Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 15
Abóbora, camarão e trivialidades




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805110/chapter/15

Eu simplesmente não sabia o que tinha dado em mim para agir daquele jeito.

Tinha que ser isso. Não havia motivo nenhum, plausível ou não, para ser ranzinza com alguém como Matthew. Certo, aquele era um assunto sensível, mas que culpa ele tinha daquilo?

Para que fique registrado: em geral, eu sou uma mulher positiva, otimista e muito de bem com a vida. Porém, apenas no que dizia respeito às coisas das quais eu mantinha certo controle. Por exemplo, se tivéssemos problemas com a floricultura, Noelle tinha sua aposentadoria garantida, e eu mantinha parte dos lucros na poupança. Ou, se fosse motivo de saúde, usaríamos o dinheiro para isso. Emocionalmente? Bem, um dia de cada vez, não é? Estressar-me com algo não vai me ajudar a resolver o problema; se eu não posso fazer mais nada hoje, então farei amanhã. E amorosamente? Acredito que eu já tenha deixado bem claro que sequer tenho uma vida amorosa para estragá-la, certo?

É bem por isso que não tenho medo de conversar com Matthew, mesmo ele sendo tão... Problematicamente atraente e divertido. Ele é a companhia perfeita, mas eu não sou nenhuma femme fatale. Sei que estou segura em minha própria insignificância, nesse quesito. Já estou ciente de que estou fadada a ser uma vovó que adota os netinhos na vizinhança. Ei, eu podia fazer disso um plano de aposentadoria!

Voltando ao assunto: essas coisas estavam ao meu alcance. Agora, algo que estava fora do meu alcance e que me deixavam apavorada sem qualquer motivação lógica era o fato de que tanto minha mãe quanto meu pai estava por aí, provavelmente com outras famílias e vivendo vidas das quais eu não estava inclusa. Se o propósito da vida era vivê-la da melhor forma possível e eu não fazia mais parte das vidas deles, isso significava que eu não era o melhor... Não é?

Ah, isso era uma dúvida que volta e meia batia à minha porta para me assombrar. E se a minha covardia com relacionamentos fosse culpa disso? Como eu faria para lutar contra algo que provavelmente seria um ponto de interrogação para sempre?

Por que tudo o que eu fazia eventualmente me trazia de volta a esse mesmíssimo ponto?

Afinal, o que é que tinha de tão errado comigo?

Com um suspiro, recolhi tudo o que precisava do carro e procurei me recompor.

— Então... — Matthew começou, me puxando de volta para a realidade com a força de um soco na boca do estômago. Quase me contraí com minha própria analogia. — Para onde estamos indo mesmo?

— Você já não disse isso? — ergui uma sobrancelha, batendo a porta do carro. Matthew franziu a testa, consternado com o barulho. Tratei de me explicar o quanto antes: — Desculpe, é que se eu não fizer isso ele não fecha.

— Não, não disse. É... E o que acha de vender esse carro para o ferro velho e comprar outro?

— Eu não vou vender a Petúnia, ela é da família. E objeto de bastante estima.

Matthew pareceu achar graça. Eu é que não ia explicar de onde é que vinha Petúnia. Ele que quebrasse a cabeça para inventar uma história para ela.

— Ela é uma garota difícil — expliquei com o meu melhor tom blasé. Se é que eu tinha algum.

— Sei... Bom, então talvez você possa dar uma irmã mais nova à Petúnia?

— Vou pensar nisso. E, respondendo à sua pergunta, nós estamos na Shed. De dia a arquitetura é bem mais bonita de se apreciar, mas as luzes da noite não são de se jogar fora.

Matthew assentiu com a cabeça, passando a prestar atenção no prédio que mais parecia uma grande garagem com mesinhas e vidrarias. Sorri sozinha, porque era mesmo uma relíquia. Com um meneio sutil, ele se voltou para mim.

— É uma... Loja de departamento? Vamos jantar numa loja de departamento?

— Tem tudo aí! Inclusive um restaurante. Não julgue pelas aparências.

— Interessante — ele abriu um sorriso jovial. — Já gostei. Vamos indo?

Assenti com a cabeça e aceitei novamente o braço que me era oferecido. Apesar de que não estávamos mais sendo observados, eu achava adorável que ele ainda assim era um cavalheiro. Sorri sozinha e o conduzi Shed adentro. Matthew perdeu-se observando as prateleiras, como se já fizesse parte de Healdsburg há tempos. Comprei um vasinho artesanal de flores para a senhorita Georgette, o que fez Matthew abrir um sorriso de gratidão. Mas o que mais me surpreendeu foi ele ter pulado o setor de pintura para partir para o buffet do café.

— Eu senti o cheiro de longe! Para te ser bem sincero, eu achei que aqui só tinha vinho.

— É o forte — admiti. — Mas eles investem mais no vinho no inverno. A colheita é no outono, então usam as safras anteriores para divulgar os produtos, sabe?

— Faz sentido. Iria ser a mesma coisa que divulgar morangos no verão...

Foi impossível não rir de sua analogia, afinal eu e ele sabíamos que se fizer frio na bela Califórnia é sinal de que o mundo está prestes a entrar em modo de autodestruição. Após pagarmos a refeição por pessoa – Deus sabe o quanto eu gostaria de ser o tipo de pessoa que come pouco e fica satisfeita, mas a vida não me elegeu para este privilégio –, sentamos prontos para a primeira rodada. Matthew colocou sua sopa fria de abóbora sobre a mesa e me olhou com uma expressão parecida com a de um político num debate.

— Então. Para trabalharmos juntos eu preciso te conhecer. Não a senhorita Lewis, a florista. Nem a “hum... Emilia? Não, é Celine. Hum, espere, é Cecilia!”. Estou falando que gostaria de saber quem é a Ceci. Acha que consegue?

Ergui uma sobrancelha. Definitivamente, eu não vi isso chegando.

— Nós trabalhamos juntos, Matthew!

— Não nesse sentido. E, aliás, nós fizemos colaborações. Agora que vamos acertar as coisas com a senhorita Mendez e o senhor Bell, aí sim estaremos trabalhando juntos. E uma dupla precisa se conhecer bem.

— Você tem um ponto. Mas só se você fizer o mesmo.

— Ora essa, e por que eu não faria isso?

Era uma ótima pergunta. Se ele estava oferecendo me ouvir e conhecer, provavelmente era uma via de mão dupla, certo?

— Certo... Desculpe, é que você é tão reservado... Não estou te chamando de estranho, mas mesmo assim eu sei muito pouco sobre você. Não pode me culpar por perguntar, entende?

Matthew assentiu com a cabeça, reconhecendo o argumento. Com um suspiro, ele ergueu as mãos em defensiva.

— Estou acostumado. Juro que não é nada pessoal, é só... Costume. Desculpe. Na verdade, eu propus isso, mas nem sei por onde começar.

Abri um sorriso compassivo, apontando com a cabeça para o prato à sua frente.

— Eu já sei que você gosta de sopa de abóbora... Ontem, eu não sabia disso.

Matthew riu mais descontraído, recostando-se na cadeira do café. Com um sorriso maroto, ele devolveu o gesto em direção ao meu prato.

— E você, de caldo de camarão, eu suponho?

— Viu só? Não é difícil!

Para consumar o fato, tomei uma colherada com uma condescendência ensaiada.

— Vamos entrar nas intimidades, então? Ou começamos com as trivialidades?

— Eu gosto de trivialidades! Dá para mesclar os dois, não dá?

Assenti com a cabeça. De fato, era bem mais conveniente. Amenizava o baque do que estava por vir e dava a impressão de realmente informar algo de relevante. Respirei fundo.

— Vejamos... Eu amo assistir a novelas, mas não consigo me apegar com seriados. Com filmes e livros, pior ainda. Eu adoraria ter feito qualquer curso superior que fosse, mas jamais consegui notas suficientes para ganhar uma bolsa. E o dinheiro não ia me bancar — tive o cuidado de não dizer em tom queixoso. Era apenas um fato: eu não era lá essas coisas de inteligente. Talvez esperta, mas não inteligente. — Eu gosto de filmes adolescentes e de cozinhar. Gosto de música velha e se precisasse listar três defeitos meus eu diria que sou medrosa, muito idealista e muito insegura. E cômoda, mas como já te disse não acho que isso é necessariamente ruim. E, aparentemente, eu falo demais e sou péssima com contas. E cores.

Ele interrompeu meu monólogo para rir disso, então aproveitei para tomar um pouco da minha sopa. Fiquei feliz que estava dando certo.

— Eu... Na verdade, não gosto muito de chegar perto das pessoas — continuei, tentando manter um tom neutro. — Não me acho chata ou desagradável, mas... Eu tenho medo de que todas as pessoas que eu me aproxime vão embora eventualmente, então eu mantenho uma distância saudável de todos. Menos da Nona, é claro. Ela é praticamente minha avó, não daria certo... Nem se eu quisesse.

Matthew permaneceu me olhando, coisa que era uma raridade, o que me fez desestabilizar um pouco. Eu estava acostumada a estabelecer contato visual com as pessoas, mas vindo dele... Senti vontade de aposentar a colher para permanecer olhando-o de volta.

— Alguém já foi embora da sua vida antes para você se sentir assim...?

Seu tom de voz era baixo. Cauteloso. Respeitoso. Ao mesmo tempo em que eu não sabia quase nada sobre ele, aquilo me dizia que eu já sabia ao menos o essencial. Bom... Se o essencial é invisível aos olhos, imagino que isso também se aplique aos ouvidos.

— Já. Já, sim. Meu pai... E minha mãe também, depois. Eu só tenho a Nona e o Walt, agora.

Mais uma colherada de sopa de abóbora.

— Eles morreram?

— Não — se bem que, às vezes, eu penso que seria mais fácil de lidar se esse fosse o caso. — Meu pai deixou a mim e a minha mãe quando eu tinha sete anos. Simplesmente pegou as coisas e se foi, no meio da noite. Daí, quando eu tinha vinte anos, foi ela quem partiu. Eu era quase maior de idade, então... Foi um pouco mais digno.

Matthew assentiu com a cabeça. Em nenhum momento da minha narrativa ele desviou a atenção para a sopa de abóbora. Meu coração deu um salto. Ah, céus...

— Sinto muito — ele disse, por fim. — Toda criança merece ter o carinho dos pais...

Foi a minha vez de deixar a sopa de lado para prestar atenção ao que ele dizia. Acredito que estávamos saindo das trivialidades.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Inventei Você?" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.