Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 23
(Mais) fofoca, irmandade e sobremesas




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Quando eu era pequena – até mesmo quando eu era uma adolescente –, eu vivia achando que, se não soubesse disfarçar direito, todas as outras pessoas descobriram os meus segredos. Segredos bobos, do tipo... “ah, meu Deus, vão descobrir que fui eu quem quebrou aquele computador na sala de informática entrando num site que tinha vírus”. Ou então “se eu continuar andando desse jeito vai dar na cara que eu me chacoalhei toda no banheiro porque não tinha papel higiênico”. Algumas vezes, podia ser “agora já era, é óbvio que ficou na cara que sabiam que eu estava mentindo quando disse que não me importava com algo que me ofendeu profundamente”.

Isso, é claro, foi antes de eu reparar que ninguém se importava comigo o suficiente para ligar para o que eu fazia ou deixava de fazer. Então, mesmo que às vezes eu suspeitasse de que alguém sabia que eu tinha feito amor três vezes com Matt Carpenter – não que eu tivesse contado—, eu tentava convencer a mim mesma de que ninguém ligava o suficiente para cogitar essa ideia.

Ah, como eu estava errada. Na única ocasião em que eu precisava passar despercebida – como de costume –, aconteceu exatamente o contrário. A vida gostaria de me contrariar.

Na tarde de sábado, no dia da nova reunião do Clube de Costura, eu reparei que já havia algum burburinho na casa dos Goodwin. Era no mínimo desconfortável que todos fiquem em silêncio quando você entra num cômodo, ainda mais quando todos olham diretamente para você. Quer dizer, nem para disfarçar...?

Sentei-me em meu lugar comum: a janela em frente à roseira – que agora já estava amarelando –, após cumprimentar a todos com um aceno geral de cabeça. May e Angie já haviam ocupado seus lugares próximos a mim, coisa que eu ainda estava me acostumando. Quando elas notaram minha presença, ambas ergueram o olhar para mim com... Pena?

— Oi, Ceci — May sorriu de lado, afastando a mecha azul da frente de seu rosto. — Como vai?

— Eu vou bem... E vocês?

May assentiu com a cabeça, parecendo aérea. Angie desviou o olhar, me alertando de que algo realmente estava errado. Angie sempre se mostrava impaciente quando estávamos juntas, mas nunca desconfortável.

— Meninas... Uma de vocês precisa me dizer o que está acontecendo. Acabei de chegar e já quero ir embora pela janela. Por favor.

Angie suspirou exasperada. Como se tivesse chegado ao limite de sua paciência. Não é como se sua paciência fosse a sua qualidade mais marcante, mas ainda assim...

— Sinto muito, Cecilia. Eu tentei dizer pra ela que aquilo simplesmente não era da conta dela, mas ela não me ouviu. Ela nunca me ouve — Angie suspirou num misto de ressentimento e irritação. — Eu te juro que não tenho nada a ver com isso. Perdoe-me.

Franzi a testa, me ajeitando na poltrona. Olhei para ela, tentando compreendê-la. Angie era uma grande incógnita. Incompreendida. Eu não conseguia me conectar com ela emocionalmente, e era nítido que era ela quem erguia barreiras entre nós. Por mais que eu quisesse, enquanto ela não estivesse disposta a se aproximar, eu me manteria confortavelmente distante. Por isso, perguntei:

— Angie, querida... Não faço ideia do que você está falando. Eu gostaria de saber sobre o que é e por que é que você está se desculpando. Pode fazer isso por mim?

Ela me olhou de volta, aparentemente confusa e surpresa com o meu pedido. Angie e May trocaram um olhar de interrogação. Era bem justo lhe dar o benefício da dúvida. Após isso, Angie respirou fundo e inclinou-se para frente a fim de falar num tom baixo:

— Olhe, eu vou te falar o que eu sei. Parece que minha avó viu o seu... Eu não sei, o seu ex? Bem, ela viu vocês dois juntos na quarta-feira e... B-bom, foi xeretar na janela e viu alguma coisa. Aí ela disse pra minha mãe. E aí ela contou pra mãe da May.

— E você sabe que a minha mãe é uma fofoqueira — May completou a fala da amiga. — Continue.

— É. Agora meio que todo mundo já sabe. Ou eles acham que sabe. Quer dizer, mesmo se isso fosse verdade...

— E é — falei casualmente.

— ... isso não seria algo educado a se fazer. Quer dizer, xeretar a casa dos outros? Tipo, uma senhora de idade? Que falta do que fazer.

May escutou o que eu disse e arregalou os olhos. Angie não percebeu nada e continuou seu monólogo.

— Eu até dei uma bronca na minha avó, mas aí a minha mãe disse que ela estava certa em verificar quem é que estava se metendo comigo e que não queria que eu andasse com gente do seu tipo. A gente nem falou nada para a Sarah, porque ela é muito sua amiga e tal, mas eu fiquei muito irritada. Como se eu não soubesse com quem estou andando. Gente do seu tipo? Quer dizer, que babaquice!

Apesar de Angie ser repetitiva em seu vocabulário, fiquei bastante comovida com sua defesa. Eu sempre tinha achado que ela, a mãe e a avó eram uma espécie de trindade fuxiqueira, mas agora vendo e ouvindo sua discordância quanto às atitudes delas, eu vi que não podia estar mais errada sobre Angie Sharpe. Sua face mal-humorada era um protesto?

— Está tudo bem, Angie — sorri. — De verdade.

— Não, não está. Ah, Cecilia, por favor, me deixe ficar irritada por um tempo, tá? Já estou de saco cheio.

Angie respirou fundo, exasperada. Seus cabelos pretos foram atirados para trás, como se ela precisasse ater-se a algo material para eliminar o estresse. May olhou-a de soslaio, pensando no que poderia dizer. Foi só naquele momento em que Angie reparou no silêncio.

— Gente? Falei alguma coisa errada?

— Angie, querida, eu acho que você se inflamou no seu discurso apaixonado — segurei a risada. — May escutou a fofoca completa, fique esperta.

Ela intercalou o olhar entre mim e May, confusa.

— Fofoca? Onde? Ah, não, gente...

May gargalhou, atraindo alguns olhares em nossa direção. Por incrível que pareça, eu até gostei daquilo. Todo o clima tenso tinha se dissipado com o discurso de Angie, eu já me encontrava mais no controle da situação. Quase me juntei à May em sua gargalhada histérica.

— Na sua frente! Ficou surda, garota?

— Fofoca? — uma voz familiar se juntou a nós, num tom esbaforido. Sarah colocou as duas mãos na cintura, fingindo indignação. — Eu não acredito que vocês começaram a fofoca sem mim! De quem falamos?

May abriu espaço no sofá, e Sarah não tardou a se aconchegar na ponta do sofá ao lado da minha poltrona. Fabriquei minha melhor expressão blasé.

— De mim, querida. Acho que você chegou atrasada nos dois sentidos, porque o negócio já está fervendo.

— Como de você? — Sarah piscou confusa. — E você está bem com isso? Quem é você e o que fez com a minha Cecilia?

Nós quatro rimos, mas é verdade que eu também estava estranhando minhas próprias atitudes. Era nova demais a sensação de ter amigas e de poder rir da minha desgraça com uma plateia. Eu mal esperava para contar à Matthew, igualmente. Seria uma piada interna de grandes proporções.

— Ela e eu dividimos a hospedagem no corpo — brinquei. — Hoje a minha segunda personalidade é quem está comandando.

— E que tal repetir o que você disse? — May indagou ansiosa. — É mesmo verdade?

Respirei fundo, ao passo que elas três pareceram prender o fôlego. Eu era o momento.

— É sim. Nós ficamos juntos — elas soltaram o ar num arquejo. — Mas não se animem demais, não é nada sério.

— Mas já é um começo! — Sarah pareceu ter recebido a notícia do ano. — Ai, Ceci, isso é maravilhoso! Eu o vi na casa da senhorita Georgette, na sexta-feira... Ele é tão legal... Você tirou a sorte grande, Ceci!

— É. Ele é mesmo...

As três se entreolharam, me deixando desconfiando. Será que eu disse algo de errado?

— Há algo de errado com ele? — May perguntou num tom cauteloso. — Porque se tiver...

— A gente dá uma surra nele — Angie complementou me parecendo bastante séria. — É só dizer.

— Ou... Podemos só conversar e entrar num consenso, talvez? — Sarah acrescentou um tanto hesitante quanto à violência sugerida. — Ele é bem grande, eu não sei se é uma boa ideia bater nele...

Acabei rindo de suas colocações, por mais que dava para ver que eram preocupações sérias de suas partes. Com um sorriso, voltei o corpo para conseguir estabelecer contato visual com todas elas. Meu cesto de crochê permaneceu intocado em seu canto, e eu tinha a impressão de que hoje seria apenas o dia do Clube da Fofoca.

— Ah, meninas, obrigada pela prontidão. Mas realmente não é necessário. Matt é uma boa pessoa, eu prometo. Não fui induzida a fazer nada do que eu não quisesse.

As três ficaram visivelmente mais aliviadas. Senti meu coração se aquecendo com o gesto. O bom da geração atual, eu percebia, era que a falta de comunicação era um problema que se encaminhava para ser deixado para trás. Sorri sozinha, mas May logo voltou ao assunto que as interessava:

— Ainda assim, há algo que está deixando-a incomodada. Dá para ver na sua fisionomia.

— É, eu acho que você deveria estar mais feliz — Sarah completou, abrindo um bico adorável. — Se não está feliz é porque ainda há um problema.

Angie assentiu solenemente, ratificando a questão.

As três senhorinhas que cortavam o fio da vida.

De verdade, era bem provável que eu tivesse caído num universo alternativo onde o Clube de Costura fabricava o fio da vida. Grécia, para quê?

— Bem... — mordi o lábio, pensando em como poderia arquitetar a frase. — É verdade. Acho que não consigo ficar completamente feliz sabendo que Matt ainda vai embora. As pessoas têm suas próprias vidas, não é possível conciliar tudo...

Sarah pareceu decepcionada. E eu a compreendia, porque já tinha estado em seu lugar antes.

— Mas o amor sempre vence...

— Isso seria verdade, se ele me amasse, querida... O que não é o caso. Se fosse, eu poderia até concordar e defender seu argumento.

Angie tomou minhas dores. Após olhar em volta e certificar-se de que não havia mais ninguém escutando, respirou fundo e falou com sua melhor voz de sabedoria milenar:

— Eu acho que o amor é muito superestimado. Se ele não te ama, não ame de volta. O seu tempo é precioso demais para ser gasto com quem não te quer por completo. Você não precisa de um homem. Homens são refeições, não sobremesas.

— Meu Deus — as bochechas de Sarah ficaram vermelho escarlate. — Angie Sharpe!

— Mas é verdade! Não é, May?

May assentiu solenemente com a cabeça.

— Se fosse refeição, seria só a carne — ela completou, rindo com maldade. — E uma malpassada, ainda por cima. Nós quem mandamos nos homens, e não o contrário. Ceci, se te preocupar, a gente mantém amizade só com a senhorita Georgette.

Tentei não rir da situação. O pior é que, naquele momento da minha vida, eu concordava em partes com o comentário de May Geller. É claro que dependia bastante, mas no meu caso... Angie estava certa. Eu não iria chorar por Matthew Carpenter. Eu estava me doando de corpo e alma – se ele me quisesse teria de lutar por isso tanto quanto eu.

Até lá, eu me aproveitaria de todos os benefícios.

Quem é que eu estava tentando enganar? Nós sabemos o que vai acontecer se eu não me atentar.

— E o que vai fazer com o resto da situação? — Angie indagou, voltando a abrir seu sorriso maldoso de praxe. — Se quiser o meu apoio contra o império da minha mãe e da minha avó, saiba que posso ser uma aliada e uma porta-voz bastante efetiva.

Meu Deus...

Mesmo um tanto abismada, neguei com a cabeça para a proposta. Seria uma surpresa eu revidar, é claro, mas... Ao mesmo tempo...

Aquela não seria eu. Eu não revidava, por mais que fosse algo que merecesse o revide. Não fazia sentido eu retribuir algo na mesma moeda. Se eu não merecia sofrer, por que a outra pessoa merecia?

— Obrigada, Angie, pela oferta — sorri para ela, depois me voltei para as outras meninas. — E a vocês, pelos conselhos e pelo apoio. Mas acho que vou fazer as coisas do meu jeito. Como a Angie disse, é a minha vida e só eu tenho a ver com ela. Portanto, sua mãe e sua avó podem beber do mesmo veneno, mas eu não vou pegar um copo. Perseguições são baseadas em mentiras e críticas, mas eu sou verdadeira comigo mesma, e é isso que importa. Posso não saber o que eu sou, mas sei o que não sou. E isso inclui ser venenosa.

Sarah ficou boquiaberta, bem como Angie e May se entreolharam, apesar de eu não ter dito nada demais. Recostei-me em minha poltrona, tentando redirecionar minhas energias para o crochê. Meu ódio faria alguém ficar quentinho em algum lugar.

E quando Matthew veio me buscar, eu fiz questão de que ele entrasse para cumprimentar as velhas fofoqueiras. Eu não sabia se ele tinha ouvido as novidades, mas quando eu o olhei Matthew pareceu me entender com o gesto.

— Já não era sem tempo, senhor Carpenter — a senhora Sharpe avó levantou-se com a bengala em mãos. Ela não fazia ideia de que eu já sabia. Ah, meu Deus, ela não sabia. Isso seria tão divertido... — Estávamos doidas para finalmente conhecê-lo!

Matthew abriu um sorriso doce. Quem não o conhecesse que o comprasse. Olhei para Sarah de esguelha, pedindo socorro com os olhos.

— A senhora é a senhora Sharpe, estou certo?

— Em pessoa! — ela exclamou, aparentando satisfação com o reconhecimento. — Ouviu falar de mim, então? Devo dizer que minha família é bastante conhecida por aqui.

— Bem, as pessoas por aqui só se conhecem pelo disse-me-disse, não é? Todos falam sobre mim, mas até agora não recebi nenhuma visita na casa da senhorita Georgette... E olhe que estou aqui há um mês!

Fez-se um silêncio sepulcral. A senhora Sharpe parecia chocada com o afronte, apesar de se recusar a descer de seu salto. E eu ainda estava segurando seu braço como se minha vida dependesse disso.

— Desculpe, eu acho que não entendi o que você quis dizer — a senhora Sharpe riu e preferiu fazer-se de doida. Não sei se funcionou, visto que ninguém riu com ela. — Acabamos de nos conhecer...

— Ah, mas isso não a impediu de falar sobre mim e sobre Cecilia — Matthew sorriu nada abalado. — Sugiro que isso não se repita, sim? Se eu quisesse que falassem sobre mim, eu compartilharia minha vida de muito bom grado enquanto tomamos uma xícara de café. Inclusive, Angeline, a senhorita Georgette convidou-a para um chá quando achar pertinente.

Angie abriu um sorriso enorme. A própria Angie, segundos depois, lançou um olhar de desafio para a mãe, que se manteve quieta. Esperta. Então, de bom-humor, ela caminhou até nós e se despediu de mim com dois beijinhos no rosto.

— Tchau, Ceci. Até depois, Matthew.

Matt sorriu, acenando para May e Sarah. Apesar do que tínhamos conversado ao menos daquela forma elas podiam ter uma prova de que ele era uma boa pessoa. E então, gloriosamente, ele passou um braço ao redor da minha cintura.

Lá fui eu abrir um sorriso bobalhão.

Quem é que ligava para fofoca?

— Obrigada, Nancy — sorri para a anfitriã. Mesmo com o desconforto, eu ainda mantinha minha educação incólume. — Estava tudo ótimo, como sempre.

Nancy também estava perdida com a mudança de cenário, mas assentiu com a cabeça com uma expressão polida no rosto. Acenei para o resto das mulheres, mesmo sabendo que há pouco tempo a maioria delas estava falando mal de mim. Naquele dia, Nona não tinha ido.

Saímos com os corpos colados, e não pude deixar de me sentir ouriçada. Não estávamos juntos e nem nada, porém fingi que sim quando ele resmungou:

— Verdade ou não, ninguém vai te tratar mal enquanto eu estiver aqui. Eu volto pra San Francisco, mas se souber de outra coisa dessas, eu volto pra cá de novo. Isso foi uma babaquice sem tamanho, Ceci.

Aquilo bastava, por ora.


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