Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 28
Sábados, quadros e "adorabilidade"




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Assim que estacionamos, senti minhas pernas tremerem horrores ao sair do carro. Minha sorte foi que eu estava de carona e sem nada na mão para derrubar, portanto ninguém viu quando quase caí da minivan e fui obrigado a me segurar na porta para encontrar a Madame Motorista. Cecilia brincava com as chaves do carro, e o barulho me relaxou.

 — Pronto? — ela sorriu e se soltou do cinto de segurança, para depois ir até as portas de correr para abri-las. May Geller bocejou e se espreguiçou com a movimentação. — San Francisco, querido. Como se sente?

— Como se fosse uma gelatina — ri de nervoso. — Estou bem adiantado, então acho que vou ficar esperando dar a hora no banheiro.

— Ah, Matt... Sinto muito... Algo que eu possa fazer para ajudar?

Neguei com a cabeça, me adiantando para lhe dar um beijo rápido. Cecilia sorriu, com as bochechas coradas. Acho que entendi o porquê de sua timidez subida – era a primeira vez que “compartilhávamos intimidades” na frente de pessoas conhecidas. Era um grande passo. Se ela não havia recuado, era um bom sinal... Não era? Bem, deveria ser. Se não fosse...

— Tá tudo bem, Ceci. Só vá e boa sorte com o casório.

Ela assentiu com a cabeça, indo desafivelar o quadro coberto. Igualmente tímida, Sarah esticou o pescoço para ficar visível onde estávamos.

— Eu posso ver...? O quadro?

— Ah! Tá bom — soltei a fivela de baixo, erguendo o pano para que a figura da mulher vitoriana. May e Angie imitaram seu gesto e se achegaram para frente. — Eu bem que pensei em fazer uma cópia para deixar de presente, mas... Bom, primeiro que não iria ficar igual, e depois que eu não tinha certeza de que iria terminar a tempo de entregar. Entendeu?

Sarah fez que sim, aparentemente muito encantada com o que via. May analisou o quadro com atenção, mas foi Angie quem comentou:

— Caramba, é muito bonito. Parabéns, Matthew.

— Ah, puxa, obrigado — sorri um tanto encabulado. — Muito gentil, Angeline.

Ela abriu um sorriso contido, quase como se não soubesse como fazer aquilo espontaneamente. Quem era eu para julgar? Eu fazia igual, ora essa.

— Bom trabalho, meninas — desejei. — E boa volta para casa depois... Quem é que vai dirigir?

— Eu — May abriu um sorriso maldoso. — Vai ser incrível. Maneiro o quadro, Matt. Não desmaie.

— Vou tentar — em seguida, voltei-me para Cecilia. — Gil nos chamou pra ir até a cafeteria que ele trabalha, você topa? Dar uma moral?

Ela assentiu com a cabeça, abrindo um sorriso enorme. Foi impossível não sorrir junto, por isso escolhi esse momento para afivelar novamente o quadro e segurá-lo debaixo do braço. Respirei fundo mais uma vez, mas dessa vez não senti os tremores anteriores.

— Obrigado. Vejo vocês depois.

Era praticamente uma promessa, que apenas Cecilia saberia ler nas entrelinhas. E eu só fui reparar aquele detalhe quando estava entrando na galeria para me encontrar com Pauline e o cliente.

Edward Tew era claramente parte do estereótipo de amante da arte. Em seus quase sessenta anos, roupa social muito bem engomada, cabelos loiros e grisalhos e olhos castanhos gentis. Quando vi sua expressão – a de um homem paciente, não a de um exigente –, minha postura relaxou. Mas não muito. Porque Pauline era a parte exigente. Sua roupa também era engomada, mas ela era altiva. Com cabelos pretos bem curtos e olhos azuis bem gélidos, toda sua postura me dava uma mensagem cristalina: não cometa erros. Do contrário, não precisa nem voltar.

— Boa manhã, senhor Carpenter — o senhor Tew me cumprimentou com um aperto de mão caloroso e firme, quase me tirando dos eixos. — Ouvi falar muito bem do senhor, é um prazer finalmente conhecê-lo!

— B-bom dia, senhor — devolvi o aperto de mão com nervosismo, torcendo para que minha mão não estivesse empapada de suor. — Igualmente, senhor.

Versão “corte do diretor”: eu também ouvi falar muito bem do senhor. Versão real: Pauline não me disse nada a respeito do senhor, mas é muito bom saber que o senhor não é uma fraude”. Vamos nos manter no corte do diretor.

Pauline me olhava de soslaio. Soturna e juíza. Engoli em seco e dirigi meu bom dia – um aceno de cabeça – a ela. Só para não passar despercebida.

— Pois bem, vamos ver o que é que temos aí — o homem esfregou as mãos em ansiedade, logo depois fazendo um gesto com a mão que dizia “vamos em frente, sim?”. Confesso que gostei do que vi. Ele era o mandachuva ali, não Pauline. Justiça foi feita, amém. — Dei muito trabalho a você, senhor Carpenter?

Pensei bem na resposta. Ele poderia estar só sendo simpático... Ou poderia ser um teste. Quem me garantia?

— De início, sim... Mas isso se deu mais pela falta de inspiração do que pelo pedido em si.

— Pauline comentou que o senhor se mudou para uma cidade menos movimentada para trabalhar. Isso ajudou?

Assenti com a cabeça, centralizando a tela no cavalete. Tentei não pensar que estava sob o olhar atento de duas pessoas “influentes” e apenas comprimi os lábios. Desafivelei o quadro e fiz um clima de suspense de propósito. O senhor Tew continuou:

— Para onde foi?

— Healdsburg, senhor — sorri de lado. — Passei o tempo com uma antiga vizinha que se mudou para lá. Quando cheguei lá, entendi o porquê.

Ele pareceu ter achado graça, porquanto que soltou uma risada aparentemente espontânea e jovial.

— É necessária uma folga, de fato.

Encerrei o suspense e retirei o pano da frente do quadro. Houve uma pequena comoção silenciosa enquanto eu retornada para o lado dos dois, quase como se fosse parte dos espectadores. Ou eu fazia isso ou eu me deitava no chão e chorava.

O silêncio perdurou por alguns segundos e, nesse meio tempo, o sangue correu pelos ouvidos como um tambor. Quando se pronunciou, Tew foi enigmático:

— Como você chegou até essa conclusão?

Foi isso. Nenhum elogio de início. Tranquilizei-me mais pela confusão do que pela garantia de que estava tudo bem. Em geral, os clientes eram lacônicos: ficou bom ou ficou ruim, refaça.

— Desculpe, senhor?

— Como é que chegou à conclusão de que queria trabalhar exatamente no que veio a se tornar o resultado final? A modelagem, a composição das cores, o traço... Conte-me um pouco sobre o processo de criação, senhor Carpenter.

Troquei o peso dos pés, olhando através de Pauline. Aparentemente, ela notou que nenhuma palavra fora dirigida a ela, então endireitou a postura – ainda mais, se é que era possível; mais um pouco e envergaria para trás – e voltou-se para Edward Tew.

— Com licença, senhor. Farei algumas ligações.

Não ia nada, estava era sobrando e não sabia como reagir... Mulher insuportável.

Desculpe. Meus pensamentos são desdenhosos, às vezes.

Certo, muitas vezes. Prossigamos.

Pauline se retirou da sala e Edward Tew continuou me encarando na galeria agora vazia. Respirei fundo e desviei o olhar para o quadro. Aquela era Cecilia, e Cecilia me acalmava. Eu podia falar.

— Eu vou ser sincero com o senhor... Eu não gosto da primavera. Não é minha estação favorita. E gosto menos ainda de trabalhar sem um norte. Eu trabalho, mas não é minha preferência.

— Compreendo — ele comprimiu os lábios.

— Se tivesse um norte, eu poderia até entregar o trabalho com antecedência. O senhor vai concordar que já estamos no verão, então isso pode ser considerado um atraso um pouco mais delicado, certo?

Era uma pergunta retórica, mas mesmo assim ele assentiu com a cabeça, com minha linha de raciocínio.

— Foi por esse motivo que procurei essa minha vizinha — continuei até mesmo um pouco saudoso. Pouco mais de dois meses eram suficientes para aquela sensação? — Para procurar um norte. Para tentar relaxar. E então, depois de um tempo, eu... Consegui encontrar a inspiração.

— E foi a sua musa — ele supôs com um sorriso. — A que o senhor retratou.

Assenti, sentindo as bochechas pegando fogo. O adolescente atacava de novo.

— Não queria cair no clichê das flores, mas... Aconteceu que eu conheci uma florista — ri percebendo a ironia da situação. Imaginei que ele tivesse sorrido em seu canto. — E ela falava com tanto carinho... Tratava com tanto carinho... B-bem, eu sou um homem sensível. Fiquei comovido e registrei a cena. Não tive dúvidas. Eu só... Esbocei tudo na hora, sem pensar. E ela concordou.

Olhei para ele, que provavelmente estava tentando visualizar o que eu relatava.

— E você a conhece bem — Tew afirmou. Achei curioso. — Os traços são delicados e, simultaneamente, borrados... Quase como se quisesse manter a fidelidade de sua aparência apesar de temer não ser fiel o suficiente. Acontece com os olhos que apreciam... O perfeccionismo em nome do sentimentalismo...

Eu não entendia como é que ele concluiu aquilo só olhando para o quadro, mas resolvi dar crédito à sua perspectiva. Afinal de contas, ele não estava certo? Por mais que divagasse?

— Bem... Sim, senhor...

— Disse que era um homem sensível, senhor Carpenter? Pois bem — ele sorriu com gentileza, voltando-se diretamente para mim. — Acredito que eu também seja. E, particularmente falando, acredito que a sensibilidade é essencial na arte. O amor, então, é um belo diferencial. E é o que vejo em seu quadro. É o caso?

Engoli em seco. Eu tinha dúvidas? Claro que não. Mas, perdoe-me pela repetição, dizer algo em voz alta é fazer com que aquilo ganhasse força – ao menos, era no que eu acreditava. A grande questão era: eu falaria porque gostaria de agradar ao senhor Tew ou porque havia encontrado força suficiente?

Fosse como fosse, eu assenti com cabeça. E Tew fez o mesmo, com ares satisfeitos. E então, após dar alguns passos para o meu lado, ele estendeu a mão mais uma vez para apertar a minha.

— Fez um bom trabalho, senhor Carpenter. Muito obrigado. Eu diria que a sua musa é mesmo a personificação da primavera. Acha que pode fazer uma série de quatro quadros com essa temática? As estações?

Naquela hora eu podia me mijar todo de felicidade, porém sabe-se lá como não fiz isso. Ao invés disso, apenas retribuí o aperto com um sorriso simpático. Ainda bem que ele não tinha insistido no processo das cores, porque eu só tinha me deixado levar pelo vermelho cardinal.

— É claro, senhor. O senhor gostaria de fazer alguma negociação com Pauline? Acredito que ela retornará em breve...

Tew riu jovialmente, ajeitando sua camisa com pouco cuidado. Parecia até que ele estava tão nervoso quanto eu. Não era algo impossível de se imaginar, uma vez que seu dinheiro estava envolvido. Esqueci-me de acrescentar uma das possíveis respostas de clientes: eu não vou pagar por isso.

— Não creio que seja necessário — ele sorriu, dando-me de presente um olhar em que li... Cumplicidade? Em seguida, retirou um cartão de visitas e entregou-o a mim. — Pode entrar em contato comigo através deste número. Por que não tira umas férias? Para aproveitar o verão? Quem sabe não encontre outra inspiração em Healdsburg? Sem trocar sua musa, é claro...

Gargalhei de nervoso, guardando o cartão no bolso do paletó. Meu Deus. Aquilo era mesmo verdade? Eu tinha quase me mijado nas calças pela primavera inteira para no final ser só isso? Quer dizer, não que eu estivesse reclamando, porque era uma coisa maravilhosa para o momento, mas era no mínimo revoltante.

— De modo algum, senhor. Não é o que pretendo. Q-quer dizer, não vou. Mas... É claro, senhor. Entrarei em contato no final do mês.

— Por favor, pode me tratar por Edward. Será um prazer fazer negócios com você, senhor Carpenter.

Aquiesci, simulando todo meu profissionalismo ao receber o envelope com o pagamento. Tive de fazer um esforço absurdo para não sorrir com o pensamento de que viriam mais três daqueles. Eu poderia pagar o aluguel atrasado. Poderia comer outra coisa além de comida congelada. Será que eu tinha comido toda a comida da geladeira?

— É só descontar no banco o cheque. Acredito que seja mais seguro para sua conta — para finalizar, Tew me liberou com alguns tapinhas amigáveis nas costas. — Até mais ver, senhor Carpenter. Espero ouvir notícias suas em breve, garoto.

Devolvi o cumprimento e me despedi de Pauline – que estava muito ocupada em seu celular para oferecer mais do que um aceno curto – e, assim que virei a esquina mais próxima, não deixei de fazer uma dancinha da vitória. Só para fins de sanidade.

 

— Ele quer seu corpo nu numa bandeja.

Foi a opinião de Gil, e ele a forneceu junto de dois hambúrgueres. Cecilia gargalhou com seu comentário, concretizando minha teoria de que eles se dariam bem instantaneamente. Eu, infeliz, não tive opção além de rir com amargura dos dois.

— Muito engraçado, Gilbert. Ele me chamou de “garoto”.

— Isso é uma oferta de ser um sugar daddy.

Age gap — Cecilia concordou, beliscando uma batata-frita do prato. — Quer dizer, isso se você insistir na ética moral. Dormir com o cliente e tal. Mas se não for o caso é uma graninha extra.

Encarei-a com uma careta de brincadeira. Fingindo surpresa.

— Você não era assim, Cecilia. Do Gil eu já esperava esse tipo de coisa, mas você? Sinceramente, eu estou decepcionado. Gil é uma má influência pra você.

— Lamento em dizer, Matthew, mas parte disso é influência sua. Eu não era assim antes de você.

— Ah, essa referência foi péssima. Você nem leu o livro!

Ainda! Mas eu vou!

Gil observava tudo como se estivesse numa partida de tênis. Com um riso maldoso, Cecilia atacou o hambúrguer, deixando a encargo de o meu amigo me dar uma olhada universal de “ah, vocês dois são adoráveis”. Os adolescentes hoje até usam um termo específico para isso, mas não me lembro de qual é. Enfim.

— Aí, galera, eu preciso voltar ao trabalho... — Gil se lamentou, abraçando a bandeja e exibindo um bico tristonho. — Mas obrigado... Cecilia, foi um prazer conhecê-la. Volte mais vezes. Nem precisa trazer o Matt, você é mais legal.

— Não é muito difícil ser mais legal que eu — opinei.

Cecilia quase engasgou com o hambúrguer ao rir, mas acenou para Gil enquanto ele voltava para o balcão.

Éramos mesmo adoráveis, não éramos?


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Notas finais do capítulo

Reparei que no capítulo anterior eu me esqueci de deixar o link pra pintura que me inspirou no quadro do Matt, então deixo ela aqui hoje:
https://i.pinimg.com/564x/e3/22/4b/e3224b7465a9a88a07ca0013efa6fc66.jpg



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