Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 4
Bolo, musas e gente estranha




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Estamos com o prazo apertado, Matt.

— Eu sei, Pauline. Estou trabalhando nisso.

Rotina, infelizmente, não se tratava apenas de uma sequência interminável de atividades simpáticas e parassimpáticas no que eu considerava ser o grande sistema nervoso da minha vida financeira. Tratava-se de frases, ou mesmo um grupo de palavras específicas que, quando unidas numa sentença, tornavam-se particularmente insuportáveis de lidar. Um belo exemplo delas veio numa enxurrada. Fechei os olhos para contabilizá-las.

“Prazo apertado”, “Matt”. “Pauline”, “trabalhando nisso”. Eu as guardaria para incinerar mais tarde, de preferência com um lança-chamas mental absurdamente grande.

De um lado, eu compreendia Pauline. Ela só estava cumprindo seu trabalho. Porém, sua função como curadora da galeria lhe dava alguns confortos que me deixavam fora dos eixos. Por trás de palavras como essas, havia o lembrete sutil: Sou eu quem arranja trabalhos para você. Você precisa de mim, mas eu não preciso de você. Não se esqueça. Então, ser lembrado dessa dependência quando já estava ciente dela era no mínimo humilhante. Porém, o que eu poderia fazer a respeito?

É bom que esteja mesmo. A primavera não vai durar para sempre, Matt, não posso mudar as forças da natureza para e adequarem ao seu tempo. Eu preciso de ao menos uma amostra do que está planejando para apresentar ao cliente, um rascunho já serve.

— E-eu te mando o rascunho semana que vem, Pauline. Prometo.

Ah, não. Ah, não. O que é que me deu na hora para soltar aquilo? Não tenho a menor ideia. Entretanto, eu lembro no momento de ter vontade de jogar o celular longe ou fingir demência. Não fiz nada disso; pelo contrário, apenas forcei um sorriso torcendo para que ele fosse perceptível o outro lado da linha.

Ótimo! Muito bom mesmo. Agora sim, estamos falando a mesma língua. Espero seu contato em uma semana.

— Uma semana — repeti para ela e para eu mesmo, reafirmando meu talento em ser um completo idiota. — Isso mesmo.

Até lá, então.

Pauline encerrou a ligação, o que me fez suspirar de alívio. Mais um pouco e eu diria que poderia enviá-la um rascunho no dia seguinte! Ah, meu Deus, eu deveria fazer algum tipo de autoterapia de choque!

Respirei fundo ao menos dez vezes antes de fechar minha mala. A voz de anciã sábia da tia Georgie invadiu meu subconsciente: “Vai enfartar daqui a pouco, Matty, respire aí”. Optei por rir sozinho da minha desgraça – fora, é claro, mandar uma mensagem ao Gil informando que iria dar início ao meu êxodo urbano para o longo trajeto de três horas e meia no transporte público para o que ele gentilmente chamava de “fim de mundo”. Deixei de lado a burrada de mais cedo com a Pauline – apesar de que isso poderia gerar entretenimento de qualidade no futuro – e parti para a terra dos matos e vaquinhas.

Descobri que o melhor jeito de me orientar por Healdsburg era pedindo informações aos moradores. De duas, uma: ou os habitantes eram naturalmente acolhedores ou amavam turistas. Apesar de ter perguntado pelo endereço, o home com chapéu de pescador indicou tanto a direção como acrescentou “está indo ver a Georgette? Diga que o velho Lyle mandou um alô”. Eu, particularmente, achei muito assustador, porém guardei o comentário para mim. Fosse como fosse, cheguei parcialmente são e fisicamente salvo à casa da tia Georgie.

Mesmo que eu não a visse há um tempo, sua aparência ainda era a mesma que eu tinha da boa e velha tia Georgie – certo, talvez com alguns cabelos brancos a mais –, toda baixinha e roliça, com as bochechas sempre coradas e um avental amarrado ao vestido de algodão. Afinal, dizia ela, é sempre bom estar pronta e confortável. Receptiva como sempre, tia Georgie adiantou-se para me abraçar forte.

— Ah, mas como você cresceu! — de fato, ao invés de me abraçar por inteiro, tia Georgie abraçou apenas minha cintura. — Ou será que sou eu que estou diminuindo?

— Quem sabe um pouco dos dois? — sorri. — Senti sua falta, tia.

— Mas é claro que sentiu! Venha, preparei um bolo gostoso para nós tomarmos um belo café da tarde. Nossa, mas você demorou horrores!

Ri baixo, deixando a mala no chão fora do caminho. Era verdade, o cheiro de bolo no ar era irresistível.

— Vim de transporte público — expliquei dando de ombros. — Eu vendi o meu carro.

— Ah, querido, sinto muito. Cansou?

— Confesso que aquele banco retraído matou meus joelhos... Estou cansado o suficiente para me entregar a um pedaço de bolo, se é isso que te preocupa.

— Ótimo!

Soltando-me apenas para me guiar até a cozinha, tia Georgie só faltava dar pulinhos de alegria. Segui-a de perto, demonstrando – senão com palavras ao menos com ações – que estava mais do que contente em estar ali. Tia Georgie serviu um belo pedaço de bolo de banana e uma xícara de café preto, em seguida me segurou pelas bochechas para dar um monte de beijos pelo meu rosto. Sentia-me uma criança sendo mimada pela avó.

— Nesse ritmo eu fico aqui para sempre... Era esse seu plano?

— Se for esse o caso, jamais vai ouvir da minha boca.

Gargalhei, cortando um pedaço do bolo com o garfo.

— Aliás, hum... O “velho Lyle” mandou um alô...?

— Ele assustou você, não foi? — tia Georgie riu, tomando um gole do café. — A maioria das pessoas aqui se conhece por nome. No começo eu também achava bem estranho, mas agora que já vivo aqui há algum tempo estranharia demais dar bom dia em San Francisco e receber uma carranca em resposta... Faz sentido?

— Faz... É, tudo tem seus prós e contras, imagino.

Tia Georgie assentiu com a cabeça, enquanto eu me aventurava com meu próprio pedaço de bolo. Com um suspiro, confirmei para ela que ainda amava seu bolo de laranja. Reparei nos seus olhos marejados, e por esse motivo abracei-a de lado sem dizer nada. Sabe um daqueles casos de “só damos valor quando perdemos”? Aquele em específico era uma variação. Eu só lembrei de que sentia falta daqueles momentos quando me deparei com eles novamente. Era um belo de um tapa na cara para quem considerava isolar-se voluntariamente do resto do mundo como boa opção...

Fosse como fosse, ao longo do dia eu dividi minhas preocupações no trabalho com a tia Georgie. Com toda a paciência do mundo, ela me ouviu falar sobre os prazos apertados, sobre a falta de inspiração, a comparação de tempo de produção com as dos amigos... Tudo saiu com tamanha naturalidade que pareceu que eu estava tendo um monólogo em frente ao espelho. Uma grande massa de mau tempo abandonou meus ombros; apesar de que nem todo peso tivesse ido embora, já era um avanço. Quando terminei de falar, já tinham ido duas xícaras de café e quatro pedaços de bolo. Ao recolher a louça, tia Georgie indagou em tom gentil:

— Sente-se melhor, querido?

— Nossa... Muito melhor. Obrigado por ouvir. Foi... Bom... Colocar para fora. É.

Uau. Com uma colocação de gramática e dicção tão admiráveis, era praticamente impossível decifrar o porquê de o meu ofício ser visto e não falado.

— Já que foi bom assim, me permite fazer uma concessão, bem rapidinho?

Concordei com a cabeça. Por sua vez, tia Georgie voltou a se sentar, ostentando no rosto a leveza de quem tinha uma sabedoria de mil anos escondida atrás do avental.

— Eu acho que você superestima o conceito de inspiração, Matty.

Pisquei um tanto confuso com a sua colocação, porém fiz um sinal com a cabeça indicando que ela continuasse a linha de raciocínio.

— Você está aí... Confiando numa musa inspiradora que pode não existir no seu caso, meu bem. São pouquíssimas as pessoas que conseguem atribuir suas ideias a uma fonte de inspiração vinda de uma força externa divina. Ser tocado por alguma “musa” é algo raro, megalomaníaco. Você é um homem comum, Matt, e sob essas condições é muito, muito sortudo por depender apenas de si mesmo e não de algo místico e egoísta.

— Sabe, tia Georgie, eu percebo que você sabe muito mais de mim do que o contrário — sorri de lado, sentindo as bochechas esquentarem consideravelmente.

Nesse ponto, ela sorriu com carinho.

— Imagine... Sou só uma velhinha.

— Acho que a senhora se subestima, tia Georgie.

— Enfim — foi a vez dela e corar com o elogio. — A inspiração não cai cair do céu, Matty. O que pode fazer... Aliás, o que já está fazendo... É ir atrás da “inspiração”, se ela não vem até você. É bem simples, até.

— E como eu faço isso...?

Tia Georgie se arrumou na cadeira, suspirando para se organizar nas ideias. Mesmo tendo se aposentado, todo seu ser ainda declarava os anos dourados como professora de história. Apesar de eu nunca te estudado na mesma escolha que ela lecionava, não quer dizer que nunca tivemos nenhuma conversa casual sobre a matéria para eu ter noção da sua inteligência. Era bem mais do que suficiente para que eu lhe desse todos os créditos pelo conselho.

— Observar o mundo... Conhecer coisas novas, pessoas novas. Se alimentar do trabalho de outros artistas. Veja bem, nem toda obra será a mais bem-feita, mas são essas pequenas obras que vão auxiliá-lo a chegar ao seu projeto principal. É sempre bom lembrar, meu anjo, que a perfeição é alcançada através da prática e do esforço. O talento é fundamental, é claro, porém...

— “O esforço supera o talento se o talento não se esforçar” — citei uma de suas frases prediletas, obtendo um sorriso de aprovação de sua parte. — Entendi o ponto.

— Agora tem uma semana para correr atrás de aplicá-lo.

— Golpe baixo — ri baixo erguendo as mãos em defensiva. — Obrigado, tia Georgie.

— Estou aqui para isso. Agora, e eu acho que devo ter me esquecido de avisá-lo a respeito, estou esperando visitas hoje. A velha tia Georgie aqui ainda faz dinheiro como professora, e hoje é dia de reforço.

Assenti efusivamente com a cabeça, me levantando instantaneamente para recolher o resto da louça que havia sujado.

— Claro! Vou ficar bem quietinho sem incomodar, tia. Eu cuido da louça aqui.

— Ah, que maravilha. Mas vamos guardar as malas no quarto primeiro, que tal?

— Oh, é mesmo! Eu me esqueci dessa parte.

— Só não esquece a cabeça porque está no pescoço, hein, garoto?

Gargalhei de nervoso, dessa vez seguindo-a com o rabo hipotético entre as pernas. Apesar da vergonha iminente, não me lembro de ter sorrido tanto antes daquele dia.

A tal visita/aluna da tia Georgie – melhor dizendo, “senhorita Georgette” – chegou atrasada sete minutos. Apesar disso, a professorinha recebeu-a com um sorriso elegante e comigo lavando a louça de fundo.

— Desculpe-me, senhorita Georgette, eu peguei dois sinais vermelhos no caminho para cá e não quis me arriscar... A senhorita sabe que eu sou muito avoada — a garota sorriu, ajeitando a franja que havia bagunçado com o vento. Ao me notar ao fundo, gaguejou com timidez: — É-é, oi...

— Não precisa se acanhar assim, Sarah. Matthew não morde. Morde, querido?

Neguei com a cabeça, rindo dos seus termos.

— Depende — devolvi a brincadeira, enxugando as mãos para ir cumprimentá-la. — Muito prazer em conhecê-la...?

— Sarah Palmer — a garota estendeu a mão de prontidão. Cômico foi a mão de uma menininha daquelas ser mais firme que a minha. — Oi.

— Matthew Carpenter — sorri. — Não vou incomodar, prometo. Na verdade, o intruso sou eu.

Daí, Sarah arregalou um tanto os olhos. Já eu franzi a testa, ainda mais porque Sarah continuou segurando minha mão e tive de pigarrear de leve para que ela a soltasse. Tia Georgie nada notou, porquanto que comentou no maior tom de mamãe coruja:

— Matt vai aparecer mais vezes nas aulas, querida. Pode ir se acostumando.

— A-ah! Veio passar uma temporada aqui?

— Ele veio lá de San Francisco atrás de sua musa inspiradora — tia Georgie riu com ironia sutil. — Depois de anos tentando convencê-lo, ele veio.

Sarah arquejou, sentando-se na cadeira.

— Trabalha com o quê, Matthew...?

— Eu? Sou pintor — alternei o olhar entre ela e a tia Georgie. — Está se sentindo bem?

— Pegue o jarro de água na geladeira para nós, Matty? — a professora interveio, colocando uma mão no ombro dela. — Tudo em ordem?

— Sim! Sim, eu só... Acho que a pressão caiu. Desculpem... Água é bom, obrigada.

Fiz conforme pedido e servi dois copos de água gelada para as senhoritas. Após beber a água, Sarah esboçou o que parecia ser uma ótima tentativa de um sorriso tranquilo.

— Muito melhor, obrigada.

— Já que está se sentindo melhor, vamos nos organizar para começar a aula, mocinha — tia Georgie piscou para ela. — Depois vocês se falam mais.

Sarah concordou apesar de ainda aparentar estar um pouco perdida. Quanto a mim, apenas acenei com a cabeça e voltei a lavar a louça enquanto a tia Georgie discorria sobre a Festa do Chá de Boston.

Eu estava mesmo com medo de ter caído no fim do mundo. Será que todos naquela cidade eram meio doidos?


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Notas finais do capítulo

vai dar merda, vaaaaaaaaaaaai ♪



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