Cordas escrita por Ifurita


Capítulo 3
O fio da navalha da realidade




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/803271/chapter/3

“Existe uma coisa que uma longa existência me ensinou: toda a nossa ciência, comparada à realidade, é primitiva e inocente; e, portanto, é o que temos de mais valioso.” - Albert Einstein




O sol entrava pela fresta da cortina no momento em que ele entrou em seu apartamento. O mundo acordava na hora em que ele sonhava com seu colchão e cama. As chaves foram deixadas em uma bandeja metálica sobre o aparador, bem ao lado da porta de entrada, assim como seus tênis, deixados bem ali na entrada, de qualquer maneira.

Takashi era um homem magro, talvez até demais, mais alto do que a maioria das pessoas ao seu redor, mas arrastava o corpo como se pesasse duzentos quilos, arrastando os pés como se tivesse correntes atadas a eles, caminhando lentamente para seu quarto.

A noite fora longa, com alguma emoção, dentro do que se espera de emoção para um intelectual, um homem de números — um nerd fracassado que acha que um e-mail de outro nerd é emocionante — a voz na sua cabeça falou e ele contorceu o rosto, fazendo uma careta descontente, antes de finalmente se jogar sobre a cama.

Ele chegou a gemer de prazer quando suas costas se encontraram com o colchão. Um tipo diferente de estase só compartilhado por aqueles que dormem em cadeiras de escritório ou em algo parecido. Sua coluna poderia sair pela garganta dele apenas para festejar, pelo menos sentiu isso, mas aquele pensamento ridículo deixou sua mente assim que olhou para a escrivaninha vendo o porta-retratos com meia foto apenas, rasgada, com um Takashi sorridente e abraçado com alguém que estaria no lado rasgado da imagem.

Algo dentro dele não deixava que jogasse aquilo fora, um lembrete de que nem tudo poderia ser perfeito — se é que alguma coisa era.

Fechou os olhos, respirando profundamente, sentindo o cansaço pesar sobre seu corpo e, antes que pudesse se trocar ou até mesmo tirar os óculos, acabou dormindo ali mesmo, do jeito que estava.

Havia algumas semanas que tinha um sonho recorrente. Estava sentado no alto de uma montanha, suas roupas eram estranhas, tinham um tom pálido, assim como o horizonte. Via  não um, mas dois sóis se pondo atrás das montanhas, então uma mão lhe tocava o ombro para chamar sua atenção. Olhava para trás e via aquele rapaz baixinho, vestindo uma capa azul escura, com olhos que tinham um brilho lilás completamente fora da realidade, o rapaz lhe estendia a mão para que se erguesse e dizia: — A hora está chegando, os dias estão ficando vermelhos e há sangue nas montanhas. Você precisa me acompanhar, porque não temos muito tempo.

Então o sonho mudava para um vale profundo, cercado de florestas de todos os lados, não via com clareza, mas sabia que algo muito grave se aproximava pela maneira como as árvores se moviam e caíam, então ouvia os gritos de pavor. No momento em que sentia que veria qual era, afinal, a ameaça que vinha das árvores, acordava. Aquela vez não foi diferente das outras.

Acordou suando frio, respirando pesado, com a certeza de que algo pavoroso apareceria a qualquer momento, mas no final só havia o teto branco do seu quarto e, olhando para o lado, a foto pela metade.

Havia se convencido que aqueles sonhos estavam acontecendo por estar viciado em um jogo medieval que lhe lembrava sua época de estudante e as noites jogando Dungeons and Dragons com os amigos da faculdade. Era a única explicação lógica para o pequeno rapaz de orelhas pontudas vestido como um ladino, lhe chamando para algo que parecia a mistura de um chamado para aventura com uma profecia qualquer.

Se levantou, indo até a cozinha para pegar uma cerveja. Não que aquilo fosse muito saudável, ainda era cedo e mal havia conseguido dormir, mas não importava. Abriu a latinha, olhando na porta do armário, pegando um bolinho recheado de pacote e alguns amendoins.

Com essa maravilhosa refeição dos deuses em mãos, ligou seu console, abrindo o seu vício atual. Era um jogo multi-jogador, uma fantasia envolvente, mas de certa maneira comum, com elfos, anões e humanos e ele era Ergal, a estrela de Andur, um mago elfo conjurador. Não precisava ser humano em outra realidade, mesmo que fosse uma realidade de vídeo-game não é mesmo?

E foi ali que gastou as primeiras horas do dia, comendo qualquer besteira e bebendo cerveja enquanto matava monstros de nível 137 para conseguir cumprir um desafio com sua guilda.

Talvez todo seu trabalho buscando evidências de outras realidades se devesse ao fato de achar aquela realidade extremamente entediante. Deveria existir algum lugar em que as pessoas eram mais interessantes e onde a vida não parecia ser apenas uma rotina de um NPC, sempre fazendo a mesma coisa sem relevância dia após dia.

Queria se apegar à ideia de que poderia ser diferente em algum outro lugar e aquilo havia se tornado o trabalho da sua vida.

Já estava imerso naquele mundo fantástico há pelo menos quatro horas quando o som do seu telefone tocando começou a ser re-transmitido nos fones de ouvido. — Alexa, quem liga? — Perguntou e ouviu a assistente responder “ligação do laboratório”, suspirou e disse — Alexa, atender.

Naquele momento o som do jogo parou e do outro lado ouviu uma garota dizer — Professor Sakamoto? — Era uma das suas bolsistas.

— Senhorita Nishima? Por que está me ligando à essa hora?

— Des-culpa atrapalhar, professor… — ela iniciou sem muita confiança — O professor Kajita me pediu para ligar, disse que as coisas acabaram mudando por causa dos resultado da análise dos dados que recebemos e a simulação gerada por eles. Os dados foram “intrigantes” segundo as palavras do professor Kajita, e ele precisa de você imediatamente.

Takashi jogou a cabeça para trás, exausto, pensando por um momento que se o seu carro caísse da ponte e ele acabasse em coma, talvez conseguisse descansar, mas ao invés de falar que ainda estava de folga, respondeu — Chego no laboratório em uma hora.

— Melhor ligar para ele primeiro, professor. Ele pediu para que ligasse antes de sair, disse que não iria contar detalhes para uma pós-graduanda que mal sabia diferenciar uma diferencial de uma integral e que só falaria detalhes para você.

Ele rolou os olhos, sabendo que era exatamente o tipo de coisa que o Professor Kajita diria sobre algo relevante ou alarmante do projeto. Como professor ele era genial e rígido, como superior ele era arrogante e insuportável e só olhava nos olhos de quem julgasse como um igual. — Tudo bem senhorita Nishima. Por agora é só. — Falou se levantando e desligando a chamada diretamente no aparelho, então puxou o numero do professor das chamadas recentes e, no momento em que ele respondeu falou. — Espero sinceramente que o laboratório tenha sido puxado para uma zona de energia negativa, professor Kajita, para ter mandado a senhorita Nishima me ligar na minha folga.

— O laboratório não foi engolido por nenhum tipo de vórtice de destruição, mas conseguimos separar mais do que apenas uma vibração dimensional dissonante, Takashi. Encontramos seis, nenhuma compatível com a outra ou com o nosso universo. Seis tipos diferentes de partículas anômalas. Eu já mandei um resumo para a Organização Europeia de Pesquisa Nuclear e eles até possuem um físico e um astrônomo que conseguem entender parte da sua equação, mas precisam de você lá o quanto antes.

— Porque eu? Porque não você, professor Kajita? — Perguntou sem entender o porquê o homem por trás da iniciativa toda não estava se gabando da importância do estudo e de tudo que teorizaram.

— Lembra aquela equação sua que teorizava sobre a sobreposição dos universos em nível quântico.

— Aquela baseada na teoria do Gato de Schrodinger que o senhor descartou como irreal e disse que era impossível?  Aquela que falava sobre a possibilidade do inconsciente se sobrepor aos universos durante o sono, como uma antena analógica de televisão que sintoniza um canal pirata, e que por isso alguns sonhos pareceriam tão reais, por de fato serem?

Quase podia ver a expressão desgostosa do professor em sua mente, o homem de sessenta e tantos anos, baixinho, de cabelos brancos e que algumas vezes parecia carregar o fantasma arrogante de Newton ao seu lado, como mentor pessoal. — Pois é, parece que sua equação se encaixa melhor que a minha. Não é perfeita, mas é o mais próximo que temos, por isso preciso de você no próximo avião para Genebra.

Que ótimo.

Era só o que faltava.

Provavelmente o fato de ter pavor de aviões e precisar de uma preparação mental intensa, além de toneladas de calmante, não importaria nem um pouco naquele momento. Olhou para a tela da televisão, para o menu onde havia entrado para não ficar no meio da missão naquele momento e pensou: “Que se dane, vou terminar pelo menos o desafio da guilda antes de me enfiar em uma caixa de metal à milhares de quilômetros do chão, torcendo para não ser derrubado por um raio ou uma falha mecânica”, mas disse — Vou preparar minhas malas e tudo que eu preciso e passo no laboratório antes de ir para o aeroporto.

— Te espero aqui então — foi a resposta do outro homem, antes da ligação se encerrar.

Largou o aparelho de lado e voltou para o jogo, saindo do menu de evolução do personagem, terminaria o que havia começado antes de voltar a se preocupar com seu medo de avião.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Cordas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.