Cordas escrita por Ifurita


Capítulo 2
Balançando à beira do abismo


Notas iniciais do capítulo

Primeiro capítulo



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“Os grandes erros são muitas vezes feitos, como as cordas, de uma quantidade de fios. - Vitor Hugo”



Talvez tivesse conseguido dormir ao menos três horas. Foi isso que pensou quando o alarme começou a berrar em seu celular. Já havia passado do tempo das sutilezas dos alarmes suaves ou musicais. O som agora era de uma banda marcial em pleno desfile, com seus metais e bumbos. Aquilo era artilharia pesada.

Ele se moveu sobre a bancada onde havia dormido, debruçado, esperando que os dados colhidos terminassem de ser processados, chegou a pensar sobre como era o mestre das péssimas ideias. A grande verdade é que, mesmo no quase silêncio absoluto daquele laboratório, sua cabeça não parava e nem mesmo os comentários mordazes que  geralmente eram direcionados por ele à ele mesmo. Era um eterno debate, mas desta vez ambas as partes do seu “Eu” concordavam que havia sido uma ideia de girico dormir naquela posição.

— Que merda… — Resmungou para si mesmo, inclinando o corpo para trás, se apoiando no encosto da cadeira acolchoada. Olhou de esguelha para a tela, vendo que ainda faltava 12% do volume de dados para o computador analisar. — Vai ser uma longa noite, só eu e você, não é Gertrudes? — Olhando para a planta que estava diante dele, rindo baixinho ao pensar que suas interações sociais atualmente se limitavam à Gertrudes, o cacto, Alexa, a assistente virtual que gerenciava os dispositivos da sua casa e Siri. — Acho que vou fazer um café para mim e pegar a lâmpada UV para você, nós dois estamos precisando de alguma coisa para acordar, o que acha, amiga?

Gostava de falar, de alguma forma lhe dava a sensação de que não estava realmente sozinho. Além disso, verbalizar lhe ajudava a pensar um pouco melhor sobre o que precisava ser feito. Particularmente, não se importava em ficar sozinho no laboratório, tinha certa paz naquela sala de vinte metros quadrados com quatro computadores e centenas de pastas, anotações e quatro quadros brancos. Era catártico.

Aquele projeto estava consumindo a todos da equipe, a empolgação a possibilidade de, talvez, por meio dos dados simulados, todas as equações feitas pelos físicos teóricos acabassem levando a uma real comunicação com o que chamava de “outro lado”.

Não… Não pense besteira, ele não estava falando de vida após a morte, nem qualquer outra destas pseudo-teorias holísticas. A física quântica, a real — não aquela usada por charlatões esotéricos para “vibrar a prosperidade através de números que ecoam pelo universo” — falava sobre a possibilidade de haver mais de uma realidade. Mais de um universo, vibrando no infinito, conectados através de “cordas”.

Naquela realidade em que vivia era um cientista, físico em busca de algo maior, mas que no final seu ciclo de amizades acabava se fechando em dois colegas de trabalho, uma planta e duas inteligências artificiais. E é claro, os almoços de domingo na casa de seus pais, onde ouvia sua mãe falar sobre como seu irmão estava feliz com o emprego bem-sucedido e sua prima havia mandado fotos das duas filhas gêmeas — dois anjinhos, quando vai me dar netos Takashi? — seus olhos estavam fixos na caneca de café com uma estampa boba com dois ratinhos onde se lia “A resposta é 42”.

Suspirou ao perceber que havia se perdido em devaneios. Pegou o café entre as mãos, sentindo o aroma, o doce aroma de mais algumas horas acordado sem se sentir uma ameba. Claro que aquele aroma ficava melhor com uma pitada de canela e pimenta caiena. — Perfeito… — sussurrou ao provar o café da maneira que gostava. Melhor que isso só quando estivesse em casa e pudesse colocar uma dose de uísque no  café.

Chegou à conclusão de que o “ele” daquela realidade era levemente deprimente, mas talvez houvesse uma outra realidade em que fosse alguém mais interessante. Talvez um músico que arrastasse multidões a estádios lotados. Riu, pensando que muitas escolhas precisariam ter sido feitas em outras linhas temporais para que se tornasse algo parecido com um astro do Rock.

Ele voltou a se sentar diante do computador, que havia avançado incríveis 1% na análise dos dados recebidos da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Aquilo levaria ainda uma eternidade. Muito provavelmente o Professor Kajita chegaria de manhã e ainda não teria terminado, mas precisava estar ali para garantir que nada sairia errado. Aquela simulação computadorizada era o passo final daquela nova fase de um projeto que reunia físicos, matemáticos e engenheiros de pelo menos dez países.

Sakamoto Takashi, um PhD em Física Quantica e outro em física teórica, trabalhando no maior projeto científico da última década, aquele que deveria conseguir um eco de um universo paralelo ao nosso, dono de diversos prêmios por sua contribuição à comunidade científica e babá de um computador que deveria ser um dos mais rápidos do mundo, mas que, devido à sua ansiedade e àquele debate com seu outro eu interior que fazia questão de jogar na sua cara que não era tão bom quanto os outros achavam, parecia ranger e apitar como uma chaleira velha. O som do processador parecia uma locomotiva a vapor, ou era impressão sua?

Se esticou para puxar a luminária UV para Gertrudes, ligando a luz cálida, branco-azulada sobre a planta, antes de se recostar, inspirando profundamente, bebendo um longo gole de seu café com especiarias.

Arrumou os óculos sobre seu nariz. Era um nariz adunco, com personalidade, mas que, por mais incrível que parecesse, dava certa beleza ao seu rosto magro. Mais um gole de café, mais uma vez a voz na sua cabeça lhe dizendo que, não importava quantos prêmios ou livros tivesse escrito, ainda não passava de um perdedor. Que seu irmão, tão normal e mediano, com um emprego em um escritório de contabilidade, uma simples abelha operária do sistema, era muito mais bem sucedido que ele e que um dia, todos os envolvidos na iniciativa das Cordas acabaria percebendo que não passava de uma grande e ridícula fraude. Um nerd que deveria estar consertando computadores velhos em vez de sonhar com a comunicação entre universos.

Puxou a agenda para perto, anotando aquilo como um dos tópicos a discutir com seu psicólogo, Gostava de agendas físicas. Por algum motivo que não poderia explicar, sentia que escrever em papel tornava tudo muito mais real e sério do que digitar em um aplicativo em um dispositivo qualquer. Algo analógico, algo palpável em um mundo cada vez mais tecnológico e imaterial.

Precisava daqueles pequenos toques de realidade para não acabar se perdendo cada vez mais em sua própria mente conturbada.

— Se existisse isso de ler mentes, eu teria pena de qualquer um que tentasse ler a minha — Falou para si mesmo, mas não apenas para si, falou também para aquela voz chata que debatia com ele incansavelmente.

Ele puxou sua bolsa para o colo, pegando a tablet que estava guardada, conectando com o teclado wireless e desbloqueando a tela. Precisou apertar levemente a ponte entre os olhos para tentar aliviar a tensão que sentia naquele momento. Abriu sua conta de e-mail para chegar se havia alguma atualização ou algo importante, notando que o responsável pelos dados que seriam enviados pela Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear havia lhe respondido.

Se ajeitou melhor na cadeira, sorrindo de canto ao ler e disse em voz alta. — Siri, ligar para: Professor Kajita — Sabia que era madrugada, apenas 3:52 da manhã, mas ele não lhe perdoaria caso não informasse imediatamente.

O telefone dele tocou seis vezes, antes que do outro lado da linha o professor respondesse sonolento — Melhor estar me ligando por algo realmente importante, como um buraco negro que misteriosamente se abriu no laboratório e engoliu o computador com os dados, Sakamoto.

— Desculpe incomodar à essa hora da madrugada, professor, mas acabei de receber uma resposta da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear sobre os dados que enviamos semana passada. O Diretor Delyon acaba de enviar um e-mail resposta, professor. Ele considera que o avanço é significativo que deveríamos realizar um teste com o LHC, assim que tivermos o restante dos dados. No e-mail o Diretor Delyon diz que acredita ser possível conseguir ressoar entre as cordas.

O outro lado da linha apresentava um silêncio respeitoso, talvez extasiado, talvez espantado. Apenas o contador de segundos mostrava que a ligação ainda estava ativa. Aquele silêncio demorou exatos trinta segundos, mas parecia ter demorado talvez duas horas, quando o professor finalmente disse — Excelente, Sakamoto. E como está o processamento dos dados que recebemos da Universidade de Columbia?

— 89% dos dados já foram processados, professor. Acredito que mais oito ou nove horas teremos o resultado.

— Excelente. Com isso poderemos verificar nossas projeções antes de darmos os próximos passos — A voz do velho professor parecia contemplativa do outro lado — Se puder revisar o que já temos, mais tarde nos falamos — E com essa despedida, a ligação foi encerrada.

Novamente o silêncio não silencioso do laboratório. O processador do computador, com seu som ruidoso de quem tenta carregar o mundo, processando exabytes de dados astronômicos, tentando separar a Radiação de Fundo do universo de algo que ele chamava de Vibração das Cordas.

Era apenas teórico, mas se a teoria estivesse certa, escondida na Radiação de Fundo, haveria partículas anômalas, se movimentando de maneira assíncrona das partículas do nosso universo.Como a corda de um violão que é esticada de maneira que qualquer toque nela gera uma vibração e um som, fazendo o ar se mover diferente ao redor dela.

Quando todo aquele projeto começou, quando o professor Kajita, um dos cabeças do projeto que tentava comprovar a existência de múltiplas realidades — e que alguns dos bolsistas que participavam tinham carinhosamente apelidado de “Projeto Marvel vs DC” em alusão aos quadrinhos e ao fato de que ambas as editoras trabalhavam o conceito de multiverso — Lhe procurou em seu antigo emprego como professor adjunto de física quântica da Hokudai por causa de um livro que escrevera sobre paralelos temporais e sua possibilidade quântica, Takashi não poderia imaginar apenas três anos depois estaria ali, sentado diante de um supercomputador que rangia e apitava como uma chaleira — Talvez não rangesse, mas sua ansiedade ainda lhe fazia crer que sim — conversando com uma planta, tomando café em uma caneca com uma piadinha do Guia do Mochileiro da Galáxia e olhando para um tablet de maneira fixa, sem acreditar que aquele e-mail de poucas linhas tratava da mudança  do mundo como todos conheciam.


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Notas finais do capítulo

Comentários me fariam feliiz



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