Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 16
Confissões, relacionamentos e foras


Notas iniciais do capítulo

Oie! Pessoas, perdão pela ausência do capítulo semana passada. Era feriado e eu me ocupei de muita coisa, acabei deixando passar a data da postagem... mas hoje já retomamos o ritmo normal.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805110/chapter/16

A tão temida pergunta veio logo em seguida.

Com a exceção de que ela não foi feita em voz alta. Não, Cecilia era atenciosa demais para correr o risco de tocar num ponto sensível. Ainda assim, seus olhos eram extremamente expressivos. Então, eu falei.

— Meus pais sempre foram um pouco distantes. Não ruins, só... Distantes. Eles sempre me deram tudo que eu precisava, eu só nunca senti um vínculo com nenhum dos dois. O máximo de intimidade que tive foi com a senhorita Georgette. Tanto é que mesmo ela só sendo minha vizinha e professora particular quando podia, era para ela que eu corria quando precisava de alguma referência de pessoa adulta confiável. Um pouco como você e a senhorita Mendez, eu imagino, tirando que meus pais estavam lá. Eles também pagaram a minha faculdade, e tudo o mais... Mas depois que eu fui morar sozinho, ficou tudo mais... Frio. Eu ligo pra eles, de vez em quando.

E lá estava eu, despejando quase toda a minha vida. Quase. Havia algo em Cecilia que me fazia soltar a língua e eu não tinha certeza se gostava disso ou não. Sair destrinchando sua vida tirava a graça de conhecer alguém, não tirava? Quer dizer, o que sobraria para eu falar se já estava dizendo tudo de uma vez?

Tirando o pequeno detalhe de que eu não ficaria em Healdsburg para sempre. Então era válido confessar todos os meus segredos a ela. Ela precisava de um amigo e eu não tinha muitas referências femininas decentes na minha vida.

Era esse o jogo que estávamos prestes a jogar?

Não... Ainda não.

Cecilia não saberia de tudo.

— Acho que isso consegue ser pior do que o abandono... — ela opinou, me dando a oportunidade de terminar a minha sopa. — Sabe... A rejeição velada ao contrário da escancarada sempre te deixa com uma dúvida se é você quem está fazendo algo de errado ou se são os pais quem não estavam prontos para serem pais.

Ergui uma sobrancelha.

— E existe isso?

— Claro que existe! Ser pai, ser mãe... É uma coisa muito exigente. Nem todo mundo lida com isso ou acha que é uma tarefa gratificante. Só de colocar um ser humano no mundo e garantir que ele permaneça vivo e saudável até que ele consiga fazer isso sozinho... Já é bastante coisa.

Então, após olhar para os dois lados como se estivesse prestes a revelar um segredo de Estado, ela continuou num tom de sussurro:

— Uma vez, uma mulher no Clube de Costura disse que odiava ser mãe. Amava o filho, mas odiava a maternidade. E ninguém contestou, sabe? Então... A maternidade e a paternidade não são fáceis. Aí alguns desistem na cara dura, outros fazem de má vontade, outros fazem o mínimo e uma rara parcela ama tudo que está envolvido. Até mesmo as partes ruins.

— Caramba... Esse Clube de Costura rende poucas e boas, hein?

Cecilia riu fraco, dando de ombros.

— Você nem tem ideia. Olhe eu aqui, com um namorado inventado!

E tinha isso, também.

Onde é que eu estava com a cabeça de me esquecer daquilo?

— Ah, é. Na verdade, isso ainda me deixa intrigado.

Ela me olhou de esguelha. Entrando em uma área turbulenta, Matthew.

— Quer dizer, isso é mesmo importante? Eu não sei como é que funcionam as coisas aqui, mas não deveria ser algo bom ninguém saber nada sobre os seus relacionamentos? Assim você não viraria tema da fofoca da vez...?

— Sim e não — Cecilia suspirou, terminando sua sopa de camarão. — Eu... Precisava ter uma conquista. Algo para chamar de meu. Nem que fosse de mentira. Era até mais fácil, porque se fosse o caso... Era a minha palavra contra a delas. Até... Bem, até agora. Como eu disse, eu não esperava que você fosse aparecer.

Estreitei os olhos. Era preciso bem mais informações do que isso para que eu continuasse lhe dando um voto de confiança nos meus assuntos particulares. Se nós estávamos entrando nos espectros de relacionamentos, tinha de ser uma troca equivalente.

— Está bem — cedeu ela, por fim. — Eu precisava ser qualquer coisa que não fosse a Cecilia Lewis, que foi deixada para trás.

Isso me pegou de surpresa feito um tabefe. Seu tom de voz era tão baixo que a dor da declaração era palpável. Olhei para ela, instigando-a a continuar a narrativa.

— Todo mundo se encaixa aqui, para o bem ou para o mal. Todos têm sua atribuição. Pat e Poppy, bombeiro e dona da vinícola. O senhor Bell é o bibliotecário. Os Goodwin estão à frente dos clubes de pesca e costura. As Sharpe são as abelhas-rainhas. Antes de eu me consolidar como “Cecilia, a florista” eu sempre fui “Cecilia, ah pobrezinha...”. Tem noção de quanto foi impossível me desvencilhar disso?

Engoli em seco. É claro que eu não sabia.

— Até hoje eu acho que todos nessa cidade ainda me convidam para as coisas por pena. Essa é minha atribuição. Por isso, quando inventei que eu tive um namorado e o deixei por opção... Parecia ser perfeito para eles pararem de me enxergar como uma coitada. Eu odeio essa atribuição.

Permaneci observando-a com atenção. Se eu estava acostumado com a Cecilia calma e alegre, essa sua versão me voltava a colocar os pés bem firmes no chão. Ela não era uma modelo registrada num quadro, perfeita e intocada. Era uma mulher com qualidades e defeitos. E quem poderia culpá-la?

— E é por isso que, quando for embora, eu vou dizer num tom bem seguro de que nós dois decidimos que somos melhores como amigos e que nossa linda história ficou no passado — ela finalizou, ajeitando a postura. — Se estiver de acordo, é claro...

Assenti debilmente com a cabeça. Minha parte sã me alertava que era melhor eu parar por ali se não quisesse me meter em problemas.

Bom, levando em conta o número de vez que eu havia escutado a minha consciência me alertando das coisas...

— É, certo. E por que acharam tão absurdo que você já teve um casinho de verão sem que elas soubessem disso?

Cecilia sorriu, triste.

— Porque, como elas nunca viram ninguém se aproximar em anos, eu acredito que tenha ficado claro o veredito de que eu não era atraente e nem interessante o suficiente para ninguém. E... Hã... Meio que elas estão certas, então não tinha motivo para tentar defender outro ponto.

— Isso não é verdade!

— ... O que não é verdade?

Eu ainda não tinha dito nenhuma besteira no dia, é claro que a primeira tinha de vir estrondosa...

— Isso aí de você não ser atraente e nem interessante. Que besteira! Elas já se olharam no espelho?

As bochechas dela ficaram vermelho escarlate. Coloquei todos os meus esforços em força total para não fazer o mesmo.

— Você só está dizendo isso porque estou reclamando e não quer que eu fique magoada. Ninguém fala isso assim, na lata.

— Você ficaria surpresa — ri de nervoso.

Então, Cecilia olhou para mim e dava para ver que Cecilia acreditava no que eu dizia. Acho que a vez que me sugeri de cupido para o senhor Bell passou bem fresca em sua memória. Pois é.

— Ah... Bem, obrigada. Eu acho.

Que maravilha. Eu não sabia mais elogiar uma mulher sem parecer um grande idiota.

Ei, espere aí! Eu ainda tinha algo a dizer!

— Eu, sinceramente, acho que você não está perdendo nada ao não se relacionar com ninguém... Voluntariamente ou não — me apressei em acrescentar. — As pessoas são... Difíceis.

— Ah, é...? Alguma experiência ruim?

— Está brincando! Todas as experiências que já tive foram uma completa desgraça!

— Meu Deus... Você pode me contar?

Assenti com a cabeça. Claro, eu estava ansiosíssimo para dividir todas as minhas desgraças. Nem Gil sabia de tudo... Talvez fosse mesmo hora de me abrir. Cecilia era uma boa ouvinte.

— Posso. Hum... Vamos ver. Minha namorada da faculdade me traiu com o professor de física — com a primeira confissão, Cecilia arregalou os olhos. Ela disse que artistas não tinham futuro, e que caras de Exatas eram mais atraentes. Detalhe: ela também era de Humanas, Igual a mim.

Ela gargalhou com vontade. E o pior foi que chegou uma hora em que eu comecei a rir junto com ela. Na época foi horrível, mas agora falando em voz alta era mesmo engraçado.

— Me perdoe, eu não quis rir... É que do jeito que você falou ficou engraçado — Cecilia se recompôs, escondendo as bochechas atrás das mãos. — Desculpe. Por favor, continue.

— Não esquenta, Ceci. Ela devia ter algum problema, mesmo.

Cecilia enxugou as lágrimas do riso e fez um sinal de “tudo bem” com uma mão.

— Bom. Depois disso eu tive um caso sério pela metade. Isso porque eu saí com a mulher por uma semana. Meu amigo Gilbert falou para eu tentar um aplicativo de relacionamentos e eu fui, certo? — tomei um gole da água para equilibrar os gostos. — Ela era perfeita. Não perfeita, mas... Você me entendeu. Boa demais para ser verdade.

Ela assentiu bastante efusivamente.

— É porque ela era boa demais para ser verdade. Eu descobri depois que ela tirava a aliança quando saía comigo. Um dia, ela se esqueceu de tirar.

— Não! — Cecilia exclamou, indignada.

— Pois é. A justificativa dela foi que ela e o marido estavam para se separar. Fiquei tão mal que desinstalei o aplicativo e desisti.

— Ah, que tragédia...

Terminei minha sopa e deixei o prato de lado.

— E a mais recente foi a minha última. Foi um caso de uma noite que roubou um dos meus quadros. Nem tive como denunciar, porque... Meio que eu não me lembrava de como ela era e nem do nome dela. Acho que não perguntei.

Cecilia engasgou-se com a saliva.

— Uma coisa eu aprendi: não leve estranhas para casa. Mesmo com ambos sóbrios, golpistas são espertas. Não que eu estivesse sóbrio.

Seu rosto mais uma vez denunciou sua vergonha. Aí, eu soube que a hora de parar tinha chegado. Mudar de assunto, linguarudo. Quem sabe outra hora eu terminasse aquilo?

— Você ganhou — ela ergueu as mãos em defensiva. — Vou morrer solteira, obrigada.

— Quer dizer... Quem é que precisa de mulheres?

— É! Homens, pff...

Silêncio.

Graças ao timing da vergonha alheia, um funcionário veio nos avisar que o estabelecimento estava prestes a fechar. Mal tínhamos comido. Quanto tempo nós passamos conversando? Fosse como fosse, nos levantamos como se estivéssemos sendo expulsos e voltamos para o calhambeque – ops, eu digo, para a Petúnia – em meio a gargalhadas.

— Pense bem, se isso fosse um encontro você poderia catalogar como “o menos pior”! — Cecilia exibiu uma falsa expressão convencida. — E eu poderia chamar de “primeiro encontro desastroso”!

— Considere-se no seu dia de sorte, Lewis — pisquei para combinar com ela. — Ei, espere, foi tão ruim assim?

Ela negou com a cabeça, abrindo um sorriso doce. Atingiu-me no peito feito uma flechada. Eu bem que queria acreditar nesse negócio de má sorte, mas ficava ainda pior em pensar que Cecilia merecia algo melhor que um fracassado assumido. Ela já não tinha dito que não gostava de sair da rotina e que mudanças não eram bem-vindas?

Em que é que eu estava pensando, afinal de contas?

— Vamos, eu te levo em casa — ela girou as chaves da Petúnia por dentre os dedos feito uma ninja. Confesso que foi bem maneiro, apesar da pequena humilhação de não ser eu o motorista. — Vai ter que me ouvir cantando Fleetwood Mac na volta.

 

— Eu não acredito que você deu um fora nela — Gil protestou do outro lado da linha. — Você não tinha dito que ela era incrível?!

— Eu disse... Mas... Hum... Sair com modelos é antiético. Se a Pauline fica sabendo disso, estou demitido!

— Pauline dorme com pelo menos dois sócios, Carpenter. Arranje uma desculpa melhor.

Suspirei. Se eu tentasse debater seria pior.

— Eu acho que você está com medo.

— Medo? Eu? De uma garota? Corta essa, Gil. Que besteira.

— Você está com medo de se envolver demais e ser mais um relacionamento merda. Ou ser um bom e não durar mais porque daqui a pouco vai embora e aí vai ser só estatística.

Eu tinha um ódio profundo de quando ele estava certo, e olhe que nem era presencialmente.

— Não é só isso, Gil. É só que... A Cecilia nunca teve nada com ninguém. Ela está esperando... Sei lá, um príncipe encantado num cavalo branco, não um fracassado que vai aparecer na vida dela só para ir embora depois. Ela merece alguém que... Alguém que fique, sacou?

Silêncio, mais uma vez.

Dessa vez, com razão.

— Cara, San Francisco é logo ali para quem mora em Healdsburg... Tem gente que viaja estados para se ver.

— Gente que se ama, Gil, não gente que só quer se pegar. Continuo não sendo nenhum príncipe encantado. Cecilia gosta de romantismo e grandes histórias épicas de como o amor vence os anos e infortúnios da vida... Eu não sei de nada disso. Qual é, chega até a ser cruel só... Dar uns pegas quando ela tem altas expectativas no amor.

— Tá legal... Você tem um ponto. Mas o que vai fazer até ir embora, ô Príncipe Desencantado? Dar uma de celibatário?

Ri de nervoso. O buraco sempre era mais embaixo, não era possível.

— Não. Mas eu vou dar um jeito.

— Ótimo. Eu e a vaquinha Mimosa vamos ficar esperando. Não me faça ir até aí para dar um beijo na garota, Carpenter.

Só mesmo Gil para me fazer rir em meio à completa desgraça.

E, é claro, um quadro inteiro a terminar com o rosto de Cecilia Lewis estampado.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Hoje encerramos ⅓ da história ♥ espero que vocês estejam gostando!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Inventei Você?" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.