Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 9
— Prova de fogo




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— Prova de fogo

Mahina conheceu Hisahito dez anos depois de ingressar na equipe dos retalhadores e elite. Logo de cara os dois começaram a se gostar. Ela morava no Reino de Órion, ele, na Província de Pégaso, uma pequena comunidade ao sul de Órion. A distância contribuiu para separá-los, impediu-os de formar o casal que eles queriam formar, mas não foi a principal barreira do sucesso da história de amor deles. O maior antagonista sempre foi o trabalho dela. Como confessava para os poucos que conheciam esse lado de sua vida, podia muito bem se mudar para Pégaso. Os dois eram maiores de idade, tinham renda fixa. Só que Mahina achava que não devia. 

 Teve certeza de que não devia numa noite da qual jamais se esqueceu, durante uma roda de conversas com Kin, Arashi e Kenichi, seu falecido parceiro de equipe. Os quatro retornavam juntos para Órion após findar uma missão e decidiram parar num restaurante para comer e descansar.

Na mesa, papeavam sobre se relacionar com alguém que não exercia a mesma profissão que eles. Kin argumentava que não havia problema algum nisso, Kenichi, que pouco ligava para o assunto, ressaltava os riscos e as chateações que isso envolveria. Os dois discutiram, falaram pelos cotovelos. Arashi decidiu não opinar, Mahina quis ouvi-los antes de chegar a uma conclusão. 

 Quando Kin e Kenichi se calaram, Mahina contou sua história com Hisahito. Para não magoar a companheira, Kenichi foi menos enfático no seu posicionamento sobre o tema, abrandou o tom e admitiu uma exceção. Kin deu todo o apoio. Mas Mahina observou que Arashi continuou quieto. Quis saber o que ele achava. Arashi hesitou em falar o que pensava, Mahina insistiu. Ele avisou que ela não gostaria de ouvi-lo, ela, mesmo assim, o encorajou a dizer o que pensava. 

Arashi partiu dos apontamentos feitos por Kenichi e induziu-os a ver que, além dos perigos que cercavam uma pessoa comum namorando uma retalhadora, as desavenças eram tão constantes que podiam levar ao divórcio. Como quase aconteceu com os pais dele. Arashi lembrou que era fruto do relacionamento de uma humana com um ser de essência. Ninguém conseguiu pensar numa objeção às coisas que ele disse. Kin se chateou, Mahina também, mas, das duas, a única que brigou com ele foi Kin.

No resto do percurso de volta, o guerreiro glacial percebeu como suas palavras chatearam Mahina e pediu desculpas. Ela confessou que ficou triste, mas não com ele. Ficou triste porque concordou: precisava se afastar de Hisahito. Defendeu-o de Kin, disse-lhe que foi a única culpada pelo que escutou, afinal, insistiu que Arashi falasse. Tudo continuou como estava, ela morando no Reino de Órion, Hisahito na Província de Pégaso. Mahina acreditava que tinha responsabilidades com o reino onde nasceu e não queria deixar seus amigos. Kenichi precisava dela. Não dizia, mas precisava. E o amava como se ele fosse seu irmão. 

 A morte de Kenichi a motivou a fazer o que pensava em fazer há muito tempo: abandonar a carreira de retalhadora para levar uma vida normal. Como disse a Kin no dia que se demitiu, não foi feita para aquilo. Não gostava de lutar. Só entrou nessa porque amava seu reino e porque amou a ideia que levou Hayate a fundar a ordem dos retalhadores de elite. Hayate lhe disse que queria uma família lutando pelo Reino de Órion e que só ela podia transformar o grupo dos retalhadores de elite numa família, porque ele não conhecia ninguém mais bondoso e sensível do que ela. Quando Kenichi morreu, a função de Mahina na organização já estava cumprida. Ela sentiu que chegara sua hora de seguir seu caminho. 

Mudou-se imediatamente para Pégaso com seus pais e reencontrou Hisahito. Daquele dia para cá, tudo aconteceu muito rápido. Naturalmente. Hoje, estava com ele numa sala de ultrassom para saber o sexo do bebê — ou da bebê — que esperava. Kin, por insistência sua, foi junto. Fez de tudo para que ela fosse para ajudá-la a esquecer a preocupação com Arashi.  

— É um menino! — Revelou a sorridente doutora, apontando para a imagem branca na telinha preta. 

Mahina e Hisahito se abraçaram, ele deu um beijo na bochecha da mamãe deitada sobre a maca. Kin aplaudiu de perto da janela do outro lado da cama, comemorando sozinha, mas alegre. Mahina a olhou e a chamou para dentro do abraço. Pouco mais alto do que Kin, Hisahito era um jovem robusto, de pele clara, lisos cabelos curtos e olhos castanhos escuros. Não contava com nada de incomum na aparência, nada que permitisse nem mesmo dizer dele se era belo ou feio. Até suas roupas eram simples: uma camiseta preta de mangas curtas, uma calça jeans e tênis. O tipo de uma retalhadora aposentada, de uma que não quer ter nada a ver com o mundo sangrento das batalhas. 

A médica trabalhava naquilo há muito tempo, mas adorava presenciar aquelas demonstrações de felicidade dos pais. 

 — E aí, já decidiram qual vai ser o nome do meu afilhado? — Kin ajeitou os cabelos e perguntou. 

Os pais trocaram olhares.

— Vai ser "Kenichi"! — Hisahito respondeu por Mahina. Sabia que a mãe de seu filho e sua futura esposa ainda ficava emocionada toda vez que falava aquele nome e quis poupá-la disso. Abraçou-a. — Que nome melhor pro nosso filho do que o do herói que salvou a mamãe dele?

Nem Kin conteve a emoção. Um filme com as frases, os atos e o último momento de Kenichi rodou na cabeça dela. As lágrimas desceram ágeis de seus olhos e molharam as abas finas de seu casaco lilás claro. Kin tirou um pano da saia xadrez verde escura que vestia e enxugou o rosto, sorrindo de surpresa consigo mesma por causa dessa súbita explosão de sentimento. Mahina pegou sua mão. 

— Queríamos a sua opinião, já que você também foi muito amiga dele. Ele te adorava, sabia? Falava de você com tanto carinho! — Contou Mahina. 

A loira sorriu. Com a voz ainda trêmula de emoção, deu sua bênção:

— É uma homenagem adorável. E eu vou ajudar a garantir que o novo Kenichi não seja brigão que nem o antigo! 

— Essa... foi nossa primeira preocupação. — Disse Mahina. 

Os três riram alto, um riso que misturava prazer, dor e nostalgia. Mahina mantinha segredo até hoje sobre ter sido a primeira no Reino de Órion a saber que a irmã de Arashi estava viva, o guerreiro glacial revelou isso para ela quando foi pedir desculpas pelas coisas que disse durante as conversas sobre se relacionar com pessoas normais. Disse que falou tudo aquilo porque, por mais que amasse sua irmã e a quisesse em sua vida, se afastou dela, que fez isso porque tinha medo de transformá-la no alvo dos retalhadores perigosos que quisessem se vingar dele. Que entrar nessa vida foi escolha sua. Se alguém tinha que sofrer, que fosse ele. Foi nessa hora que Mahina soube que precisava fazer o mesmo por Hisahito.

Em sua loja, perto da hora de fechar, Yue ensinava Kyoko a lutar porque, em troca, a garota prometeu ensinar técnicas novas de maquiagem. Mostrava para sua jovem funcionária o jeito certo de aplicar um cruzado de direita, acertando de bem leve a mão erguida dela. Uma coisa que Yue jamais se imaginou fazendo: ensinar alguém a lutar. Afinal, só convivia com retalhadores mais experientes e habilidosos. 

Estava se divertindo. Começava a pensar se não seria um bom negócio abrir uma academia, treinar retalhadores novatos em troca de dinheiro e usar esse dinheiro para financiar sua loja de roupas e acessórios. Por incrível que pareça, no Reino de Órion as academias com esse propósito eram raras. Muitos preferiam se exercitar sozinhos. 

Kyoko sairia dali direto para a escola, marcou um ensaio com as líderes de torcida. Por isso usava a saia azul marinho com listras brancas, a camiseta branca com ombros azuis escuros, o meião branco e as sapatilhas. Yue combinou com Haru de sair do reino, portanto estava muito bem vestida, com uma camisa azul cobalto de mangas longas, uma camisa preta curta sem mangas por cima dela, sua calça comprida amarela clara e um par de botas bege. Por causa da demora da amiga, Haru resolveu ir até a loja apressá-la, o problema foi que chegou devagar, bem na hora que Yue ensinava esquiva para Kyoko. O ruivo levou um soco no meio da cara. 

— Ai, foi mal, Haru! Sem querer mesmo! Desculpa! — Pedia Yue. Ele gemia com a mão no rosto, Kyoko já ria tanto que sua barriga começava a doer. Yue, tentando ficar séria, mandou: — Kyoko, para com isso e pega alguma coisa pra ele botar na cara pro caso do nariz começar a sangrar! 

Kyoko começou a controlar as risadas e fez um sinal com a mão, dizendo que queria recobrar o fôlego. Com o ar de volta nos pulmões, disse: 

— Tá bom. Pera aí. 

— Deixa eu ver como é que tá! — Yue pediu pra ele tirar as mãos do nariz. Só ficou vermelho. — Não foi nada sério, relaxa. Não bati com tanta força, deve ter doído porque tu entrou distraído. Já te falei pra não fazer isso!

— É que eu não esperava que fosse ganhar um socão na cara dentro de uma butique, né! — Retrucou Haru. — Eu só vim te chamar pra sair logo, a gente tem que voltar antes da Kin dormir pra fazer companhia pra ela, a Naomi foi pro Reino de Altair em missão e não vai poder.

Yue, então, se deu por si. Esqueceu desse detalhe. 

— É mesmo, é que tava divertido aqui, eu não pensei nisso. — Reconheceu. Pegou as chaves de cima do balcão. — Vamo nessa. 

Haru e Kyoko a seguiram na direção da saída. Do lado de fora, vendo-a trancar a porta, resolveu perguntar:

— Falando nisso, aonde é que a gente vai? 

A garota para quem foi feita a pergunta ficou nervosa. Sabia que Haru resistiria quando soubesse o que ela planejava fazer. Mesmo assim, meteu a chave certa na fechadura, girou, trancou a porta e foi sincera:

— Vamos pra capital saber do Arashi. Se eles estiverem com problemas, vamos ver se podemos ajudar. 

Como o esperado, Haru esboçou insatisfação. 

— Yue, eu já disse que não tem que ficar preocupada! Se a Kin souber que a gente fez isso, ela vai surtar! 

— Mas ela não vai saber, não agora! — Contra-argumentou. — Com o seu poder, podemos sair invisíveis do reino, depois que estiver tudo bem pode contar a verdade! 

— Yue... — Haru continuava hesitante.

— Haru, eu só tenho a minha loja por causa dele, ele me ajudou a realizar meu sonho! Eu não consegui dormir essa noite sem notícias do nosso amigo e não vou conseguir dormir hoje se continuar sem saber nada, vou pra lá com ou sem você!

O ruivo se calou. Não podia impedi-la de ir, mas acompanhando-a evitaria muitos problemas. Seu silêncio foi entendido como consentimento. Tinha plena confiança de que tudo estava bem, e pensando no que representaria ter finalmente boas notícias sobre o primeiro ministro do Reino de Órion, concordou de vez que deviam ir. Segundo seus cálculos, sua irmã chegou agora no palácio, então tinham tempo de sobra para ir e voltar. Se entendeu bem o propósito da reunião que ela faria hoje, Keiko compareceria. Tudo dentro dos conformes. A menos que alguém irritasse Kin.  

Mesmo depois do excelente dia que teve, a loira estava a ponto de explodir dentro da sala do palácio. Estava muito mais perto disso do que nunca. Se lhe questionassem, não saberia dizer o motivo. Fosse o que fosse, se sentia duas vezes mais sensível ao desdém daqueles velhos e velhas. Ainda bem que não estava sozinha com aquela gente. Agradecia aos céus por isso toda vez que Keiko iniciava uma fala, ou que alguém mencionava a jovem sucessora de sua mãe. Para evitar qualquer coisa, Kin discursava o mais brevemente que podia, só quando era obrigada e, quando parava de falar, fixava os olhos na borrachinha vermelha do lápis amarelo que tinha em mãos.

No entanto, era óbvio que aquilo não terminaria sem que alguém fizesse um teste de fogo com sua paciência. Aquele que menos gostava dela, que mais queria vê-la fracassar, tomou a palavra e, cínico, desrespeitoso desde o começo, disse:

— Eu não entendo essa insistência em dar pra uma fundação dessa finalidade, tão relevante, o nome de alguém que nunca fez nada pelo Reino de Órion. "Mari Iminari". Nem mesmo no momento da morte fez algo que justificasse toda essa atenção. 

Kin se sentiu como se sua cabeça rodasse, como se tivesse levado uma paulada nela. A fúria, há muito contida no fundo de seu coração, veio toda, de súbito, para a superfície. Partiu com uma mãozada a mesa em torno da qual estavam, sombriamente séria, como se nada pudesse pará-la. Todos recuaram apavorados, inclusive Keiko. 

— Agora você passou dos limites! Quem você acha que é pra falar assim dela, seu desgraçado filho da puta?! Eu te mato! Eu vou matar você!

 Descontrolada, realmente investiu sobre ele como quem ia contra uma fera abominável. O sujeito não teve tempo de reação. Não fosse por Keiko, cairia sem nem saber como foi atingido. A guardiã entrou na frente e segurou a primeira ministra pelo pulso do braço erguido. Surpreendeu-se com a força que a loira impunha sobre ele, a encarou como se não a conhecesse. Ela queria mesmo matá-lo, pensou, assombrada. A conteve com mais força. Kin lutava, não desistia de ir até o fim no que tentou. Os demais ministros, aterrorizados, deixaram a sala. 

Keiko achou que vencê-la pela força não seria boa ideia e olhou a retalhadora injuriada nos olhos, procurando a Kin que conhecia.  

— Kin! Kin! Para! — Exclamava, tentava que a primeira ministra recuperasse a razão. Só lá pela quarta vez que chamou o nome dela recebeu um sinal de que ela estava voltando a si, então, motivada por isso, perseverou: — Ei, se acalma! Sou eu, é a Keiko, tá?! Eu tô aqui! — Com isso, Kin foi reduzindo a força empregada até desistir totalmente da investida assassina. Calma, devolveu o abraço que ganhou de Keiko e chorou com o rosto no ombro dela.

— Me desculpa! E-eu, eu não queria... Não ia...! Desculpa! Por favor! — Pedia, entre as lágrimas. 

— Eu sei, filha! Eu sei! — A perdoava, acariciando os cabelos dela. — Tá tudo bem! 

O abraço acabou quando o homem que Kin quis atacar sofreu um infarto e caiu para trás, a Guardiã da Terra correu para acudi-lo. Kin correu lá para ajudá-la, foi quem fez a massagem cardíaca. Nenhuma resposta.

— Senhor Isaho! Reage! — Implorava a loira. 

Keiko se inclinou para ouvir os batimentos, verificou o pulso e viu que era inútil chamar uma ambulância. Nada disse. Nada precisou dizer para a guerreira de Órion entender o que aconteceu. O que eu fiz?, Kin sentou e, boquiaberta, meditou sobre aquilo. Pasma consigo mesma. Se deu conta de que pôs tudo a perder. Tirou uma vida. Desapontou todos com quem se importava, seus inimigos usariam esse ocorrido como argumento até contra a fundação. 


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