votamos pela permanência dela no cargo. 

 Tanto quanto os ministros foram forçados a conter as reclamações e os murmúrios de insatisfação, Keiko se controlou para não pular de felicidade. Se limitou a sorrir discretamente para Kin. A guerreira não sabia como se sentia. Verdade, disse a si mesma que aceitaria em paz o que o rei e a rainha falassem, mas não se imbuía da certeza de que havia verdade no discurso dele. Não que pensasse que ele mentiu ou que foi falso. Só achou que eles se deixaram levar pelo afeto que nutriam por ela. 

Por isso, quando Keiko deu a conferência por terminada, pediu-lhes um momento a sós com eles. 

— Por que votaram pro cargo continuar sendo meu? Eu surtei, quase matei um dos ministros! Se a senhorita Keiko não estivesse lá... Enfim. Por quê? 

A rainha sorriu e, num gesto maternal, levou a mão ao rosto de Kin. Enxugou com o polegar a lágrima que brilhava no olho direito da loira. 

— Porque esse cargo é seu, Kin. O Reino de Órion precisa de você. Em uma semana você fez coisas incríveis, provou que ama esse lugar de todo o coração. E aposto que nem percebeu. Não é verdade?

Pela primeira vez na semana, Kin parou e pensou em tudo que aconteceu. Estava sem palavras.

— Você não pensou. Só agiu. — Disse o soberano. — Colocou seu coração a serviço do reino, foi espontânea. Teve medo, duvidou de si mesma, mas, pelo bem de Órion, seguiu em frente... E quando sentiu que algo que você amava estava sob ataque, abriu mão de tudo para proteger. Com você e o Arashi trabalhando juntos, nos reergueremos. 

Kin sorriu, ruborizou de alegria. Finalmente acreditou que estava fazendo um bom trabalho e que podia continuar. Emudecida de emoção, curvou-se e os reverenciou. 


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