Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 24
Decisões, desejos e Simon & Garfunkel




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Era só para eu ir buscá-la. Mas então a tia Georgie me contou sobre o que estavam falando de Cecilia e...

E, bem, eu fiquei possesso.

Cecilia jamais reagiria à altura – aquilo era óbvio. E eu também não queria bancar o homem salvador, mas não podia deixar que ela carregasse todo aquele peso, sozinha. Não era justo. Cecilia era completamente doce e gentil, e não merecia que as pessoas distorcessem sua imagem a troco de apenas ter algo de novo a dizer.

Então, eu tive outra de minhas atitudes impulsivas. Mas, ao olhar a expressão no rosto dela enquanto nós íamos embora, eu tive certeza de que dessa vez eu não iria me arrepender.

— Obrigada — ela disse, abraçando meu braço com mais firmeza. Sua bochecha parecia um travesseiro macio para os músculos. — Isso foi muito legal, Matt...

— Achei que iria dizer “isso foi muito idiota, Matt” — sorri, afagando seu cabelo com a ponta dos dedos. — Planos para hoje?

— Eu diria “chorar até dormir”, mas acho que você não vai me permitir fazer isso, vai?

— Cecilia, a escolha é sempre sua. O que quer fazer?

Ela abriu um sorriso contente.

— Quero dar uma volta com você, Matt. Quer jantar comigo? Podemos terminar de ver o cardápio do Shed, além das sopas. Ou quer ir para outro lugar?

— Agora está bem melhor. O Shed está bom — sorri. — Quero sim. Qualquer lugar com você é bom, Ceci. Vamos ir a bordo da Petúnia?

Cecilia gargalhou, ajeitando-se ao meu lado. Sempre era bom caminhar com ela porque, como uma mulher alta, ficava mais fácil. Era sempre bem-vindo não olhar alguém de cima para baixo, mas sim de igual para igual.

— Vamos andando hoje, seu interesseiro. A Petúnia está descansando. Pobre menina.

— Droga, você me desmascarou... Como sabia que era na Petúnia em que eu estava mirando quando te chamei para dar uma volta?

— Eu gosto de pensar que te conheço bem. Sabe, o seu histórico de preguiça é bastante comprometedor.

— Ou isso ou eu sou terrivelmente previsível...

Ela me lançou um olhar compaixão que me arrancou uma risada desprevenida. Parecíamos dois adolescentes rindo de qualquer coisa, mas eu gostava disso. Acho que servia para compensar por todas as vezes em que era suposto que eu me sentisse daquela forma e não foi o que aconteceu. Era bom mudar a perspectiva.

— Algum problema? — ela perguntou com um tom gentil. — Parece distraído.

Olhei para ela de soslaio. Eu não sabia se era uma boa ideia continuar escondendo as coisas sérias só porque era o melhor para mim. Parecia manipulação barata. E Cecilia não merecia isso. Já tínhamos passado por aquela fase de nos abrirmos sobre pensamentos íntimos. Então, eu suspirei.

— Na verdade, há algo me incomodando, sim. E... Eu gostaria de falar sobre isso, dessa vez.

Ela assentiu com a cabeça, bastante atenta. Continuamos andando até o Shed, iluminados pelas luzes dos postes. Eu ainda estava me acostumando com o fato de que era possível andar pela rua sem o medo intrínseco de um assalto ou pior.

— Eu preciso dizer que eu... Já terminei o seu quadro, Ceci. Já terminei há alguns dias e eu... Não quis te contar até agora. Mas, bem...

Interrompi-me. Cecilia permaneceu me observando com atenção. Eu não podia saber o que é que se passava na sua cabeça, mas era uma coisa de outro mundo que os seus olhos tivessem um brilho tão inteligente sem qualquer indício de malícia.

— Por que é que fez isso? — ela indagou com um tom de voz cuidadoso. — Achei que estivesse com pressa de ir embora... Não estava?

— Também achei que estivesse — falei no mesmo tom. — N-na verdade, eu estava com pressa. Mas é porque ainda não conhecia vocês... Toda essa dinâmica da cidade... Eu achava que iríamos ficar só eu e a tia Georgie em casa, comigo pintando meu quadro e ela dando suas aulas. Eu não esperava que tudo isso fosse acontecer... As pessoas mudam de opinião de acordo com as circunstâncias, não podem...?

— Está querendo dizer que está se divertindo, Matthew?

Seu comentário me fez rir. Eu tinha acabado de fazer uma confissão e Cecilia estava tentando suavizá-la. Como eu poderia não sorrir com aquilo?

— Garanto que nós também estamos nos divertindo com você aqui, Matt. Acho que deu pra ver que as meninas estão bem impressionadas com você — ela sorriu, recostando-se à parede de uma casa qualquer. Enxerguei como um pequeno ato de rebeldia. — Não só elas, aliás.

— Percebi que causei uma impressão forte na senhora Sharpe, já que mencionou.

Cecilia gargalhou, inclinando a cabeça para trás. Seu rosto ficou iluminado pela luz amarelada e, embora eu não fosse um especialista em fotografia, toda a cena era digna de um suspiro sob um olhar mais atento.

Meu Deus, eu já estava variando.

— Ah, isso é. A tia Georgie agora vai ficar mal falada. E sofrer ostracismo social. Mas foi bem maneiro.

Colei-me a ela na parede, envolvendo sua cintura com uma mão firme. Cecilia engoliu em seco, provavelmente ainda se acostumando às minhas investidas repentinas. Não deixava de ser adorável.

— Tia Georgie? — ergui uma sobrancelha. — Pensei que ela fosse “senhorita Georgette” pra você...

— Oh...! Eu nem me atentei... É que você disse o nome dela agora há pouco. E não fuja do assunto!

— Que assunto?

Ela ensaiou uma feição irritada.

— Matthew.

— Sim, Cecilia?

— Ande logo com isso que eu não tenho a noite inteira.

Ri com maldade, me inclinando para beijar seu pescoço. Em resposta, ela arquejou num tom de revolta.

— Como quiser, minha querida.

— Isso não foi um flerte!

— Desculpe — me empertiguei, deixando espaço para que ela se ajeitasse se quisesse. Mas Cecilia permaneceu ali. — Sim, eu... Estou me divertindo, Ceci. Ainda preciso voltar para San Francisco, mas... Não estou com pressa alguma. Não mais.

— E por quê? — Cecilia sussurrou como se estivesse com medo da resposta. — Por quê, Matt?

Seus olhos castanhos perscrutaram meu rosto, ansiosos pela resposta. Apreensivos. Eu não podia culpa-la. Por isso, segurei suas mãos e as ergui até o peito, depositando um beijo nos nós de seus dedos. Senti-a soltar o ar pela boca. Eu mesmo estava sentindo a tensão no ar. Era a hora de controlar o Matthew Impulsivo antes que ele estragasse tudo. Respire fundo.

— Porque você está aqui, Cecilia... Eu teria de ser um completo idiota para ter pressa de deixar qualquer lugar onde você também está. Como eu disse, é bom estar com você. Não estava sendo só simpático...

Então, todo o brilho em seu olhar triplicou. Era gratificante ver como ela reagia a elogios, por mais que fosse um tão simples como aquele. Cecilia abriu um sorriso de orelha a orelha, competindo com os postes para ver quem brilhava mais. Se aquilo podia ser mais piegas...

— Está falando sério...?

— Claro que estou — beijei a ponta de seu nariz, lhe arrancando uma risadinha abafada. — Eu sempre falo muito sério com você, Cecilia.

— Tenho minhas dúvidas quanto a isso — em resposta, ela franziu o nariz. — Mas eu acredito em você...

— Acredita mesmo? Não sinto muita convicção aí.

Cecilia mordeu o lábio, hesitante. Eu não era dado a sensitividades, mas pude sentir que algo se aproximava no horizonte.

— Eu... Talvez eu...

— Pode dizer — sussurrei tentando encorajá-la. Eu sabia que era difícil para ela se abrir, porém me cabia garantir que ela sentisse segurança suficiente para que aquilo saísse. — Não vou fugir.

Ela concordou com a cabeça, parecendo escolher as palavras com cuidado. Permaneci aguardando até que Cecilia respirasse fundo e sussurrasse:

— Preciso saber o que é que você quer que eu seja para você, Matt... Eu... E-eu sei que você vai voltar pra San Francisco, e sei que não é bom com relacionamentos, mas... Eu não gostaria que me deixasse em cima do muro... Isso está me deixando bastante transtornada, ainda que eu saiba que não é para tanto...

Neguei com a cabeça.

— Se é algo que te faz mal, Ceci, é um problema e precisa ser resolvido...

— Não quero ser egoísta... Não sabe o quanto é difícil falar sobre isso com você... Não quero que tome uma decisão por pena ou porque quer que eu fique bem...

Se ela também soubesse como aquilo doía, talvez tivesse mais cuidado com suas palavras. Não era sua culpa nesse caso, disso eu tinha consciência. Porém, também me passava a impressão de que tudo que eu dizia e fazia não era suficiente para que ela mudasse de opinião sobre si mesma.

Um passo de cada vez, eu tentei recordar. As palavras da tia Georgie martelaram na minha cabeça. Não pode desistir antes de tentar, principalmente por ter medo de que as coisas deem errado.

— Seja egoísta — repeti meu conselho a ela, aplicando meu melhor tom carinhoso. — Eu já não lhe disse que jamais vou machucá-la de propósito...? Ainda está com dúvidas?

— Não. Não sobre isso. Mas... Ah, Matt, dizer que não vai me machucar é bem diferente de me dizer o que é que quer que eu seja pra você.

Engoli em seco. Ela tinha razão.

Agora era a hora de me posicionar. Por mais que eu tivesse o palpite de que Cecilia ficaria ali me esperando – por favor, leia isso com o tom menos arrogante que puder –, eu não me pronunciar também significa que eu segurava seus sentimentos até que eles fossem confirmados ou recusados...?

— Ah, Cecilia... — praticamente murmurei, acariciando sua bochecha. — Não estou com você por pena. Estou ao seu lado porque te acho maravilhosa...

Ela pareceu surpresa com as minhas palavras. Ergueu o olhar para mim, procurando traços de insinceridade no meu rosto.

E eu me cagando de medo por dentro, disse com todas as palavras:

— Eu quero você, Cecilia. Aqui ou em San Francisco, eu quero você. Eu... Eu sei que você tem medo de que eu vá embora, e eu preciso ir por um tempo. Mas se quiser que eu volte... — comecei a rir de nervoso, começando a me dar conta de que eu não dizia que era verdade. — Se quiser que eu volte depois disso, eu faço isso correndo. É isso que gostaria que eu fizesse, Ceci? Que eu voltasse depois?

E eu nem sabia se estava usando a gramática do jeito certo. Tia Georgie nunca saberia disso.

— Eu... — ela titubeou, piscando repetidas vezes. Não consegui me mexer. Agora era com ela — Matt, eu... E-eu nem sei o que dizer...

— E se não falar nada? — abri um sorriso maldoso. Eu estava tentando descontrair nossa tentativa caótica de declaração. — Pode falar de outras formas que não sejam palavras...

Cecilia engasgou uma gargalhada, apoiando-se em meu ombro para abafar a risada. O pior foi que eu também comecei a rir com ela. Os transeuntes olharam em nossa direção, prontas para arquitetar uma careta, mas ao ver que não se tratava de dois adolescentes, suas expressões se transformaram em algo próximo a “oh, a juventude...”. Sorri para ela, ajeitando o cabelo atrás da orelha. Um perfeito cavalheiro.

— O senhor é um safado — ela franziu a testa de brincadeira. — Acho que vou renunciar às minhas vontades. Está muito difícil.

— Cecilia — chamei sua atenção num tom cômico.

— Hm?

You’re breaking my heart.

— Ah, não... — ela roncou ao tentar segurar a risada. — Não, Matt, eu imploro!

You’re shaking my confidence daily...

É cada coisa que um homem se sujeita a fazer por uma mulher.

Porém, apesar de sua falsa irritação com minhas provocações. Cecilia pareceu iluminar-se ainda mais – se é que isso era possível. Ela se desvencilhou dos meus braços para inspecionar seu rosto como uma raposa astuta.

I’m begging you please to come home — ela sussurrou num tom meigo. Dessa vez, quebrou meu coração para valer. — E-eu... É isso que tenho para dizer, eu... Tem um lar aqui, para o caso de querer voltar... Sabe, eu não quero passar pela mesma situação da Nona. Envolvida em escolhas que geraram arrependimento e mal entendidos... As coisas não precisam ser difíceis sempre, precisam...?

— Não concordei com um sorriso. Eu me sentia como uma criancinha no Natal. — Não precisam.

— Então. Eu quero ser fácil pra você. Ai, meu Deus. Quer dizer...

— Olha, se você não tivesse acrescentado o “pra você” eu teria feito um escândalo aqui, Cecilia.

Ela gargalhou, fazendo com que sua risada ecoasse pela rua. Sorri com a cena, não resisti a lhe depositar um beijo no topo de sua cabeça.

— Ai, Matt... Você me deixa meio desnorteada.

— Perdoada. Posso fazer algo a respeito desse seu problema...

E, apesar de ela ter revirado os olhos mediante a minha impertinência, permaneceu sorrindo quando continuei a falar.

— Muito bem, senhorita Lewis. Eu ainda preciso entregar aquele quadro, mas volto para o verão em Healdsburg. Quero levar você para passear no vinhedo, e acredito que não teria tempo de marcar algo com a Poppy tão em cima da hora. E quero te levar para conhecer San Francisco. Desde que você queira também.

— Quero muito — ela sussurrou com um sorriso.

— Ótimo. Então é o que faremos.

— Eu e você?

— Sim. Um passo de cada vez. Ou com a Petúnia. Aí ficaria “uma milha de cada vez”. Eu, particularmente, preferiria com a Petúnia.

Recebi um tapa no braço e uma gargalhada nervosa, mas Cecilia não recusou minha mão quando eu a ofereci para jantarmos luxuosamente no Shed. Mesmo que estivéssemos andando e rindo como se a vida fosse uma grande piada. Digna de um manual de boas práticas.

Como conseguir uma namorada – aos padrões Cecilia Sadie Lewis – sem estragar tudo:

1) Entre num esquema de falsidade ideológica.

... Melhor não, né? Reformulando.

1) Seja um pouco pretensioso;

2) Seja gentil com as amigas dela;

3) Cante Simon & Garfunkel para ela;

4) Viva um dia de cada vez porque está em pânico demais para pensar em outra opção.

Sábado em minha penúltima semana em Healdsburg e agora era a minha vez de fazer um preâmbulo de Cecilia Lewis. Porque, vendo todos os aspectos...

A casa tinha caído. Eu estava completamente rendido por aquela mulherzinha. Quais eram as chances de ela quebrar o meu coração, e não o contrário?


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Notas finais do capítulo

Finalmente esses dois colocando os pingos nos i's!



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