Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 14
Apelidos, Carpenters e assuntos sensíveis




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Fazer charme para as senhorinhas não estava nos meus planos de férias para Healdsburg, mas a sensação de fazer alguém feliz era completamente nova e... Tão...

Estranha.

Não estranho do tipo ruim, estranho do tipo...

Olá, cabine de controle? Estamos com problemas. Pode mandar ajuda? Alô, cabine? Alguém na escuta? Ah, droga, estamos ficando...!

É... Matt?

Opa. Cabine de controle? Agora é mesmo contigo.

— Eu! Oi!

Cecilia riu fraco, trocando o peso dos pés.

— Nossa, você parece estar no mundo da lua, eu atrapalhei alguma contemplação existencialista?

— Ah, não, eu só estava fazendo um esforço enorme em parecer um cara boa-pinta. Fiz um bom trabalho?

Não sei se ela riu da minha tentativa de expressão convencida ou da minha desculpinha esfarrapada. Querendo eu ou não, meu riso saiu desgovernado e sem permissão pelas ondas sonoras. Cecilia permaneceu me observando de um jeito que não consegui interpretar. Ainda perdido, eu me embolei nos pensamentos e só consegui soltar a primeira coisa idiota que passou pela minha cabeça.

— E desde quando você me chama só de Matt?

Cecilia pareceu embasbacada.

— É... Desde hoje...! Não gostou?

— Gostei! “Matthew” me faz parecer uma pessoa séria.

— Ah, ok, vou respeitar a sua idiotice — Cecilia riu com maldade. — Vamos indo?

Assenti com a cabeça e, como o cavalheiro que eu era, ofereci o braço para que ela o segurasse. Com um riso afetado, Cecilia passou o braço ao redor do meu. Imaginei que oferecer a mão ou passar ao redor dos ombros fosse ser um pouco demais, mas não deixei de me sentir como um cara dos anos 50.

— Tem algum apelido? — indaguei enquanto andávamos. Sempre que eu falava algo, ela me olhava bem nos olhos para ouvir. Eu ainda não tinha decidido se eu apreciava o gesto ou o achava desconcertante. — Quer dizer, se estamos entrando nesses termos...

— Hum... Sarah me chama de Ceci. Acredito que ela não se importe de usar esse apelido, eu não penso em mais nenhum. Fora Lia, mas... Bom. Sei lá.

— É mesmo um pouco difícil um apelido para Cecilia... Mas, de qualquer maneira, tem planos para agora, Ceci?

Dessa vez, ela desviou o olhar para o chão. Tive a impressão de tê-la visto corar, embora fosse difícil dizer pelo horário.

— Não tenho nenhum plano sério!

— E os não-sérios? — sorri.

— Esses seriam chegar em casa, tomar um banho, esquentar uma lasanha no microondas, sentar no sofá e ver novela com o Walt deitado no meio das minhas pernas... E a Nona roncando na poltrona ao lado.

Foi impossível não gargalhar, assim como provavelmente foi impossível para ela não me acompanhar. Olhei-a de escanteio, pensando que eu apreciava seu sorriso. Cecilia não tinha escrúpulos e não era dada a risadinhas afetadas; quando gargalhava, parecia que o riso vinha de dentro para fora, atravessando seu corpo e o colapsando como se fosse um golpe fatal. Era simplesmente hipnotizante.

Diabos, como as pessoas daqui não enxergavam Cecilia como o fenômeno raro que ela era?

— Na verdade, eu acho esses planos seríssimos — opinei com minha melhor cara insolente. — Parecia até um ritual concludente de final de semana!

— E é mesmo — atrapalhando-se com o riso, Cecilia soltou um pequeno ronco abafado. — É mais frequente aos domingos do que aos sábados, mas confesso que levo uma vidinha recheada de rotina.

Contraí meu rosto numa careta pouco amigável.

— Não acho que seja uma vida ruim, apesar disso — ela atalhou suavizando seu sorriso. — É uma rotina agradável... Sei que muita gente acha que isso é maçante, mas comigo é o contrário... Acho que é a perspectiva de sair da zona de conforto me deixa apavorada. Gosto de manter as coisas simples e ao meu alcance, sabe?

Assenti com a cabeça um tanto surpreso. Era bom conhecer outro lado dela, sem ser o que mentia dizendo que já vivera um grande amor apenas para fazer bonito para um bando de velhas que não tinham nada a ver com o que ela fazia ou deixava de fazer. Esse seu lado vulnerável, que admitia gostar da rotina e de dizer que levava uma vida pequena me deixou sinceramente comovido.

E o pior de tudo: deixava-me atraído.

Atraído ou não, eu pretendia manter meu voto. Incrível ou não, eu não iria sucumbir ao charme da mocinha interiorana que precisava de uma quebra de rotina.

Ah, céus, isso poderia não ser fácil...

Percebi que ainda estávamos andando em silêncio quando comecei a reconhecer a entrada da casa de Noelle e Cecilia. Eu tinha me esquecido de que ela tinha dito que eram quarteirões vizinhos – e de que era ela quem estava me guiando, e não o contrário. Pigarreei.

— Desculpe, acabei me desviando do assunto — ri de nervoso, enquanto ela se soltava do meu braço. De cara dos anos 50, passei a me sentir como o adolescente que acompanha a menina até em casa, mas a deixa um pouco atrás com medo de ser descoberto pelos pais dela. Novamente: o que eu podia fazer se o pessoal que eu convivia era fissurado em comédia romântica? — Já que não tem planos para agora, quer sair para jantar? Eu pago!

Cecilia ergueu uma sobrancelha, o que me fez erguer as mãos em defensiva no mesmo minuto.

— N-não que eu esteja dizendo que você não consegue pagar a conta só porque eu sou homem! É que vocês têm sido muito gentis e prestativas e eu gostaria de...

— Francamente, Matt, fique aí quietinho que eu vou pegar as chaves do carro lá dentro. Vou te levar num lugar legal.

Antes que eu me desse conta, estava soltando o ar pela boca.

Talvez fosse um pouco mais difícil do que eu tinha planejado, mas... Se levar em conta que eu não tinha plano nenhum, isso era melhor do que nada.

 

Agora eu vou te apresentar aos Carpenters.

Foi a segunda coisa que ela disse, depois de “não esquece o cinto que esse carro é danado”. Daí, do porta-luvas do carro, ela tirou um CD de capa preta e letras douradas. Com uma cara engraçada de expectativa, ela pressionou o play e esperou até que eu reagisse.

— Voz bonita — elogiei sinceramente.

— Não é? — Cecilia abriu um sorriso enorme, dando a partida. O motor roncou de um jeito suspeito, porém me resguardei de maiores comentários. — É gostoso de ouvir.

— Parece ABBA... Ei, espera! Eu conheço essa música!

Cecilia gargalhou, concentrada nas ruas.

Todo mundo já ouviu essa música antes, eu acho. Você só não sabia quem cantava!

— Deve ser isso mesmo — sorri com o riso dela. — Então... Você imaginou o cara ideal como “pó lunar nos cabelos de ouro e luz estelar no azul de seus olhos”?

Ela sequer desviou os olhos dos faróis quando respondeu. O que me deixou levemente decepcionado, porque presumi que ela iria me lançar uma daquelas erguidas de sobrancelha que me acusavam de ser um idiota insolente. Eu estava começando a me acostumar com esse tipo de recepção passivo-agressiva amigável dela.

— Na verdade, o loiro de olhos azuis é um estereótipo e que foi fácil de me esconder. Se eu tivesse usado olhos verdes, seria muito específico, e se eu tivesse dito “olhos e cabelos castanhos” seria exigir uma cópia de mim...

Ah, certo. Fazia sentido. Então eu não fazia o tipo dela; melhor... Não é?

— Ela morreu tão cedo — Cecilia murmurou, e por um minuto fiquei extremamente confuso com relação a o que é que ela estava falando. — A vocalista, eu digo. Uns 30 e poucos anos.

— Ah, é?

— Uhum. Insuficiência cardíaca, ela era anoréxica... Dizem que ela era muito infeliz.

Assenti com a cabeça, solidário à história. Eu ainda não sabia o porquê, mas me sentia extremamente confortável para conversar com ela sobre qualquer assunto. Portanto, foi sem qualquer cuidado que acrescentei.

— Às vezes, eu acho que... A morte é reconfortante em alguns casos. Quando a pessoa sofre.

— É... Acredito que sim — Cecilia sorriu de lado. — Ao mesmo tempo, morrer jovem deixa aquela sensação ruim na boca do estômago... Se a pessoa era infeliz, é aceitável até a página dois. Mas vai que a pessoa poderia ter alguma chance de melhorar que foi negada pela morte?

Dei de ombros, pensativo.

— Acho que essa é a graça da vida... Nunca saber com exatidão como ou quando ela começa ou termina. Ela só acontece, como um pequeno milagre. A gente que tem sorte de permanecer vivo tem que usar ela da mesma forma.

Cecilia riu com pouca emoção, voltando os olhos castanhos para mim quando paramos no farol. Sustentei o olhar, me perguntando o que tinha de errado com o que eu disse. Estava bom demais para ser verdade, não estava?

— É, você tem razão — ela disse, por fim. E, então, toda sua atenção estava no trânsito. — Apesar de que a maioria das pessoas faz exatamente o contrário.

Engoli em seco, assentindo com a cabeça. Definitivamente, eu tinha dito algo de errado. Felizmente, Cecilia se deu conta de que tinha dado uma fala atravessada e apressou-se em corrigir.

— Desculpe, acho que fui um pouco rude...

— Ah, tudo bem, é um assunto sensível — sorri de lado, ao menos aproveitando a troca de música para mudar de assunto. — Gostei mais dessa!

Então, ela concordou com um sorriso de gratidão que aqueceu meu coração ao ponto de entrar em ebulição. Nesse ponto da vida, achei ainda mais gratificante que o carro tenha dado um tranco na lombada, porque isso foi o que quebrou o gelo da situação. Gargalhando de nervoso, ela estacionou o carro e praguejou.

— Ainda passo com o caminhão de bombeiros do Pat em cima dessa lata velha. Eu juro.


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Notas finais do capítulo

A música referida é "Close to You", da banda Carpenters: https://youtu.be/HYnV_pkO-Rw
Até semana que vem ♥



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