Presos Por Um Olhar escrita por Carol McGarrett


Capítulo 84
Finlândia


Notas iniciais do capítulo

E chegou a hora de conhecer um pouquinho do país da Kat!
Só aviso que o capítulo está imenso.
Boa leitura!



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Nossa estadia em Londres durou apenas um final de semana, tempo suficiente para minha sogra querer ir conhecer o haras e os cavalos, se enturmar com as minhas avós e elas, juntamente com a minha mãe, fazerem planos para reunir todo mundo em Michigan, no verão.

Meu sogro e meu pai sumiram para a oficina e ficaram por lá um bom tempo, Deus sabe lá o que conversavam e isso deixou tanto Alex quanto a mim intrigados. Claro que Will e Kim tinham que aproveitar da situação para zoarem com nossas caras.

— Cara... isso nunca é bom. Quando as famílias se dão bem, o relacionamento afunda rapidamente. – Eles viviam falando na nossa cabeça, repetindo como um disco arranhado a mesma fala que cansaram de soltar em Austin.

Na segunda cedo, embarcamos para a Finlândia, como sempre, a pessoa mais empolgada era Elena, que nem precisou de um assento no jato, pois de minuto em minuto, estava no colo de alguém, ora fazendo planos para o que ela queria que a pessoa conhecesse ou fizesse no país “dela”, ora apenas falando que estava morrendo de saudade, minha sobrinha, como sempre, carinhosa até demais.

O voo de cinco horas passou rápido, até porque foi divertido ver Will e Alex jogando xadrez e provocando um ao outro quando uma jogada particularmente difícil era realizada.

— Eles acham que aquilo foi uma jogada extraordinária? – Meu avô me perguntou.

— Parece que sim, vovô.

— Você jogava assim quando tinha a idade de Elena!

— Não deixe que eles fiquem sabendo disso.

Olivia continuava sua saga de ler livros sobre as Guerras. Tinha terminado o livro sobre a Segunda Guerra e agora estava começando todo o ciclo que culminou com o primeiro conflito mundial, ela, de tempos em tempos, levantava a cabeça para ver o jogo entre os irmãos e sempre começava a rir, pois até ela via as jogadas que os dois estavam perdendo.

Tuomas estava discutindo com Kim algum tipo de jogo novo que eles estavam jogando, o que, de vez em quando, atraía um comentário, seja de Will ou de Alex, e sempre que isso acontecia, um dos irmãos trapaceava no tabuleiro, mudando uma peça de lugar.

Mais ou menos no meio do voo, minha avó Mina me chamou para uma conversinha em particular, assim, fomos para o fundo do avião e nos sentamos nas duas últimas poltronas.

E foi assim que a minha avó começou a conversa, toda ela em Lapão, para que ninguém pudesse entender:

— Peço desculpas, KitKat, por não ter ido te visitar nas últimas semanas.

Dei um sorriso para ela.

— Pode acreditar, vó, eu te entendo perfeitamente.

Ela segurou forte a minha mão e continuou.

— Admiro a sua perseverança nesse trabalho, minha neta. Não é fácil. Sei que nada é fácil na vida, porém, admiro cada dia mais a sua força de vontade de querer ter se juntado à empresa desde tão nova, de ter estudado com tanto afinco e ter chegado aonde chegou por suas próprias pernas. Muitos poderão dizer que você só está no comando do Escritório do Pacífico, porque você carrega o sobrenome da empresa, porque você é mulher e bonita e fez o seu caminho pulando de cama em cama e que só continua aqui porque alguém tem que ser bem apessoado em algum escritório. – Ela fez uma pausa para tomar um gole de chá. – Eu sempre soube, mas agora eu entendo a sua falta de tempo, o seu cansaço no final de semana, a vontade que você tinha de só querer ficar em casa nas férias que dificilmente você tirava. É cansativo, é exaustivo lidar com toda a burocracia, com todas as cobranças, com os prazos e clientes exigentes. Você faz tudo isso porque gosta e deveria ter sido mais valorizada, pois de todos da família que trabalham ou trabalharam lá, você é a única que realmente ama o que a NT&S representa.

— Não é para tanto, vovó. – Pedi sem graça.

— E sabe o motivo de eu estar falando tudo isso, Katerina?

Balancei negativamente a cabeça.

— Agora eu sei o que é ser você. O que é ter o sobrenome errado, no lugar certo. E olha que eu sou velha e dona do dinheiro! Fico imaginando o que você passou, tudo o que você ouviu todos estes anos e, principalmente nos últimos meses. Fiquei sabendo da cena do lado de fora do prédio que envolveu Dempsey, Alexander e você.

— Melhor não lembrar disso. – Pedi desconsertada.

— Nós podemos fingir que as palavras ditas não nos afetam... mas no fundo, nós sentimos o baque, não é mesmo? O que Lucca disse em alto e bom tom não foi verdade, porém, ainda machuca, não é mesmo?

— Não é um apelido interessante para se carregar, a senhora bem sabe, e, no fundo, sempre tem mais um que vai ficar com isso na cabeça e achar que é verdade.

— Misóginos serão sempre misóginos, não importa o país, a religião ou a ideologia política, sempre existirão homens que temem as mulheres e a forma que eles têm de se protegerem desse pavor, é atacando de forma vexatória as mulheres à sua volta. Nossa sociedade está longe de ser perfeita, está longe de tratar todos de forma igual como a Declaração dos Direitos Humanos da ONU tanto preza, e, infelizmente, algumas de nós têm que desbravar esse caminho de preconceitos para que as gerações futuras possam trabalhar em paz. Muito ainda precisa ser feito, mas acredite em mim, minha neta, melhorou muito.

— Eu não faço ideia do que a senhora possa ter passado. Se já é difícil hoje que temos, na teoria, os mesmos direitos, na época da senhora...

— Na minha época o marido ficava encarregado de trabalhar e gerir o negócio e eu fiquei em casa. – Foi a resposta simples que a minha avó me deu. E significava tanto... - Contudo KitKat, não é para discutir o feminismo que te chamei para essa conversa. Quero conversar com você sobre o seu emprego.

Meneei a cabeça, instando minha avó a continuar.

— Camilla Grissom me avisou que você tinha aceitado o cargo de Vice-Diretora, que faria esse papel direto de Los Angeles, certo?

— Sim, dei minha palavra a ela de que apoiaria a moção para retirar Cavendish do cargo. – Confirmei.

— E agora? O que você acha que deve acontecer?

— A senhora está me pedindo opinião sobre como deve gerir a NT&S?

— Eu falei no início da nossa conversa, você é quem melhor entende essa empresa entre todos aqui e aposto que entre muitos do Conselho também. Então, o que acha? Mudaremos a Vice Diretoria para Los Angeles ou permaneceremos com ela aqui?

Mordi o lábio e, depois de respirar fundo, falei.

— Antes de mais nada, vovó, vou deixar claro uma coisa. Não vou abandonar o Escritório do Pacífico para assumir a Vice Diretoria em Londres. Tenho vários motivos para ficar na Califórnia e para permanecer somente na parte do trabalho, aquele escritório é um dos melhores que já vi, funciona como um relógio. Não tenho queixas sobre nada nem ninguém e, eu acabei de chegar, todo o prédio mal se acostumou com a minha presença e meu modo de trabalho. Larga-los agora é inviável e até cruel... porque eles teriam que se adaptarem a um novo comandante, a um novo estilo de trabalho, e só Deus sabe como seria o rendimento do Escritório...

— Claro. Entendo não só no lado profissional, mas no pessoal também.

— Ainda bem que a senhora entende... obrigada por isso.

E Mina Nieminen me deu um sorriso de conforto, tão diferente do marido, que me fez me questionar internamente como ela havia acabado por se casar com Matti Nieminen.

— Então, com este ponto esclarecido, o que você acha?

— Sede em Londres. E eu não estou fugindo do desafio de acumular funções, só que não vejo motivos de trocar o lugar da vice diretoria, agora que Cavendish jamais voltará para a Empresa. A ideia do Conselho era afastá-lo do poder o máximo que eles podiam, sem demiti-lo para não darem a chance ele ainda tentar processar a empresa, e era um golpe inteligente, todavia, esse motivo não existe mais. E a Vice Diretoria pode permanecer em Londres e ainda gerir o escritório de lá.

— Argumento interessante, Katerina. Muito interessante e convincente. Agora me explique? Por que não mudar para Los Angeles sendo que é o segundo escritório com o maior número de carga e de clientes, além de ser aquele com a maior frota de navios e rotas?

— Por tudo isso que a senhora falou. Imagine qualquer um lidando com as duas coisas ao mesmo tempo?

— Cavendish fazia isso...

— Não, ele terceirizava o serviço de diretor de escritório para outras pessoas, na maioria das vezes para o sobrinho e olha o desempenho do escritório agora! Até onde participei da reunião, era o pior. O PIOR! Londres que deveria dar o exemplo, porque é a sede da empresa, simplesmente virou motivo de chacota!

— Certo. E quem assumiria a posição de Vice-Diretor?

Dei de ombros, não fazia a menor ideia de quem poderia ser essa pessoa. Desde que não fosse eu, eu aceitaria qualquer nome.

— Mas tenha em mente, vovó, que caso isso se concretize, é necessário que quem vai assumir o cargo seja, além de competente, uma pessoa que conheça a história da empresa e que saiba não somente trabalhar em equipe como saber resolver conflitos com a mídia.

— Eu sei disso, KitKat.

— Ainda bem.

— E, me surpreendo em saber que nós duas temos a mesma opinião...

— Espere um pouco... a senhora.

— Estava pegando uma segunda opinião para dar para Camilla. Ela quer a transferência, mas eu acho que não é necessária... não precisamos de mais gente dentro daquele prédio só para te ajudar na gestão da Vice Diretoria. As coisas estão bem do jeito que estão... se tentarmos uma mudança drástica pode ser pior do que imaginamos. A sobrecarga de pessoal e de trabalho não será nada benéfica para o desempenho de vocês. Obrigada pelo conselho, minha querida. Agora pode voltar para seu lugar e assistir ao seu noivo perder no xadrez de novo.

— A senhora está com que ideia sobre Londres e a Vice Diretoria? - Perguntei mais por curiosidade do que por interesse.

E minha avó apenas me deu um sorriso e apenas disse:

— Sei que você já voltou ao trabalho, KitKat, porém, esse tipo de assunto ainda não é para ser discutido com você. Ainda. Teremos uma reunião para colocar tudo às claras. Todavia, até que esta reunião aconteça, não quero você preocupada com a gestão da NT&S. Quero você focada em se recuperar.

— Tem certeza?

— Tudo ao seu tempo, Kat. Agora vá socorrer Alexander antes que ele dê um derrame. Olha o desespero do rapaz!

Olhei por sobre o ombro e vi Alex com as duas mãos na cabeça, meio que desesperado por conta de que movimento ele teria que fazer agora.

Muito pouco tempo depois dessa conversa, estávamos nos preparando para a aterrissagem. Olhei para a janela e vi a paisagem coberta de neve. Pelo computador de bordo da aeronave, lá fora estava – 8ºC.

E, ao ver o país onde nasci se aproximando cada vez mais, murmurei:

—  Agora sim, eu estou em casa!

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Eu não fiz parte do planejamento dessa viagem, minha avó e minha mãe se encarregaram de organizar tudo, até porque minha mãe disse que eu ainda não podia me estressar e quando descobriu que eu tinha fugido para fazer as compras de Natal me deu um sermão tão grande que fez Alex se trancar no meu escritório e fingir que tinha que estudar algumas modificações no roteiro, então, por conta disso, eu não sabia o que nos aguardava quando descêssemos do avião.

Mal tínhamos aterrissado, as portas da aeronave nem tinham sido abertas e Kim já estava perguntando quando íamos fazer o jogo anual de hockey da família.

— Qualquer dia está bom. Só se lembrem de que a Katerina não pode jogar. – Minha mãe avisou.

Ian deu um tossida para esconder a risada, Vic fingiu que guardava alguma coisa na bolsa, foi meu avô quem falou a verdade:

— Quanto querem apostar que ela vai jogar?

O silêncio que se instalou na cabine foi tão intenso que nem os meus cachorros respiraram, afinal, meu avô não tinha dito uma mentira, eu iria jogar, assim como ia patinar no gelo, surfar na neve, esquiar e pilotar meu snowmobile, só que eu não poderia entrar em guerra com a minha mãe, assim só permaneci calada e com cara de paisagem, olhando para frente, na direção contrária de onde ela estava sentada me observando.

Finalmente as portas foram abertas e a primeira coisa que fizeram foi reclamar do ar frio que entrava.

— Eu nunca me acostumo com esse ar gelado... – Vic fez uma careta quando desceu.

— Então por que se casou com um finlandês e não com ujm brasileiro? – Kim retrucou a própria esposa, passando por trás dela e colocando uma mão gelada na nuca de Vic que a fez dar um pulo igual a um gato assustado. Porém, depois da provocação, ela não deixou por menos e soltou:

— E por que que você não é brasileiro Joakim?

Meu irmão parou perto do carro e a encarou, respondendo simplesmente:

— Se eu fosse brasileiro, jogaria futebol, não hockey no gelo. Agora vem para o carro antes que você congele de frio e que as suas reclamações virem as reclamações da minha avó e da minha cunhada. - Disse e abriu a porta do carona para que ela pudesse entrar e se aquecer.

Para falar a verdade, todo mundo desceu fazendo careta para a baixa temperatura, com duas exceções, minha avó Mina e eu.

— Você não fez essa cara de felicidade quando estava na praia em Los Angeles. – Alex me acusou, enquanto ajeitava a toquinha na cabeça e depois assoprava e esfregava as mãos para tentar aquecê-las.

Dei um sorrisinho para ele e apontei da a neve que caía para mim.

— Rainha do Gelo, lembra-se?

— Como posso esquecer, hein?

Os Pierces nunca tinham vindo à Finlândia, confesso que desconfiava que eles nunca tiveram a intenção de vir à Escandinávia no verão, quanto mais no inverno, e foi fácil de notar suas caras de desânimo quando viram a paisagem branca.

— Prometo que vocês se acostumam com a brancura e que não vão sentir frio. Só os doidos ficam no lado de fora nessa temperatura. – Garanti quando os guiei até o carro, ajudando minha sogra a não escorregar no caminho.

— Só os doidos? Então você e Kim e Ian...

— Will, acredite em mim, nós passamos muito tempo do lado de fora, mas crescemos aqui, então temos defesas naturais. Porém, eu não vou te julgar caso você queira ficar sentado na sala, enrolado em um cobertor e tomando uma xícara de café a cada meia hora... – Segurei a risada.

— Você já está me julgando! – Meu cunhado disse injuriado.

— Você riu do meu tombo no surf... hora do pagamento!

— Mas eu nem caí.... – Ele falou revoltado e quando vimos, lá foi Will escorregando pista a fora e caindo sentado no gelo.

— Pelo menos nem vai doer, já anestesiou de uma vez! – Pepper riu alto do tombo do namorado.

Kim, Vic e Tuomas estavam rindo também e só Tanya foi a sensata quando disse:

— E que comece a temporada das inflamações musculares... haja bolsa de água quente e analgésico!

Depois que conseguimos ajeitar todos e todas as malas nos carros, partimos para a última etapa da viagem, mais três horas de carro pelas planícies brancas e congeladas da região central da Finlândia.

— A Finlândia já tem uma vantagem sobre a Inglaterra! – Alex comentou assim que pegamos a autoestrada.

— E seria? – Perguntei desconfiadíssima.

— Aqui vocês dirigem do lado certo da pista.

— Ah! Isso? – Voltei minha atenção para a estrada nevada.

— É, isso. E é uma vantagem muito grande, eu posso dirigir aqui sem bater o carro! – Se gabou.

E, só para testá-lo, perguntei:

— Quer ir dirigindo, então? O caminho é fácil. É só ler a placas! – Apontei para a sinalização que nos mostrava que estávamos na região metropolitana de Helsinque, passando perto de Espoo.

 Alex olhou pelo para-brisa e fez uma careta.

— É, pensei que você faria essa cara. – Tentei manter a seriedade e falhei. No banco de trás, meus sogros iam rindo. Dona Amelia perguntava a cada quilômetro sobre a paisagem ou até mesmo algo da cultura finlandesa que ela tinha pesquisado e queria saber se estava correto ou se a internet a tinha engado; já meu sogro, olhava para os lagos e só comentava que ele tinha muito lugar para pescar por aqui.

— A menos que o senhor queira morrer de frio, aconselho a pesca no verão. – Comentei. – E se o senhor não ficar esperto, vai virar a noite pescando sem perceber.

— O sol da meia-noite! – Minha sogra me interrompeu para falar de algo que a estava intrigando por um bom tempo.

— Sim. Isso confunde muita gente que vem para cá e quando se percebe está acordada há dois dias, porque fica esperando “escurecer”.

— E agora no inverno?

— Essa é a claridade que temos. E daqui a pouco começa a escurecer de verdade. Outro ponto que confunde quem é de fora. Não é nada demais ficar com poucas horas de claridade, é até mais fácil de se acostumar do que o sol eterno, mas muita gente acha depressivo.

— Você não.

— Não mesmo, Dona Amelia. - Respondi, olhando-a pelo retrovisor interno. - Não me guio pela claridade aqui. Para a casa em que estamos indo, a senhora vai perceber que colocamos luzes em praticamente todos os lugares, assim, dá para ficar do lado de fora tranquilamente.

— Literalmente fizemos o caminho inverso que você fez! – Sr. Pierce comentou com um sorriso.

— Sim. E agora vamos ver qual dos dois é mais fácil para adaptação, apesar de ter quase certeza de que vocês irão dizer que é mais fácil se acostumar com Los Angeles e o clima agradável do sul da Califórnia.

Os sorrisos que vi confirmaram que minha teoria estava certa.

Com pouco Kim me chamava no rádio.

— Está ocupada servindo de guia ou pode conversar?

— Diga.

— Com ou sem emoção para os californianos? – Ele perguntou em finlandês, já que levava Will e Pepper com ele.

— Sabe que temos mais carros, não sabe? – Respondi em finlandês também e notei que Alex estava tentando entender o contexto da conversa, mas essa aqui duvidava que ele conseguiria.

— Sei! – Kim respondeu do outro lado. – Tá com medinho do papai reclamar?

— Estou querendo ter um final de ano pacífico, Kim. Além do mais, você sabe que quem vai falar na nossa cabeça será a sua mãe.

Nossa mãe. – Ele me corrigiu.

— Quer arriscar?

— Acho que uma ou outra derrapada não vai fazer mal. Será que você consegue ou vai ficar tudo por minha conta.

— Por aqui é inviável. Não posso matar os sogros do coração logo na primeira viagem ao país... mas você pode fazer a sua gracinha, tenho certeza de que os batimentos cardíacos vão subir por aqui.

A risada que Kim deu em resposta, me avisou que Will não fazia ideia do que o esperava nos próximos quilômetros.

— Kim queria alguma coisa importante? – Alex, o curioso, me questionou.

— Só me enchendo a paciência sobre o jogo. – Menti descaradamente.

— E por que o rádio?

— Com as tempestades é bem comum que o sinal de celular fique intermitente. E como parece que a da última noite foi bem forte, melhor garantir que tenhamos comunicação por todo o trajeto. – Respondi ao meu sogro.

— Inteligente da parte de vocês.

— Uso do rádio, navegação por mapas e estrelas, achar um abrigo e fazer uma fogueira mesmo com madeira úmida, são as primeiras regras de sobrevivência que aprendemos por aqui.

— Já ficou perdida na floresta? – Dona Amelia me perguntou.

— Perdida nunca. Já caí em um buraco no gelo enquanto patinava, mas, às vezes, quando estamos voando sem regras no meio das árvores é fácil de se esquecer onde está e quão longe se está da casa, assim, é bem útil saber essas coisas, e foi exatamente por elas que nunca passamos a noite do lado de fora... podemos voltar tarde, depois de ter confundido o caminho, porém, ficar perdido, a ponto de ter que se chamar o resgate, nunca, nem no inverno e nem no verão. Como a senhora vai perceber, somos um pouquinho selvagens quando se trata de encarar a vida do lado de fora.

— Tem história por trás dessa frase. – Meu sogro comentou rindo.

— Muitas. Muitas, mesmo.

— Se ainda estiver faltando muito tempo de viagem, KitKat, pode começar a nos contar!

Difícil era saber por qual história começar...

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Três horas de muita história contada por minha parte e uns bons sustos dados por Kim em Will e Pepper, chegamos na fazenda.

Claro que tudo já estava organizado e preparado para nossa chegada, então o que nos restou foi apresentar um pedaço do local que seria a nossa estadia pelos próximos quinze dias.

— Bem que a Kat avisou que não sentiríamos tanta falta da luz aqui. – Foi a primeira coisa que meu sogro falou ao descer do carro em frente à casa. – Os carros ficam aqui do lado de fora?

— Não, senhor. A garagem é um complexo à parte. Parei aqui para que o senhor e a Dona Amélia não precisem ficar esfriando o pé logo na chegada. Vai ter muito tempo para isso.

— Obrigada, querida! – Minha sogra me deu um beijo na testa.

— Podem ir entrando e ficando à vontade. E cuidado ao subir os degraus.

Tendo muita gente para esvaziar os porta-malas, rapidamente colocamos as malas na sala e depois fomos guardar os carros.

Alex, que cismou de me acompanhar até a garagem, ficou passando por cada box, vendo o que tínhamos ali. Até que parou.

— É essa aqui a sua moto de motocross? – Perguntou alarmado.

Meus irmãos começaram a rir.

— Isso aqui coloca a minha e as da turma no chinelo!

Caminhei até onde ele estava e depois de ver a moto, só comentei.

— Essa moto é da Liv.

A cara que Alex fez foi impagável.

A Olivia pilota aqui ali?!

— Aquela menorzinha é da Elena, e a outra, toda preta, é do Tuomas. A minha está mais no fundo. – Apontei para o fim do corredor, contudo, meu noivo ainda estava boquiaberto de saber que Olivia, a toda bonequinha Olivia, a adolescente que ama cor de rosa e anda na moda, tinha uma moto de motocross melhor do que a dele.

— Eu não acredito que a Olivia saiba pilotar isso! – Ele comentou.

Foi aí que Ian, o paizão coruja, entrou em ação.

— Não só pilota como sabe arrumar também. Acha que criei a minha filha para ser uma patricinha que vai depender de qualquer um para ajudá-la a consertar os carros e motos, Alexander?

Alex só coçou a cabeça, ainda incrédulo.

— Deixe a cara de perplexo para quando você vir as duas menininhas da família voando na pista. Nem preciso dizer que elas irão amar fazer uma pequena demonstração para você. – Belisquei a bochecha dele e, finalmente, Alex saiu do transe em que se encontrava.

— Se Olivia pilota isso... a sua.

Puxei o Californiano Mais Perdido da Finlândia até o final do corredor e apresentei o box onde estava não só a minha moto, mas também meu snowmobile e ferramentas.

— Creio que, pelo menos, a caixa de ferramentas lhe é familiar. – Brinquei, ao me escorar na porta para esperar por Alex que fazia uma vistoria completa em tudo.

— Seja sincera comigo... o que você pensou quando viu a minha moto? E a do Matt? Você deve ter rido arrumando a moto do Matt, pensando que aquilo é um item de ferro-velho!

— Muito pelo contrário. Não ri. Só arrumei. Cada um tem uma marca e modelo específicos... assim como carros.

— E é isso que você vai levar para a Califórnia?

— Não! A que KitKat vai mandar para a Califórnia está separada na oficina, junto com a outra moto da Olivia. – Meu pai informou.

Alex só olhava ao redor, ainda um tanto perdido, um tanto surpreso.

— Até a Olivia vai me humilhar. – Murmurou por fim.

— Sobre isso... já começa a aceitar a derrota, Surfista Sem Mar. Porque, sem querer me gabar, somos muito boas.

Alex só balançou negativamente a cabeça e começou a fazer o caminho para a porta. Meus irmãos riam da expressão dele e eu não pude deixar de pegar um pouquinho no pé do meu noivo. Assim, corri até onde ele estava e, pulando em suas costas, só falei:

— Se arrependendo de ter me chamado para correr naquele domingo, não está? – Falei rindo perto do ouvido dele.

— Você deveria ter vindo com um aviso antes. – Foi o que ele comentou, mas não me soltou, assim, estava agarrada nas costas dele como um mico estrela.

— Que tipo de aviso? – Perguntei.

— No melhor estilo de classificação dos filmes, aqueles que informam sobre o que você vai ver ao longo das próximas horas.

— Não concordo. A surpresa é muito melhor. Além do mais, a sua cara de espanto deveria ter sido gravada!

— Ainda vou me assustar muito nos próximos dias? – Alex fingiu que não escutou meu comentário e passou para uma outra pergunta importante.

Eu não respondi, até porque não precisei. Meus irmãos e meu pai fizeram isso por mim quando começaram a rir.

— É... eu acho que vou sim. – Alex falou me colocando no chão, afinal já estávamos na porta da casa.

— Eu estou no meu habitat natural, Alex. Guarde isso. Cresci passando férias aqui. Foi aqui que aprendi a dirigir, a surfar na neve, a esquiar, a subir em árvores e a escalar um telhado... não espere que eu vá bancar a princesinha de cristal e ficar sentada dentro de casa ao lado da lareira, porque eu não vou.

— Sei que não. Ou não seria você, Katerina. Apesar de que ainda me assusta o tanto que você me surpreende a cada dia, e eu achando que não tinha mais nenhuma novidade.

— Não quero te decepcionar, contudo, você não está nem na metade do livro. – Comentei e peguei a minha mala para levar para o quarto.

— Deixe que eu levo. – Ele disse todo cavalheiro.

— Leve a de sua mãe. A minha está bem leve. Tenho muita coisa aqui. – Respondi já subindo a escada.

E o segundo andar estava daquele jeito. Várias pessoas falando ao mesmo tempo, Elena correndo de um quarto para o outro, simplesmente feliz por ter toda a família reunida debaixo do mesmo teto, o que estava deixando Tanya maluca. Encontrei com minha avó Mina no meio do corredor e ela me sorria feliz.

— Só você para reunir pessoas tão diferentes nessa casa. Não sei como os californianos vão se adaptar a este clima, mas está divertido ouvir a falação.

Parei para prestar atenção na conversa de meus sogros, já que o quarto deles era o mais próximo e Dona Amelia se perguntava se tinha trazido blusa de frio suficiente.

— Bem... eu ando sofrendo com a temperatura de Los Angeles, não vai fazer mal para eles, darem uma esfriada.

— Acho que não. Só não sei se eles voltarão depois disso.

— Vovó, se eles não voltarem, não será por conta do clima, mas sim porque eu e meus irmãos os assustamos demais com nosso comportamento nada civilizado.

— Ainda bem que você está ciente de que vocês três são os últimos dos selvagens dessa família. Agora vá desfazer essa mala que temos que conversar sobre os preparativos para a noite de Natal, antes que vocês se percam no meio da neve lá fora e voltem como verdadeiros lapões para dentro dessa casa.

Antes de ir para meu quarto, parei na porta do quarto de meus sogros e, depois de bater na porta que estava aberta, perguntei se eles precisavam de algo.

— Está tudo tranquilo, minha querida. – Dona Amelia me garantiu.

— Tem certeza, Dona Amelia? Porque se precisar de algo, basta pedir. Inclusive, se quiserem mais cobertores, me fale que pego.

Meus sogros se olharam e eu vi que eles queriam estar preparados para uma provável nevasca.

— Já trago os cobertores. Dois ou três?

Pela cara de sem graça eu vi que queriam três. Deixei minha mala no cantinho do corredor e abri a porta do armário que temos ali, pegando mais três cobertores limpinhos e embalados à vácuo para entregar para os friorentos.

— Aqui estão. – Deixei-os em cima de uma cadeira. – E qualquer coisa é só pedir. Meu quarto é o último do corredor. – Falei.

E, finalmente consegui chegar ao quarto, onde Alex já estava e encarava curioso a paisagem pela janela.

— O que foi? - Perguntei assim que entrei e fechei a porta.

— Por que eu tenho a impressão de que este é o maior quarto desse andar?

Dei de ombros.

— Kat?

— Sim, é... mas foi uma jogada de mestre minha. Apostamos quem ficaria com o quarto que pertencia à minha irmã em um jogo de batalha naval. E o resultado foi este aqui. – Apontei para o quarto. – E não pense que é só isso. Tem mais.

— Não tem como ter mais! O quarto já é enorme, Kat.

Apontei para o teto.

— Tem um alçapão aqui e ele nos leva para um cantinho do paraíso. Não é 100% privativo, porque os quartos de Elena e Olivia também possuem essa passagem, mas as duas não sobem ali no inverno.

— E nem você deveria.

— Não julgue algo que não viu, Alex. Ou você pode se arrepender. – Comentei casualmente e comecei a desfazer a minha mala.

— Onde está a passagem? – Alex perguntava, enquanto andava pelo quarto olhando para o teto.

— Não está no teto. Está em uma das paredes... se fosse no teto, encheria o quarto de neve!

E agora ele começou a bater nas paredes.

— Dentro do banheiro. Ao lado do lavabo. – Dei as instruções, contudo ele não achou a bendita da porta.

— Não está aqui!

— Sim, está. Mas não vou te mostrar agora. Deixe para mais tarde. Você vai gostar. – Garanti.

— E por que não agora?

— Temos que discutir alguns preparativos para os próximos dias, coisa rápida, mas necessária. Te prometo que hoje ainda te mostro a passagem secreta. – Dei um beijo nele e depois o expulsei do banheiro, pois eu precisava de um banho e colocar roupas confortáveis.

— Não sei o motivo de fechar a porta! – Ele murmurou mal-humorado.

Abri a porta de supetão e ele, que ainda encarava a porta fechada, tomou um susto.

— Respeito. Além do mais, as janelas estão abertas e, por mais que eu goste de frio, não quero congelar debaixo do chuveiro. – Informei e fechei a porta, rumando para o meu merecido banho.

Não demorei muito, até porque andava evitando ficar olhando a minha imagem no espelho, e, assim que saí, já com uma roupa bem confortável e que indicava férias, encontrei com Alex sentado na poltrona, fitando o celular com cara de poucos amigos.

— Notícias ruins? – Indaguei.

— Não. Só um imprevisto com as gravações. Coisa que acontece. Nada para se preocupar. – Ele disse e deu de ombros, se levantando, deixando o celular na mesinha de cabeceira e indo ele para o banho.

Acabei de ajeitar as coisas no quarto e quando meu noivo, um tanto congelado porque não fechou a porta, saiu do banheiro, ele só perguntou:

— Pegaria muito mal se eu descesse enrolado em um cobertor?

— Sim. Muito. Você seria motivo de piada! – Respondi e passei a fechar o quarto e aumentar o aquecedor, tanto do chão quanto do ambiente. – Uns cinco minutinhos aqui e você vai estar quentinho. – Falei e dei um beijo nele. – Estou lá embaixo na cozinha, se estiver com fome.

Ele assentiu e vestindo outra blusa, se encolheu na cama para ver se se aquecia.

No caminho até a cozinha, encontrei com Pepper e Will que, depois de passado o susto, estavam planejando uma vingança contra Kim e Vic.

— Você ficaria muito revoltada comigo caso eu exterminasse a vida do seu irmão gêmeo? – Pepper me perguntou um tanto perversamente.

— Imagina, estará fazendo um favor, não só para mim, como para a humanidade! – Entrei na brincadeira.

— EU ESCUTEI ISSO! - Kim gritou de algum lugar.

— Que bom, então sabe que está jurado de morte. – Foi a resposta que a minha cunhada deu.

— Espero que o plano de vocês seja muito bom. Kim não é pego de surpresa facilmente. – Informei.

— Estou com 15% do plano pronto.

— Espero que nos próximos 14 dias você consiga planejar os outros 85% e executar essa ideia maluca que está na sua cabeça.

— Eu também! – Fui tudo o que Will respondeu.

— Está indo para onde? – Pepper mudou o tom da conversa.

 - Cozinha. Vocês não estão com fome?

Foi eu falar e na mesma hora, os dois me acompanharam.

— Está acontecendo algo extraordinário. – Will comentou.

— Que seria? – Nem Pepper tinha entendido a piada, se é que era uma.

— Pela primeira vez eu estou vendo a Kat andando sozinha até algum lugar. Por acaso o meu irmão congelou ou isso é medo do sogro? – Claro que Will não deixaria a ausência do irmão mais velho passar em branco.

— Acho que ele está planejando uma fuga para algum lugar mais quente. – Comentei casualmente.

— Vai ser interessante ver omeu irmão tendo que se virar no frio. E quando teremos a primeira prova de resistência?

— Amanhã. – Garanti. – E eu acho que, se ele não sair correndo depois do que ele verá, poderei de verdade me casar com ele. – Brinquei.

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Mais rápido do que eu havia pensado, os dias, ou melhor dizendo, a noite sem fim, estava passando. Os californianos me surpreenderam e, apesar de que nos dois primeiros dias ele tenham se agasalhado demais e terem saído pouco de dentro de casa, agora pareciam estar se adaptando melhor ao clima.

Ou talvez eles só estejam do lado de fora por conta do pequeno incidente que acabou de acontecer.

— O que foi que eu te falei, Katerina? – Minha mãe gritou.

— Eu estou bem! A escada caiu, Elena passou correndo, brincando com Thor e o estabanado mor carregou a escada com ele. Eu continuo muito bem aqui em cima. - Expliquei o motivo de a enorme escada ter tombado e assustado a todos. 

— Não é sobre isso. Era sobre você não se esforçar muito. Seus machucados ainda não estão totalmente cicatrizados. – Ela ralhou comigo.

Fingi que não ouvi e voltei a caminhar pelo telhado, grampeado as luzes nas beiradas das telhas, garantindo que tudo estivesse em seus lugares para a noite do dia 24 de dezembro.

— E como você planeja descer daí? – Essa foi a minha avó Claire.

— Vovó, pode ficar tranquila, ainda tenho muito trabalho para fazer aqui e, te garanto, não ficarei presa.

— Se fosse qualquer outra pessoa eu até comemorava o possível funeral.... mas está todo mundo cansado de saber que ela não cai dali mesmo. – Kim comentou depois voltou a sua atenção para Ian e Will, e, de onde eu estava, parecia que estavam falando da estratégia do jogo que iremos jogar em dois dias, assim, tirei meu celular do bolso e mandei que Liv se esgueirasse até onde eles estavam e que me servisse de fofoqueira, trabalho que minha sobrinha fez com maestria e agora eu tinha todas as táticas de jogo que Kim iria usar.

Para alegria de Elena e desespero de minha mãe, só fui terminar a decoração de Natal da casa quase já na hora do jantar, o que significava que eu trabalhei quase 75% do tempo na total escuridão. E, ainda com uma plateia indesejada que consistia em meu irmão gêmeo, cunhado, Pepper e Vic, estes no time que estava torcendo para que eu caísse das alturas; e Alex, minha mãe e minha sogra, no time que queria a minha cabeça em uma bandeja; me esperando no chão, andei pelo telhado até um abeto vermelho que fica ao lado da casa e, depois e pular em um dos galhos mais altos, fui descendo até o chão como um gato.

— Para a tristeza de alguns, eu não me esborrachei no chão, apesar de terem roubado a minha escada! – Falei mais alto para que meu pai pudesse me escutar.

Ele, dentro de casa, só respondeu:

— Você sobe e desce de telhados sem precisar de escada desde os três anos, KitKat! Por que precisaria de uma hoje?

Para não me passar por uma maluca selvagem na frente dos meus sogros! – Respondi mentalmente.

Alegre com o meu trabalho do dia só tinha uma pessoa, Elena, que assim que me viu entrando em casa, falou animada:

— Não vejo a hora de ver como vai ser a decoração quando acendermos no dia 24 à noite.

— Espero que você goste, Leninha. – Respondi à saltitante garotinha que corria entre a sala de jantar e cozinha e volta para sala sem parar.

— Daqui a pouco descarrega e só volta a ligar amanhã. – Dona Amelia disse diante da correria da caçula que agora estava querendo, porque querendo, que meu sogro assistisse a um desenho com ela.

— Elena, depois do jantar, por favor. E não fique perturbando as visitas! – Tanya xingou a filha que parou no meio do cômodo e só murmurou as suas desculpas, para logo em seguida subir correndo as escadas atrás da mãe.

— Quando que ela para? – Will comentou olhando assustado para a energia de minha sobrinha.

— Quando está comendo. Ou daqui a pouco, assim que sentarmos com ela para ver um filme. – Respondi.

Alex, que estava meio calado durante este dia, só olhava para o alto da escada e quando, enfim, fomos em direção à sala de jantar, ele murmurou no meu ouvido:

— Essa energia da Elena deve ser de família, porque você também não parou um minuto desde que chegamos aqui.

Dei de ombros e só retruquei:

— E quando é que eu paro, Alexander?

Meu noivo ficou sem fala e permaneceu assim por todo o jantar, o que realmente foi estranho.

Jantamos tranquilamente, e, logo em seguida, quiseram jogar pôquer. Eu declinei na hora, já basta ter perdido humilhantemente para meus sogros alguns meses atrás. Assim, pedi licença e fui ajudar com a cozinha. Mesmo com tanta vasilha para lavar, acabei por terminar cedo e quando passei pela sala onde estavam jogando, notei que essa partida ainda iria longe, por fim, decidi fazer algo que não fazia há muito tempo, observar as estrelas até que elas se cansassem de mim ou vice-versa.

Assim, vesti um casaco bem grosso, calcei as botas que estavam servindo mais como isolante térmico do que como bota, já que tudo parecia congelado hoje e decidi por ver as estrelas no meu cantinho especial e como companhia, tive Loki, que desde que chegou, anda atrás de mim como se fosse minha sombra.

Abri o alçapão do banheiro e subi os degraus que, como eu dissera alguns dias atrás, estavam cheiois de neve.

Doze degraus depois, cheguei no jardim superior da casa, ou assim ele é chamado durante os dias quentes, porque no meio do inverno, a única planta que estava viva ali só tinha o tronco e os galhos.

Ajeitei meu telescópio, busquei pela Ursa Maior e, depois de localizá-la com facilidade, fui procurando pelas demais constelações.

Como era noite de lua crescente, era quase certo de que não teria show da Aurora Boreal, então, passei a observar meu astro preferido.

A Lua.

Claro que eu não era astrônoma e nunca seria, eu apenas gostava de ficar olhando para o céu, tentando entender como foi que o cada um daqueles astros chegou até ali.

— Pensar que a maioria das estrelas que vemos aqui, já podem ter morrido há milhares de anos e seu brilho ainda vaga pelo cosmo.

Depois de vasculhar até onde meu telescópio conseguia chegar com sua lente, decidi por me deitar na chase que tem ali, e, enrolada em um cobertor térmico, fiquei observando as estrelas, fiquei assim por tanto tempo que acabei me desligando da realidade.

— Terra chamando Katerina! Terra chamando Katerina! – Escutei alguém me chamando e dei um pulo ao notar que alguém balançava a mão na minha frente.

— MAS O QUE? O QUE É VOCÊ?! – Gritei dando um pulo e parando bem longe daquele boneco de neve tamanho extragrande.

— Agora você me ouviu!! – Alex falou.

— Mas... por que você está vestido assim?! – Perguntei alarmada.

— Tá frio dentro do quarto. Quando eu entrei achei que a janela estava aberta, não estava. Mesmo assim continuava a ventar e a temperatura do quarto estava caindo a cada segundo, procurei por todos os cantos e não descobri de onde estava vindo a corrente de ar. Decidi ir atrás de você, achando que você estava na biblioteca, quando não te achei em lugar nenhum, Dona Diana me mostrou o alçapão... e o frio do quarto fez sentido.

Encarei Alexander que estava embrulhado em uma parca grossa, com uma touquinha e um capuz na cabeça, além de estar usando botas para neve, uma calça grossa e estar enrolado em um cobertor grosso.

— Isso tudo é frio? – Perguntei.

— Sou da Califórnia, não ache que vou me acostumar com essas temperaturas baixas! – Ele me respondeu aquecendo as mãos.

— Bem…. Agora você sabe o que eu passo lá na sua terra.

Mas Alex não me escutou, ele simplesmente resolveu me ignorar e estava com a cara enfiada no meu telescópio.

— O que eu estou vendo? – Perguntou sem olhar para mim.

— Se você não mexeu em nada, a Constelação de Touro.

— Não mexi. Mas, por que Touro?

Dei de ombros, só para me lembrar que ele não estava me olhando.

— É a constelação do meu signo!

E ele deu uma risada e voltou a olhar na minha direção.

— Qual é a graça?

— Já ouvi que taurinos comem muito…

— Lá vem você!

— Mas eu sei que é verdade! Porque, pelo menos eu, como muito! Você bem sabe.

E foi só aí que eu me lembrei da data de aniversário dele. E me dei conta que nós dois dividíamos o mesmo dia!

— Então temos um problema… dois comilões em casa.

Alex afastou o rosto do telescópio e só me abriu um sorriso ainda maior, creio que deve ter feito a mesma associação que eu.

— Resta saber quem vai fazer o jantar no dia do nosso aniversário… - Foi o que ele falou e começou a andar pelo jardim. – Era esse lugar que você queria me mostrar?

— Te garanto que é mais bonito no verão, mas sim, era aqui.

— Seu cantinho nas alturas para poder ver as estrelas… interessante.

— Gosto da paz que tenho aqui. É bom ter um tempo para se desligar de tudo e apenas ver o céu.

Alex ainda andava pelo local e parou quando viu algo.

— Isso é uma piscina?

— Não. Um laguinho. Como eu te falei, no verão é muito mais bonito e tanto Elena, quanto Olívia, amam ficar aqui vendo o dia quase eterno, uma lendo e a outra brincando.

Ele chegou na beirada da sacada e olhou para o horizonte congelado que era o lago que margeava a casa.

— Imagino que seja muito mais convidativo de se ficar aqui em cima no verão mesmo, porém, não posso negar que, mesmo no meio do inverno, tem uma vista e tanto.

— Como eu disse, tem pelo que se apaixonar no inverno também. – Levantei-me e caminhei até parar ao lado dele. – E, Feliz Solstício de Inverno para você!

Meu noivo me olhou espantado.

— Primeiro dia do inverno, dia 21/12. A cultura Maia acreditava que este era o primeiro dia, o dia em que as todas as coisas começavam a renascer, a renovação. Ou mais precisamente, a vitória da luz sobre a escuridão, pois a partir de hoje, os dias começam a ficar maiores até que seja verão novamente. – Expliquei.

— É claro que você saberia algo sobre esse dia, não?

Dei de ombros novamente.

— Gosto dessas histórias, dessas crenças de se ter um dia especial. E não são só os Maias quem pensavam assim, mas os Chineses, Celtas e até mesmo os Neopagãos europeus. Não custa nada ter um pouco de superstição em nossas vidas. E eu gosto dessa história de renovação, de deixar o que passou lá trás e recomeçar com novas energias, novas perspectivas.

Alex ficou me encarando. Até que soltou:

— Em quais dos livros que estão lá em casa, está tudo isso?

— Em vários. Como eu já te falei, sempre gostei de história.

— E incorporou algumas ideias na sua vida?

— Nunca pensei sobre isso, mas como o inverno sempre me fascinou, deve ser por isso que me identifico tanto com a ideia da renovação. Faz sentido. A terra congela, se renova por baixo de toda essa camada de gelo e quando começa a descongelar na primavera, renasce com as flores, com grama verde.

— Faz sentido. – Alex concordou comigo.

— E eu poderia falar muito mais sobre isso, só não vou te deixar congelando aqui fora. A ponta de seu nariz já está quase vermelha demais de tão queimada de frio! – Dei um beijo ali. – Vamos entrar. Depois eu continuo com a minha aula. – Falei e fui logo tampando o telescópio com a tampa da lente e a capa para que ele não estragasse e desci as escadas atrás de meu noivo que ia tentando se esquentar. – Aconselho um banho bem quente. – Falei.

E foi exatamente o que ele fez, correu para o banheiro e quando saiu estava com uma cor um pouco mais normal.

— Eu juro, Kat, até aceito que você goste do inverno, mas como você consegue ficar lá fora com esse tempo?

— Estou mais do que acostumada, o que não quer dizer que eu também não esteja toda gelada. Me espere acordado, hein? – Pedi e corri para debaixo do chuveiro.

Quando saí, Alex já ressonava debaixo de uma montanha de cobertores.

— Não devia me impressionar, já que dorme debaixo de edredom na Califórnia, mas, mesmo assim, é um pouco demais. – Murmurei enquanto tentava achar um cantinho onde pudesse me deitar, já que o folgado estava atravessado na cama.


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Notas finais do capítulo

E é isso. Espero que tenham gostado. Semana que vem tem mais!
Obrigada a você que está lendo e acompanhando a história!
xoxo



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